faz
hoje
um ano que publiquei a minha crónica de despedida do ano 2017 – habituei-me a
fazê-lo anualmente num género de balanço emocional – no ano passado a escrita
foi marcada pela raiva. estava
desiludido. zangado com o destino e sentia o mundo às costas – sempre
gostei de metáforas hiperbolizadas – hoje.
percebo que não era a pior de todas as raivas. mas apenas a sensação-confirmada
de que deus. seja a identidade que
for. não vê tudo ou está desatento –
este ano. o dito deus. continua ausente. não me liga nenhuma. não me ama como seria pressuposto amar e
também não está em todos os lugares como também seria pressuposto estar – na
crónica de 2017 lembro-me de me conter nas palavras mais duras. dissimulei-as. mascarei-as com etiqueta.
embebedei-as com as bebidas alcoólicas que me ofereceram pela festa do santo
natal e de seguida. matei-as como se
matam os perus. depois. depois foi só temperá-las com um
punhado absurdo de sal em pedra.
levá-las ao calor da vida e finalmente empratá-las como se fosse um chefe
agraciado com estrelas michelin – foi a forma que encontrei de proteger os meus
familiares. amigos e leitores do meu
“año horrible” – foi um ano muito mau e como dizem os nossos nuestros hermanos: no creo en brujas. pero que las hay. las
hay – passou um ano e as bruxas não me largaram o corpo. são sempre leais a quem amarga e geme. instalaram-se de malas e bagagens e não vejo forma de as despejar
– por tudo isto a raiva não desapareceu.
não diminuiu e creio até que se intensificou – confesso-vos que me encontro
perdido com as palavras. não sei o
que fazer para que esta crónica-balanço.
uma versão mais esperançosa da anterior.
ofereça uma diferença positiva
no seu conteúdo – a minha vida está sistematizada pela adversidade. um género de existência em série. padronizada numa luta constante. com picos emocionais sofridos. incontroláveis e intensificados por
uma dúvida existencial – salva-me o pé-de-meia emocional. amealhado nos anos dourados.
permite-me agora ter um fluxo de energia mental suficiente. sem precisar de recorrer a químicos – tudo o que consumo para me
aguentar são palavras. analgésicas
potentes que. depois de escritas. aliviam as mágoas aumentando os
intervalos das recaídas – mas voltando ao novo ano. o que vos posso garantir [mesmo] que vai mudar é a hora de
inverno com a chegada da primavera – não se riam. por favor. nem sempre sabemos ou vemos o óbvio – também vos posso afiançar
que em abril. se lá chegar. irei ficar mais velho um ano. certificando de vez a qualidade das
minhas dores das costas – tudo o resto que possa dizer em relação às minhas
expectativas aviso-vos que pode muito bem ser parte de uma maquiavélica
maquinação do professor cuecas com um novo conto do vigário. desta vez numa história de banda desenhada – infelizmente também
não mudarei o rating da fé. está no
lixo e não creio que suba qualquer nível em 2018. tal e qual como o meu país o meu problema é estrutural. gasto mais tempo a pensar do que a
produzir – olho para o 2018 apenas como o calendário olha para mim: tens os dias contados. acabas de consumir mais um dia da tua
existência. estás cada vez mais
perto de tombar para a eternidade – que sorte – do 2017 quero apenas recordar o
casamento do meu filho. fui muito
feliz nesse dia. oficializei a nora. sei que não era necessário porque ela
já estava no coração. nunca lho
disse porque não sei expressar o que sinto por palavras faladas. todos sabem que não me dou bem com a
oralidade. mas a minha intuição
diz-me que ela já sabia e que o meu filho também o sabia porque os filhos
quando se fazem adultos sabem tudo dos pais – antigamente era eu que sabia tudo
deles. tudo mudou. envelheci por dentro e por fora. mas amo-os incondicionalmente – com a
idade aprendemos a amar apenas com o coração. não precisámos de ver.
tocar ou ouvir. amamos porque
sabemos que estão em nós. para além de todos os dogmas. eles são a única razão para o mundo existir e brilhar – o ano de 2017
foi o ano das noras. o meu filho
mais novo apresentou-me a mais que provável futura companheira. bonita. simpática.
independente. comunicativa e
determinada. como eu gosto. espero que se saibam guardar-se no coração
com lealdade. sem ela. a vida não
presta – por último. o meu filho do meio anunciou um novo relacionamento. e finalmente.
reencontrou a determinação para terminar o seu curso superior – como sempre.
estarei inteiramente a seu lado.
aguardo por esse dia desde que à escola.
já dobramos tantos cabos das tormentas.
não há dia nenhum que não torça por ele e. já agora. que deixe de fumar.
não por mim. mas pela sua saúde – só quando os filhos atingem os seus objetivos.
nós sentimos que atingimos os nossos – e é desta forma que aguardo o
falecimento de 2017 agradecendo-lhe unicamente não ter levado ninguém que
morasse no meu peito – tenho como certo que os amigos continuarão a usufruir do
meu batimento afetivo em 2018 – no que diz respeito à família tudo continua
firme e rijo. a minha mãe de noventa
e três anos dá o exemplo prometendo estar por cá para 2019. a lurdes. minha
segunda mãe. quase nos oitenta anos
continua a teimar. o que vai ser de
nós sem ela. devo tanto a esta
mulher – da família da minha mulher
faço figas para que o meu sogro continue a lutar por todas as recordações. orgulho-me de fazer parte dessa vida
guardada e quero continuar vivo no seu olhar até 2019 – por fim. o que não muda há trinta e quatro
anos é a companhia da minha mulher. sempre
avançámos juntos e destemidos sobre os novos anos – assim será hoje. não há forma de os anos
nos cansarem – brindaremos mais uma vez como crianças. trocaremos um beijo que nunca é igual e renovaremos os nossos
votos de que estaremos unidos até que a eternidade nos separe – amo-a mais por
cada ano que passa – é ela que inventa o sol que me ajuda a sorrir – obrigado
também a todos aqueles que gastam o seu tempo a ler as minhas divagações. vocês são fantásticos. sem o vosso companheirismo nada disto
faria sentido – espero-vos em 2018 – grato como sempre – feliz ano novo
31/12/2017
faleceu 2017. salve 2018
23/12/2017
eu e: a oferenda aos meus dois amigos
estes dois
pequenos excertos literários do escritor húngaro sándor márai - as velas ardem
até ao fim. são uma oferenda aos meus amigos tiago e josé antunes. um género de final revisitado para as
duas crónicas anteriores – o livro. um
romance intenso. dedicado a uma
amizade entre dois homens. amigos de
infância inseparáveis. que se
encontram novamente passados quarenta anos – uma reflexão penetrante e pessoal
sobre a amizade que sándor márai disseca com amor. afabilidade. nostalgia. tristeza e perdão – o autor. na derradeira fase do envelhecimento. compreendeu que só relativizando os
sentimentos poderia encontrar o perdão em si – sándor márai ensina-nos a encarar
a verdade mesmo quando ela se apresenta difícil. complicada e desagradável.
sabendo que ainda assim será sempre menos arrasadora do que a mentira – recuperar
o passado para o questionar é uma missão penosa. sobretudo quando se trata de reencontrar
um amigo de infância – neste romance o autor trouxe a verdade às palavras. a tolerância aos diálogos. o amor à
compreensão e o perdão ao coração
“O que é que se pode perguntar das pessoas com
palavras? O que vale a resposta que uma pessoa dá com palavras e não com a
realidade da sua vida?... Vale pouco (...) São poucas as pessoas cujas palavras
correspondem por completo à realidade das suas vidas. Talvez seja esse o
fenómeno mais raro da vida. Na altura, ainda não o sabia. Agora não me refiro
aos mentirosos, aos safados. Só penso que conhecer a verdade, adquirir
experiências, de nada serve, porque ninguém consegue mudar o seu carácter.
Talvez não se possa fazer mais nada na vida que adaptar à realidade com
inteligência e cautela essa outra realidade inalterável, o carácter pessoal. É
a única coisa que podemos fazer. E mesmo assim, não seríamos mais sábios, nem
mais protegidos...”
nunca
é tarde para trazer os amigos para emergência dos dias que ainda restam viver –
nunca é tarde para resgatar uma amizade da mágoa e do esquecimento – a solidão. o silêncio e o envelhecimento dissipam
de vez as multidões. o barulho e a escassez
de tempo – com a aproximação do fim do corpo aprendemos o valor das coisas
simples. o valor da ausência. da saudade. do perdão e da aceitação do desacerto – somos todos um pouco
responsáveis pelo pecado e pelo erro dos nossos desencontros
“ … Uma
pessoa envelhece lentamente: primeiro envelhece o seu gosto pela vida e pelas
pessoas, sabes, pouco a pouco torna-se tudo tão real, conhece o significado das
coisas, tudo se repete tão terrível e fastidiosamente. Isso é também velhice.
Quando já se sabe que um corpo não é mais que um corpo. E um homem, coitado,
não é mais que um homem, um ser mortal, faça o que fizer… Depois envelhece o
seu corpo; nem tudo ao mesmo tempo, não, primeiro envelhecem os olhos, ou as
pernas, o estômago, ou o coração. Uma pessoa envelhece assim por partes. A
seguir, de repente, começa a envelhecer a alma: porque por mais enfraquecido e
decrépito que seja o corpo, a alma ainda está repleta de desejos e de
recordações, busca e deleita-se, deseja o prazer. E quando acaba esse desejo de
prazer, nada mais resta que as recordações, ou a vaidade; e então é que se
envelhece de verdade, fatal e definitivamente. Um dia acordas e esfregas os
olhos: já não sabes porque acordaste. O que o dia te traz, conheces tu com a exatidão:
a Primavera ou o Inverno, os cenários habituais, o tempo, a ordem da vida. Não
pode acontecer nada de inesperado: não te surpreende nem o imprevisto, nem o
invulgar ou o horrível, porque conheces todas as probabilidades, tens tudo
calculado, já não esperas nada, nem o bem, nem o mal… e isso é precisamente a
velhice. Porém, há ainda algo vivo no teu coração, uma recordação, algum objetivo
da vida indefinido, gostarias de tornar a ver alguém, gostarias de dizer ou
saber alguma coisa, e sabes que um dia chegará esse momento e então, de
repente, já não será tão fatalmente importante saber e responder à verdade,
como pensaste durante as décadas de espera. Uma pessoa compreende o mundo,
pouco a pouco, e depois morre. Compreende os fenómenos e a razão das ações
humanas. A linguagem simbólica do inconsciente… porque as pessoas comunicam os
seus pensamentos por símbolos, já reparaste?...”
o
carácter de um homem é inalterável.
não envelhece. não se perde –
tenho a certeza de que os meus amigos continuam jovens no seu carácter –
um dia chegará o meu momento para resgatar todos os meus amigos silenciosos –
escreveremos então [todos] um novo tratado de amizade – renovado. reconciliado
e definitivo
19/12/2017
eu e: o zé do gerês
o zé antunes. com mais quatro anos do que eu. era um dos primogénitos da praça do comércio – entre amigos. entre rapazes. quatro anos de diferença são uma enormidade de tempo. um é homem-feito. adulto. namoradeiro. com a personalidade formada e interesses perfeitamente definidos. enquanto o outro ainda teima em sair da adolescência. inseguro. à procura do seu caminho. intranquilo com o futuro. com a personalidade a oscilar entre o regresso ao protecionismo familiar ou a emancipação irrevogável – a adolescência é uma aurora dolorosa – batizámo-lo de zé do gerês porque as suas origens remontavam à vila do gerês-rio caldo. uma aldeia turística. integrada no parque nacional da peneda-gerês. no norte de portugal – o zé veio com a sua mãe e irmã viver para a nossa rua – compraram um apartamento numa das laterais da praça do comércio e instalaram-se com a discrição de quem chega duma aldeia do interior – uma família da classe média. discreta. reservada. simpática. educada e muito religiosa – a mãe do meu amigo. além das visitas regulares à igreja. raramente se aventurava para a rua – este recolhimento obrigava o zé a alguns cuidados. ele não gostava de deixar a mãe sozinha e sempre que a irmã saía recolhia-se em casa – o pai emigrara para o brasil quando o nosso país ainda vivia debaixo da ditadura salazarista – éramos uma nação pobre. com uma repressão interna violentíssima. triste. sem futuro. a viver uma guerra colonial para onde os jovens eram obrigados a combater e morrer – um país fechado ao mundo exterior. sem qualquer perspetiva de melhoras políticas e económicas a curto prazo – a geração dos nossos pais foi obrigada a deixar tudo para trás e a partir pelo mundo em busca de uma vida melhor para os seus – as famílias ficavam suspensas entre a saudade e a dor da separação – estas separações não eram fáceis nem para os que partiam nem para os que ficavam – o governo brasileiro na década de sessenta prometia melhores condições de vida para quem tivesse coragem de atravessar o atlântico – naquele tempo a distância era do tamanho de um oceano inteirinho. não havia voos comerciais a toda a hora. a internet não passava de ficção e as ligações telefónicas para além de serem caríssimas eram dificílimas – era o tempo da carta. do telex. do telegrama. do rádio e da saudade silenciosa – o zé tornou-se adulto muito cedo. era o homem da casa e talvez por isso evitasse falar do seu pai. nós sabíamos que sofria. uma saudade escondida num emudecimento conformado – todos os seus amigos respeitavam esse seu silêncio magoado – nunca saberemos até que ponto este condicionamento familiar alterou a personalidade do meu amigo – mas nem tudo era mau para o zé antunes. fruto do sacrifício do seu pai a sua família era marcada por uma qualidade de vida elevada. em especial o zé. usufruía de um poder financeiro invejável e raro para a época – ao zé antunes nada lhe faltava. vestia bem e caro. fumava cigarros com filtro e encantava com charme num estilo muito pessoal – acredito que o meu amigo foi o primeiro homem metrossexual da nossa cidade – era um homem moderno. gostava de cuidar da sua higiene e principalmente do seu visual – com um pouco mais de um metro e setenta. magro. bonito. cabelo curto. espesso. e orelhas tão pequeninas que nunca percebi como conseguia ouvir – uma pele branca cuidada com cremes perfumados deixava emergir dois olhos vaidosos. negros. abertos à claridade. doces. encaixados numa boca pequena. educada. carregada de palavras difíceis e histórias de maravilhar – o zé era um excecional contador de histórias. como era bom ouvi-lo – sem barba. apenas alguns pelos rijos rompiam do queixo numa fúria selvagem – no entanto. numa postura séria e orgulhosa. fazia questão de dizer que os cortava com a última novidade do mercado para barbas difíceis: a gillette cup – o zé não andava. desfilava pelas ruas como se estivesse num desfile de moda. olhos no ar. meio sorriso. quase importante. aprumado pela roupa. impecável. com gosto. num ar desportivo: blazer pela mão. pulôver com decote em bico com os colarinhos da camisa presos no seu interior. calça de ganga justa. sapato de pala. meia à cor da calça. cheiroso numa leveza subtil. mas suficientemente eficaz para se sentir a fragrância num raio de dez metros – era assim que o meu amigo habitava o no nosso mundo – eu tinha vaidade no zé. gostava de o ver bonito. quanto mais bonito ele estivesse. mais bonito ficava eu ao seu pé – sempre tive orgulho no meu amigo – a acumular com todas estas deferências positivas o meu amigo era um comunicador de excelência. aliado duma retórica eloquente. com variadíssimos recursos de argumentação apoiado em procedimentos enfáticos e aparatosos capazes de convencer qualquer pessoa sobre qualquer coisa – na sua retórica. se necessário. o zé colocava o estilo acima do conteúdo e a convicção acima da verdade – era um mestre da oratória – esta lábia era também aplicada aos encantamentos do mundo feminino. o que levava a que o nosso amigo andasse sempre muito bem acompanhado – quase me arriscaria a jurar que o zé era constantemente alvo das atenções femininas – no seu caso. este assédio não era indesejado. o zé gostava de passear as amigas pelo casco velho da cidade. gostava de ostentar a sua virilidade – o zé do gerês era um rapaz muito vaidoso. sabia tudo sobre moda e fazia questão de a seguir com afinco trajando-a com brio e satisfação – vestia-se na pic pic. a loja de roupa da cidade mais procurada pela nata da sociedade bracarense – frequentava esta loja apenas os poderosos e ricos dos negócios. ilustres jogadores da bola e outros que não tendo nenhum título ou profissão aparente faziam também questão de se misturarem com o jet set bracarense – o zé antunes nunca saia de casa com as cores descombinadas. na época não havia nada que não combinasse com a sua figura. as cores da roupa misturavam-se umas com outras. mas no final tudo batia com elegância. com graça. com etiqueta. por onde passava tudo se arrastava para dentro de si com graciosidade. como se houvesse um feitiço. o zé era um príncipe – gosto de o recordar no café [casa de pasto luso brasileiro]. sentado. de perna alçada. a esticar a meia pela silhueta da perna. com delicadeza. num ritual de afirmação pessoal. como se quisesse dizer: eu estou aqui – tudo à sua volta era um círculo mágico e todas as palavras eram dele. e ouvíamos. e tudo o que dizia era um ensinamento. e mais uma palavra e mais magia e da cartola mais uma surpresa. o zé era encantador. e mais um vocábulo difícil e outro e o círculo aceso de admiração. pasmo. e bate com o cigarro no maço do tabaco. três ou quatro pancadas e o cigarro na boca com uma delicadeza proporcional aos seus encantos de oratória – é este o zé que guardo dentro de mim numa amizade pura. boa. que nunca parou de sorrir. em abraço. forte. calcificada pelo tempo. para sempre. até que a morte nos leve – eu gosto muito do meu amigo – o zé de gerês gostava de saber coisas que mais ninguém sabia. quer dizer. eu não sabia – o zé era um rapaz culto e gostava de mostrar tudo o que sabia aos amigos. também era vaidoso no conhecimento – uma espécie de google daquele tempo. o que não soubéssemos perguntávamos ao zé que logo ele dava um palpite – era um rapaz fantástico. calmo. sempre à procura de uma graça corrosiva. um humor de fino recorte sempre acompanhado de um sarcasmo delicado. com tiradas rápidas. seguidas de pausas que nos deixavam em suspensão. à espera da próxima piada. e aquele ar malicioso a cair-lhe do olhar. a roçar o gozo. o escárnio. mas tudo dito com elevação. com conta. peso e medida. nada e ninguém se ofendia. era um mestre no humor – o zé ao sábado comprava sempre o expresso. trazia-o debaixo do braço com o título virado para fora. tinha vaidade em ler o semanário. gostava de política – naquele tempo só os intelectuais comparavam o semanário – também passei a comprar o expresso. mas nunca cheguei a ser intelectual e nunca aprendi tanto como ele – depois do jantar reuníamo-nos no café da nossa rua e quando este encerrava mudávamo-nos para debaixo do alpendre da praça e ali ficávamos em conversa resistente. até que o sono ou os compromissos nos obrigassem a regressar a casa – com o aproximar da meia noite. o zé tornava-se inquieto e o controle dos ponteiros do relógio era feito ao minuto – antes da primeira badalada da meia-noite. já ele tinha que ter a chave metida na porta de sua casa – e era assim todos os dias. foi assim todos os anos até ao dia em que partiu para coimbra para tirar o curso de direito – senti muito a falta do meu amigo – as noites nunca mais foram iguais. faltavam-me as suas histórias – o zé. para mim. também emigrara. e a distância era muito mais do que um oceano – compensou com a sua licenciatura. nesse dia senti um enorme orgulho e vaidade. o meu amigo era finalmente advogado – aos domingos encontrávamo-nos sempre na sacristia da igreja do carmo. éramos nós que recolhíamos as dádivas dos fiéis durante a eucaristia dominical – o zé recebia as esmolas no corredor direito. eu no esquerdo e o sacristão no corredor central – a missa dominical das onze e trinta agregava praticamente toda a comunidade crente da nossa área residencial – naquela época pertencer à família cristã era a chave mestra para que caíssemos nas boas graças de amigos. vizinhos e até família – a minha mãe enchia-se de orgulho sempre que alguém me elogiava na vocação de servir a deus – tenho que agradecer ao zé esse estado de graça granjeado em minha casa. foi da sua responsabilidade a minha participação na missa dominical – a única família que escolhemos livremente são os amigos. o zé era o meu irmão mais velho. adorava-o. tudo o que desejava era ser como ele – gosto de recordar aquela história que ele contava do judas – o judas era um rapaz mais ou menos da sua idade que depois dos pais emigrarem ficou a morar com a sua avó na sé. zona de braga com alguns problemas de integração social – por detrás das nossas casas havia uma área enorme de campos. onde uma vez por semana se realizava a feira de braga – era ali o nosso ponto de encontro nas férias para os confrontos amistosos [nem sempre] futebolísticos – de acordo com o que meu amigo contava. logo nos primeiros dias da sua chegada a braga. praticamente sem conhecer ninguém. foi para o campo da feira quando avistou um rapaz muito mal vestido. esfarrapado e sujo a um bom par de dezenas de metros – mais tarde veio a saber que este indivíduo tinha a alcunha de judas – o judas conforme o nome diz não era um rapaz dócil. pelo contrário. não frequentava a escola. era arruaceiro. dedicava-se a pequenos furtos e o passatempo preferido dele era a briga – o judas andava sempre munido de uma fisga de elásticos de câmara-de-ar. era com esta arma que executava pequenos assaltos aos miúdos – é aqui que começa verdadeiramente a história. o judas apontou a fisga a um rapazito que jogava a bola num dos campos pelados. e sem perder tempo com a mira. largou os elásticos e catrapus. em cheio na cabeça – enquanto o rapaz agoniava o judas calmante. já com a fisga recarregada. aproximou-se do puto e esvaziou-lhe os bolsos e partiu tão calmamente como tinha chegado – o meu amigo zé. acabado de chegar de uma vila-aldeia do interior nunca tinha visto uma coisa daquelas e pensou: estou perdido. este gajo é um terror. é um franco-atirador. um sniper de elite. estou lixado. vai infernizar a minha vida – se depressa pensou mais depressa fugiu para casa – mais tarde. veio a descobrir que afinal o judas não conseguia acertar sequer num poste a dois metros. tinha um problema de visão e naquele tempo não havia dinheiro para óculos – ríamos sempre com aquela história. principalmente com as expressões de terror que o zé imprimia na narração do evento – o zé adorava contar histórias e eu de as ouvir – o meu amigo era um homem bom. com ética. com carácter. com valores morais. justo com os amigos e com a amizade – o zé foi a pessoa que mais influência teve no meu crescimento. diria mesmo na minha vida – devo-lhe muito do que sou hoje – adorava-o. queria ser como ele. tinha vaidade na sua amizade – foi com o zé que descobri o valor da virtuosidade. da verdade e da justiça – não tenho nenhuma dúvida de que a sua proximidade me permitiu crescer com mais confiança. mais segurança nas relações sociais. com sentimentos mais positivos e mais estabilidade emocional – a nossa amizade fez de mim um homem mais íntegro. mais justo e mais tolerante – ensinou-me a questionar as minhas ações. entende-las. perceber se são boas ou más. corretas ou incorretas. justas ou injustas – só um homem justo sobrevive ao tempo. o zé vive em mim porque me educou com amizade – o zé antunes era o meu ídolo – sempre torci para que a vida fosse justa com ele – a amizade é um contrato para a vida – ainda hoje sou parte dele - posso encerrar o texto?
07/12/2017
eu e: o tiaguinho
o tiago araújo era mais velho do que eu um ano – alto como tudo. magro-elegante. com uns olhos azuis acesos dentro de uma pele tão branca que ofuscava todos os que estivessem à sua volta – o cabelo. ligeiramente escuro. forte e ondulado. tombava serenamente sobre uma testa que nunca se habituou às brigas de miúdos – o tiaguinho era um homem bom. correto. leal. dócil. aprumado na roupa e dotado de uma delicadeza requintada e harmoniosa – o tiaguinho não andava. marchava como um guerreiro em tempo de paz. herdou o passo do pai que era militar de infantaria – era um homenzarrão que caminhava sempre como se o mundo tivesse obrigação de esperar por ele. nunca o vi correr – digo que nunca o vi correr porque mesmo quando se atrevia a jogar futebol. era tão desengonçado que ninguém sabia ao certo se estava a cair ou a tentar levantar-se – em boa verdade não tinha muito jeito para a bola. mas também não era coisa que o preocupasse. tinha sempre lugar na equipa. todos o queriam no seu time pela robustez física – sempre que tentava correr a sua face transfigurava-se numa fúria desgovernada. os adversários. aterrorizados. com medo de levar uma valente canelada. preferiam deixá-lo passar – afinal tudo não passava de uma fúria dócil – o futebol trazia-lhe para o rosto uma excitação enfurecida que em mais nenhum momento poderia ser observada – o tiago era um homem de paz. sereno e tranquilo – todos os homens bons são de paz. são calmos e tranquilos – como era bonito o meu amigo. especialmente quando se trajava de fato. era o único da rapaziada que se vestia como um alto funcionário. um “self-made man” da época – que classe. se já era um homem alto. com o terno. enfarpelado de cima a baixo. num resplandecente algodão fino. ficava gigante. maior do que a torre eiffel. um verdadeiro monsieur – não havia mãe nenhuma dos meus amigos que não se encantasse com tiaguinho. a minha mãe não fugia à regra e fazia questão de me dizer: põe os olhos no teu amigo. anda sempre asseado. com brio. tu pareces um desgraçado – eu era um desgraçado ao seu pé – educadíssimo e sempre encavalitado num sorriso que. quando virava gargalhada. ecoava pelos confins do mundo como um rugido de leão – quem não se lembra das suas gargalhadas escangalhadas e contagiantes – a seu lado a tristeza esbatia-se paulatinamente. acabando por partir para outros finais – o meu amigo era uma mente humana distinta. culto. evoluído. esclarecido num pensamento aberto ao mundo. dotou-se de uma perceção visionária invulgar: foi o primeiro da nossa geração a possuir um computador zx spectrum – em boa verdade vos digo. ninguém percebia muito bem o uso a dar àqueles monstrinhos – apenas os mais atentos e informados compreenderam que a viagem no tempo se faria com inteligência artificial – o tiago percebeu. foi o primeiro informático da nossa rua e um dos primeiros deste país – era singular – para lá desta novíssima bricolage tecnológica o meu amigo adorava automóveis. sabia tudo sobre motores e pilotos. nada lhe escapava em desportos motorizados com quatro rodas. uma paixão do seu tamanho – sempre que a TV transmitia carros a roncar aí estava o tiaguinho colado à transmissão. ninguém o apanhava na rua – à noite abrigávamo-nos debaixo do coberto da praça e ali ficávamos em cavaqueira amena. a queimar o frio com conversas iluminadas apenas pelo luar. a divagar. extasiados com tanta juventude. a falar de tudo para. muitas vezes. não dizer quase nada – naquele tempo o nosso único inimigo era o relógio – adorávamos falar. o truque para uma boa camaradagem é falar. falar de tudo. de futebol. de mulheres. de carros. de ciência. de roupa. de vaidade. de livros e das suas histórias – foi do meu amigo a dica para ler agatha christie – adorei e fiz um parceiro para a vida. o belga hercule poirot – foi um período bonito. descobrimos que. mais do que ler os livros da agatha. era falar deles – assim fizemos. falamos do poirot. do seu enredo. do mistério. de venenos. de facas e pistolas. do expresso do oriente. de criminosos e inocentes. falávamos como se para cada livro pudéssemos inventar um outro final – éramos os dois felizes – riamos muito – sua mãe tinha um quiosque numa das praças mais emblemáticas da nossa cidade. não era uma tabacaria como a de fernando pessoa. era um quiosque numa estética pós-moderna. em inox reluzente. tratado com modernices. envidraçado em trezentos e sessenta graus à volta. com uma guarita de venda protegida por jornais diários e revistas do jet set – no seu interior. em substituição da mãe. o meu amigo comandava o negócio com segurança – à postura profissional. acrescentava um sorriso gracioso enquanto manuseava com delicadeza os valores selados. o tabaco avulso. guloseimas. e ainda outras bugigangas que por serem uma afronta à moral pública. estavam escondidas nas prateleiras subterrâneas do desejo carnal – ali ficava ele. em posse séria. de respeito. como se tivesse aos comandos de um carro de combate. enquanto eu intercalava a conversa com a chegada e partida dos clientes – mais tarde este meu amigo acabou por ser o meu padrinho de casamento – foi um dia muito especial para ambos. pois foi nesta celebração que conheceu o amor da vida dele – nunca me arrependi da escolha. era um homem bem-nascido. bom e honrado – que mais podemos querer para um amigo. mais nada. o tiaguinho tinha tudo – ainda hoje tenho orgulho de ter a sua assinatura como testemunha cristã num dos dias mais importantes da minha vida – éramos jovens. éramos jovens com sonhos. éramos bons rapazes – em memória. por testemunho de outros amigos. um momento que marcou para sempre a sua personalidade afetiva no seio do nosso grupo da praça – certo dia. por perto do natal [creio]. o tiago chega à porta da lusitana. padaria que juntava à venda do pão também algumas guloseimas. e já com a porta fechada. bate ao vidro e pergunta à funcionária: celestina tem bombocas? e ela responde num sorriso exclusivo construído só para si: não tenho não menino. estão esgotadas. só para a semana – a partir desse dia nunca mais deixamos de lhe perguntar pelas bombocas da celestinha que por mero acaso era uma mulheraça com um par de seios maiores que uma dúzia de bombocas – não conheci ninguém que não tivesse um carinho especial pelo nosso tiaguinho – era realmente um catraio diferente de todos os outros – tenho saudades do meu amigo. tenho saudades de nós. tenho saudades dos passeios noturnos pela nossa cidade encantada. tenho saudades dos sonhos partilhados. das loucuras. das conversas sobre mulheres. principalmente das que tinham seios enormes e conduziam descapotáveis – tenho saudades de lhe dizer: até amanhã. dorme bem. amanhã será nosso – tenho muitas saudades – a vida escolheu ruas diferentes para a nossa caminhada. mas a distância nunca me apagou nenhum afeto – tempo também é aprendizagem e saber – hoje ainda gosto mais deste meu camarada da juventude – vou gostar para a eternidade numa terna ilusão de que um dia possamos reviver esta vida noutra dimensão. seremos então novamente crianças bondosas e reconstruiremos definitivamente a estrada que nos separou – um amigo não se esquece. por mais longa e distante que tenha sido a viagem – o tiaguinho pertencia ao império dos homens bons
02/12/2017
eu e: a estante dos livros à esquerda
à minha esquerda. uma estante com dezenas de livros que ainda não li – sempre quis acreditar que a minha velhice seria feita de paz. silêncio. memória. afetos e leitura pacata. construída lentamente com o meu pé-de-meia de livros – livro a livro desocuparia a estante da memória. da paixão. do conhecimento. da gratidão. e o espasmo final consagrado a um dever consumado – finalmente o corpo mirrado de todas as sensações – no quarto ao lado. no vazio da mesinha cabeceira já pouco resta de mim. um perfume dior despojado de fragrâncias. restos de um lápis de grafite com os dentes cravados na sua extremidade. uns óculos com dioptrias ultrapassadas. um creme de corpo sephora de pouco mais de quatro euros. uma aliança preservada por um amor que dói. sem saber exatamente onde dói. e um envelope lacrado e escrito com os seguintes dizeres no exterior: para o dia seguinte – ao centro da mesinha. em diâmetro exato. uma lâmpada protegida por um abajur sombrio em completa harmonia com os deuses da escrita. faz a guarda de honra ao livro que encerrará em si o meu último sopro de vida – ali estou eu preso numa página interrompida. agarrado a um eufemismo idiota que nos tenta impingir a ideia de que os livros são eternos e perduram para além da morte – o livro só é eterno enquanto o leitor vive o – na página interrompida. eu morri – para a eternidade apenas um símbolo de que um dia existiu vida no interior daquelas resmas impressas: um marcador de livro a dizer “keep calm” – claro que estou calmo. estou morto e todos os mortos são calmos. por mais agitação que tenha tido a sua vida – o único que poderá estar nervoso. se estiver vivo. é o autor do livro que. sem o seu leitor. acabará também por desaparecer – nem todos os autores são imortais. mas todos os leitores o são – só o livro insiste em negar uma morte decretada oficialmente pelo silêncio no seu interior – os dedos não mais voltaram a acariciar o papel – hoje morremos todos. eu. o autor. e o leitor comum – nunca vivi sem livros. a minha primeira recordação com os livros chega-me dos almanaques da disney – aos dez anos apaixonei-me pelos cinco de enid mary blyton – os cinco na torre do farol foi a minha primeira leitura e aquela que me amarrou aos livros para sempre – aos doze anos fiz-me homem com os clássicos da literatura portuguesa: júlio dinis. eça de queiroz. e camilo castelo branco. tornaram-se os meus favoritos – mas foram com os romances do júlio dinis que descubri a bondade. a dignidade. a honra. a ética. a esperança. e o verdadeiro amor – morgadinha dos canaviais. uma família inglesa. e as pupilas do senhor reitor marcaram-me para a vida – júlio dinis moldou o meu crescimento e tornou-se no meu guia literário – o romantismo “ é a arte do sonho e fantasia” – eu cresci num sonho e perdi-me em fantasias – aos dezasseis acrescentei aos livros os amigos que ainda hoje guardo no coração – o bando da praça do comércio – éramos muitos. todos bonitos. todos diferentes. e de todos tenho saudades – em especial do joca. luís vieira. e mais recentemente o sérvio. acredito que partiram para um outro mundo mais perfeito e estão neste momento os três felizes – sempre amei os meus amigos. mesmo quando a vida nos tramou com o crescimento – crescemos todos tanto. e tanto ficou por dizer – nunca deveríamos ter crescido – éramos muito mais divertidos a jogar à bola e à carica – infelizmente não é assim a vida e para morrer em paz é obrigatório crescer – todos crescemos – os meus amigos cresceram mais do que as montanhas. ficaram enormes. gigantes de bondade. alguns com cabelos brancos. mais curvados. com o céu pelas costas. a fazer peso. com as nuvens por baixo dos joelhos. e os braços abertos como se pudessem voar a qualquer momento – sempre soube que os meus amigos um dia iriam voar. os anjos voam. os duendes também voam. e as gaivotas também – os meus amigos são seres sensíveis. delicados. frágeis como o cristal de murano. rodeados de água e marés. com histórias que fazem encantar a memória – tenho saudades dos meus amigos – tudo o que me resta são recordações e é nestas que resisto à inglória velhice – ninguém quer magoar ou perder o que ama – sei que. na vida. o que gostamos de verdade traz medo e insegurança – tenho medo de os perder apenas na saudade – os amigos são deuses que vivem na terra – honro este medo bom – mesmo com medo hoje apetece-me falar de dois amigos muito especiais – confesso-vos que estou aterrorizado. sinto-me gelado por dentro. uma parte de mim desmorona-se para as palavras. e a outra a serrar o que me resta das mãos – tenho medo – tenho medo que um dia não gostem de ver os seus nomes ligados a uma escrita meia tonta – bem sei que a minha escrita é também uma escrita de afetos. amiga. com paixão. com saudade. com um abraço que quase sufoca de tanto sentimento – mas confesso que estou com receio – que me perdoem se um dia não gostarem desta minha partilha. estarei pronto para receber um puxão de orelhas. estarei pronto para pagar a minha ousadia carinhosa – mas não resisto. tenho que vos falar deles. tenho que falar com eles. tenho que os trazer para o meu pé. olhá-los novamente. de mais perto. segredar-lhe como tudo foi especial. como é bom saber que existiram. existiram na esperança. na camaradagem. na fraternidade. na viagem e no silêncio do mundo – sempre os guardei dentro de mim – hoje quero-os comigo neste bocadinho de palavras que são só minhas. quero que me acompanhem como se fosse mais uma das nossas deambulações juvenis. quero-os outra vez inconscientes. malandros. gaiatos. quero-os bonitos como nunca – mas também quero trazê-los para o meu universo crescido e apresentá-los aos meus leitores como os melhores dos melhores. mostrá-los ao “desconhecido espaço global de redes de computadores”. com honra. com estima. com porfia. com admiração. e com gratidão – vou trazer até vós dois amigos muito especiais. amigos do peito que marcaram a minha vida de forma muito particular: *o tiago e o zé antunes – sem eles. envelhecer seria muito mais difícil – a terra existe para que os deuses possam descansar – zé e tiago. espero que um dia encontrem aqui o descanso merecido
*[um dia escreverei sobre um terceiro amigo também muito especial – encerrarei então em definitivo o meu trio de companheiros de uma vida]
29/11/2017
eu e: as fotos à direita
sento-me
em mim. a hora é do corvo. profunda. desmonto
os olhos do presente e percorro os quadros pendurados na parede à minha direita
– as fotos confirmam que existo – afinal. não sou um produto de uma qualquer
máquina do tempo – sei que existo aqui e neste momento porque estamos todos nas
fotos – os que amo não se cansam de me olhar. ou talvez seja apenas a ilusão de
um instante preservado no tempo – mas para que não haja dúvidas com as fotos. o
melhor será citar decartes: “penso, logo existo” – e ali estou eu em mais
uma velharia fotográfica: cara
sisuda. cabelo escuro-jovem. calça bege. blusão de bombazine castanho.
mãos nos bolsos e uns óculos enormes contra o sol do mundo – os olhos sempre
foram a minha vulnerabilidade – os índios americanos não gostavam de tirar
fotos porque acreditavam que estas lhes roubam a alma – não sou índio. mas acredito
nessa crença – não sei se foram as
fotos. mas alguém me roubou a alma.
alguém me esvaziou por dentro – apostava o pescoço em como perdi a alma pelos
olhos. não há um único dia em que
não me doam – enquanto tive alma nunca deixei que o futuro me assustasse – não
tinha medo de nada. o corpo estava
sempre aprumado. perpendicular à
ambição. num ar sério. como se transportasse em si um mistério. os olhos encovados. escuros. as mãos escondidas para que ninguém soubesse o que pensavam. e as
pernas sempre em posição de correr – sempre com um grande aprumo diante da avidez. não era vaidade. era segurança nas mãos – olho.
olho com o que me resta da vontade de olhar. olho com saudade. olho
com nostalgia. olho com raiva. olho com uma vontade furiosa de eliminar
o futuro estatelado numa parede pastel – as primeiras fotos são de um cinzento-ingénuo. aberto à coloração. imaginativo. num confiante forte-opaco.
a contrastar com a moldura faia-clara – ao lado. numa moldura mais escura.
sobressai o cinzento-dúvida. com a
tonalidade a puxar para a solidão.
para o retiro. mergulhado em
pessimismo e numa vontade única de fazer apenas o que estava certo – há
cinzentos que nos enganam para a vida toda – ainda não tinha percebido que para
sobreviver é necessário aceitar o
erro. ultrapassá-lo. moldá-lo até se tornar invisível. ajustá-lo às necessidades da maioria. programá-lo para o sorriso enganoso e
fazer de conta de que aceitamos aquela velha máxima: errar é humano – nunca foi bom a fazer de conta – para mim. o erro. nunca foi humano. com o erro uma parte da minha
confiança morria de amargura – nunca fui capaz de recuperar destes erros –
nunca aceitei o erro e isso trouxe-me um erro ainda maior: a busca de uma perfeição imaginária – nas últimas fotos.
encontrei-me num cinza-triste. corroído. pouco afetivo. zangado. e onde o prumo dá indícios de estar preso por um fio –
ninguém aguenta tanto cinza-triste estampado numa parede bege-pastel – *“a felicidade não é um ideal da razão.
mas da imaginação”
*imannuel
kant
21/11/2017
eu e: a escrivaninha e a janela da frente
2. a
janela da frente;
3. as
fotos à direita;
4. a estante
dos livros à esquerda;
5. o tiaguinho;
6. o zé
do gerês;
7. a oferenda
aos meus dois amigos;
8. as
mulheres do meu cunhado;
9. a
minha circunferência;
10. a vida
1.
eu e a escrivaninha
sei
que estou a desaparecer – um dia destes serei invisível. ausente. sem voz e sem
uma única palavra que identifique o que fui.
estarei retirado dos afetos. dos
sorrisos. dos sonhos e das
desilusões. serei sombra. memória e silêncio misericordioso – mas
neste momento de assentimento. enquanto
continuo a completar a existência da vida.
observo em conciliação o que me resta da morada criada: desarrumo o que sempre esteve fora de ordem. procuro o que nunca encontrei. perco-me a ler papelinhos quadrados
sem qualquer relevância temporal – em tempo real subsiste o espectro dos papelinhos
quadrados gizados a pó no tampo granítico da escrivaninha – o testemunho de que.
pelo menos num dia. tudo tem a sua importância. por mais insignificante que fosse
o seu conteúdo – abandono e esquecimento. é o que me sobra desta desorganização
validada pelo meu DNA – é daqui que vos escrevo num computador inimigo do perfume
a papel – é daqui que. com as palavras. me escondo do mundo das luzes – é daqui
que me entrego em vocábulos de alforria – é daqui que me absolvo de pecados que
ninguém compreende – é daqui que me faço gigante como anão. quando escolho nunca
usar maiúsculas – é daqui que emancipo as palavras. preparando-as para o mundo
da crítica – é daqui que me estarreço de medo pela vossa leitura – é daqui que me
entrego num abraço metafórico maior do que “as dez mil coisas*” – eu não sei se
sou mais do que dez mil coisas. sei apenas que sou uma coisa que se magoa. que
chora. que tem cada vez mais medo de um dia não saber o que fazer com o que
escreve
*metáfora
chinesa que chamam ao mundo “as dez mil coisas” – in: este ofício de poeta -
jorge luís borges
2.
eu e a janela em
frente
em memória. uma janela com um punhado de quase nada
permite-me agarrar uma nesga de um mundo onde escolhi não existir – não nos
podemos impor ao mundo. até a multidiversidade
negativa contribui para a evolução da espécie – entre a persiana e a meditação.
um pedaço de céu vazio de tudo quanto me tentaram ensinar à força – o céu já
não é destino final para quem sempre tentou fazer o que era certo – agora. o céu é apenas o teto do que
penso – mas está tudo bem. não há
ressentimento. estão todos indultados. o culpado sou eu. nunca deveria ter ousado questionar o que o mundo certifica de forma
instintiva – a janela é agora a
minha única oferta para os que ainda se sentem tentados em me reencontrar –
quando não estou na janela estou a escrever para vocês – vocês são a minha única
esperança para que o que me resta do mundo faça sentido – todos os meus sonhos
são maiores do que eu. carrego-os como fernando pessoa os carregou– também eu *“tenho em mim todos os sonhos do mundo” – saibam
eles. todos os dias. que me faço
existir mesmo que em frente à minha janela não exista nenhuma tabacaria – em
boa verdade vos digo: a minha janela
dá para nada. não sei como vos
descrever esse nada. pois. para isso. teria que saber o que vale a palavra de um
homem perante uma janela que não dá para nada – não me tenho em boa conta.
estou desiludido. triste e sem vontade de sonhar – nenhum homem sonha o que
desconhece – escrevo. escrevo como
se a janela estivesse prenha de uma tabacaria – não está. tudo o que tenho
entre mim e a janela é o que os olhos veem. e o que veem é nada – sem tabacaria
morre também o sonho – a morte será para sempre um sonho inacabado – perdoem-me.
sei que perdi todos os sonhos – nenhum homem pode viver sem sonhos – estou
morto dentro de um sonho que insiste em não morrer – não quero saber o que há
para lá dos sonhos. porque tudo quanto sonho está morto. doente de um mal que
não é mal nenhum. é apenas a vida a acontecer no seu melhor e seu pior – da
minha janela não vejo nenhuma tabacaria. nem gaivotas. nem gente como eu. nem
sonhos a chegar ou a partir. da minha janela vejo-me a olhar o que não há
porque dentro de mim não há nada para além do sonho de um dia escrever qualquer
coisa que não seja nada – a todos os outros sonhos peço que me esqueçam. tornaram-se
nada e não há nada que possa engrandecer um corpo que desistiu de sonhar
*fernando
pessoa
13/11/2017
07/11/2017
perder-me para me encontrar
não olheis vós para o que faço. mas sim para o
que rabisco – o que enxergais em mim é uma ilusão para me libertar do que
escrevo – com a chegada da noite amarro-me aos sonhos e vagueio pelas
madrugadas tal qual um cigarro se incinera: brasa instável. cor impulsiva. metodicamente
vagaroso a retrair-se para o fim da combustão – e assim. em contagem
decrescente. dissolvo-me em cada pedaço de fumo que sobe ao céu – perco-me.
perco-me na noite pelo que penso e também me perco quando me recuso a pensar –
perco-me. perco-me na noite em sonhos e também me perco quando me recuso a
divagar – perco-me. perco-me na noite dentro de mim e também me perco quando
não estou em mim – um homem perdido só está bem onde não pode estar – a
insustentável leveza do meu ser vacilou. quebrou. faleceu com o corpo ainda a
reclamar mais vida – e o fumo proibido a chegar à casa dos deuses como chegam
os balões das romarias. perdidos. sem rumo. num vento incerto. sem tino – e a
enormidade do que sou a deixar de o ser numa terra em apartheid – segreguei-me
– devagar devagarinho elevo-me rumo às bem-aventuranças. como se fosse o último
fumo. como se fosse vento. como se fosse catraio e me quisesse perder num
paraíso iluminado por uma luz esquecida no fundo da gaveta – por isso te digo:
perde-te com um laço. aperta-o à volta do inferno e faz-te memória – perde-te
de raiva e cospe para o chão que nunca te deu de comer – perde-te de coragem e prende
a ponta da corda à barbatana de um tubarão. deixa-te arrastar ao fundo das
palavras – absolve-te num parêntesis e não deixes que um ponto de interrogação
te faça voltar a [re]acreditar – morre
pois já não tens mais tempo para te [re]perder – perde-te antes que te falte a vontade de
escrever
03/11/2017
deambulações noturnas XXII
flagício: com
a noite mato-me de mil maneiras. e a todas sobrevivo. e em sobressalto acordo
31/10/2017
tempo
sacudi a noite
pela primeira
janela da manhã
restos de sonhos
suspensos
no pretérito
as orvalhadas já se
fazem sentir
e as noites
outrora lúdicas e
quentes
são agora
fatigosas e frias
30/10/2017
exilibris baco
17/10/2017
depois do outono
a chuva apronta a faina sobre a
terra
escala ao sol
em cada raio solar
uma gotícula. uma refrega
às nuvens:
o inverno adestra o rigor
11/10/2017
correspondência violada - 03
e
tudo tão longe. tão afastado
destas folhas de papel - não há tristeza nas palavras que gastamos a falar um com
o outro - e depois. tudo é dentro do corpo. tudo é feito de abraços e cada
palavra veste a alma com uma cruz bordada de primavera - e somos assim. falamos
ao ouvido para enganar a distância - somos feitos de vento. gaivotas com uma
caneta na mão
resposta a um
comentaria da vânia ao meu texto – sinto.abril
04/10/2017
ouço no escuro
há noites
em que o escuro é feito unicamente de sons – ouço o coração. ouço o corpo a definhar.
ouço vozes que trazem saudade e outras que não consigo esquecer – ouço o medo. ouço os pés no soalho gasto e gargalhadas
de pânico também – ouço – ouço o
terror. ouço as pernas presas ao
destino e os pulmões imploram um último cigarro – ouço as mãos a pedir papel. ouço o negrume do tinteiro e os dedos
a bater palavras sem sentido – ouço – ouço
a brisa. ouço o tempo que faz na rua
e também ouço o tempo que vive dentro de mim – ouço aflição. ouço as montanhas a parir um rato e ouço o sino a bater quartos
como se fossem horas de partir – ouço – ouço os cantos à casa. ouço o corpo a virar de lado para
lado e ouço o que não mereço ouvir – ouço o outono. ouço os sorrisos das corujas e ouço pássaros que não sabem que existo
– ouço – ouço as marés. ouço as
gaivotas no mar e também ouço gaivotas que não sabem voar – ouço saudade. ouço fantasmas que não conheço e outros
que ajudei a criar – ouço – ouço a viagem.
ouço um futuro que não pisarei e ouço sapatos que não são meus – ouço o mundo
com estes ouvidos que me nasceram no peito e que se abrem como cravos pregados
a uma cruz que não profetiza remissão – fui condenado a ouvir os meus próprios
ouvidos – aqui estou. com o que me
resta da audição a suplicar aos deuses que me façam humano e me tapem os
ouvidos com a cera de ícaro – prometo que não voltarei a voar na direção do
sol
03/10/2017
in II - carne. lembra-te que és mortal
18/09/2017
o homem só cresce em silêncio
tenho a
certeza de que é sábado apesar dos raios de sol me parecerem diferentes daqueles
que me abordaram há oito dias – há nestes raios de sol um calor desigual. menos envolvente. menos sedutor. mais
divergente. egoísta. em total contramão com o ideal de todos
diferentes. todos iguais – este sol
acordou num formato de apatia discriminatória. mais seletivo. só
aquece o que quer. elitista. sem equidade. sem passar cartão. diria. indiferente – sinto o corpo a tremer.
a pele pálida. enquanto os ossos
engastalhados seguram. em
dificuldade. as mãos a pedir um novo
desafio – a vontade de escrever está cada vez mais intrincada. o sol. hoje. não aquece – os
pés cansados fogem do corpo a sete léguas.
enquanto este. em esforço. não para de os incomodar – já compreendi
que não adianta fugir do que o destino emparelhou – sinto o corpo diferente. assim como se me fosse desconhecido. estranho. sem nome próprio. marginal – se fosse uns sapatos diria que eram
novos. novos em folha. a estrear no mundo dos caminhantes. nas primeiras passadas. vaidosos por ostentar uns calcantes a
inaugurar caminho. acontecem os
primeiros obstáculos: duas
belíssimas bolhas nos calcanhares. vermelhas como um pôr-do-sol
escaldante. zangadas. obrigam o corpo a caminhar inclinando-se
para o lado do desespero – o primeiro sinal de que não há caminhos sem compromisso
– tudo que é novo tem que ser aprovado pelo corpo. primeiro desconfia. rejeita. com o tempo tolera. suporta. admite com condições e
finalmente. com o tempo. adapta-se ao molde ou obriga o molde
a adaptar-se a ele – sei apenas que esta sensação de calor. de quentura. agora
mais abrasamento. talvez aconteça
para me fazer perceber que não há dois dias iguais – vivo este sábado como se
fosse o primeiro da minha vida. com
medo – com a idade vamos querendo ver morrer algumas partes do corpo de que não
gostamos. já não achamos piada ao
molde. queremos parti-lo. despedaçá-lo. esmagá-lo e esconder
os cacos do mundo – é sábado. o sol
apanha-me de frente. forte. a expulsar as sombras para norte
enquanto o passado. incrédulo. não sabe como fugir da luz – fujo sem sair de dentro de mim – o silêncio perde-se nos raios de sol. coloco-me de lado. de perfil não existo. estou meio escondido e o outro meio é
apenas mistério – só meio corpo apanha uns quantos raios de sol – excesso de
luz faz mal à saúde. envaidecemo-nos
e deixamo-nos encandear. cegamos com os olhos abertos – tudo que é em demasia
acaba por fazer mal – não sei muito bem decifrar este calor. um calor-fogo que não é explicável. talvez transpiração. aflição. talvez premonição. talvez uma loucura que ultimamente não consigo tirar dos meus delírios
– estou no meu velório e não sei como dizer ao cangalheiro que me leve com
urgência para o crematório – as obséquias deixam qualquer morto à beira de um
ataque de nervos – já não há paciência para tanta pieguice sentimental – em boa
verdade. o que se aproveita de estar
morto é o silêncio – apesar deste descanso eterno me confortar preocupa-me não
ver ninguém a chorar – devo ter tido
uma vida de merda – não deixo saudades a ninguém – mas também estou a ser ridículo. enquanto estive vivo nunca me
preocupei com estas coisas do choro e agora. só porque estou morto. sinto a falta
– razão tinha a minha mãe quando dizia que a velhice é ingrata. o que não fazes de novo dificilmente
farás em velho – se tivesse feito um pé-de-meia de amigos de peito teria hoje
ao meu pé uns quantos em lágrimas – não
fiz. agora nada feito. o que não tem remédio. remediado está – sou muito pateta. afinal sempre soube que seria assim – nunca fui capaz de fazer amigos de
conveniência – não quis viver em mentira para morrer em verdade – deveria ter
deixado ordens para que me contratassem uma dúzia de carpideiras. não umas quaisquer. umas com provas dadas em velórios
complicados – evitar vergonhas à família é fundamental – talvez seja melhor
assim. sempre gostei do silêncio. o homem só cresce verdadeiramente em
silêncio – mas a realidade agora é
outra. depois de morto já nada
cresce. que se dane. afinal estou morto – o melhor mesmo é
continuar neste meu choro interior. este
choro que é só meu. mereço-o. mesmo que ninguém o ouça – sou digno deste silêncio – as
pessoas entram todas esfíngicas pelo velório adentro. com ar de quem sofre.
mas mal se começam a aproximar do defunto deitam os olhos ao chão. fazem o sinal da cruz e pernas para
que te quero – para algumas criaturas acredito que esta fuga não é por mal. não lidam bem com a morte e não
gostam de gente que já não respira – mas para outras alminhas a questão é
diferente. têm medo que o defunto lhes pergunte: que raio está tu aqui a fazer? e elas
a fingir que são surdas. a assobiar
para o lado enquanto percorrem os bolsos à procura de um lenço que nunca assoou
nada – mas também não consigo encontrar explicação para terem estes medos. afinal de contas o morto nunca as
tratou mal em vida não seria no velório que lhes pediria satisfações – mesmo
que me apeteça não posso chorar. não
posso mesmo. pode entrar alguém que
não me conheça bem. só os amigos me
viram chorar. não é depois de morto
que vou dar esse prazer a quem não me conhece – um homem não deve chorar em
frente a desconhecidos nem que esteja com as tripas na mão – é sábado. está sol. talvez este calor me tenha afetado a
moleirinha. talvez não esteja a
bater bem dos carretos. talvez…
talvez tanta coisa – aos sábados costumo estar sempre mais morto do que vivo –
para todos os efeitos ainda não estou morto.
estou a escrever e nenhum morto é capaz de escrever – escrever só mesmo os
moribundos