.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

24/05/2018

facebook - até mete nojo de tão lindo que é





imagem - google




apetece-me desabafar – hoje vou falar sobre a puta da internet – bem sei que não vai ser fácil. não se fala da internet sem perder uns quantos amigos cibernautas e mesmo que não os perca na sua totalidade. sei que alguns vão aziumar e dizer baixinho: se fosse escrever ao caralho – mas tem que ser. apetece-me. e quando me apetece alguma coisa sou como as grávidas. ou faço ou posso perder para sempre esta raiva de escrever – não vai ser fácil… mas em boa verdade. nos dias que correm. não há nada fácil. anda tudo no ar e tudo que anda no ar ou é avião ou likes do facebook

[dito isto]

na minha juventude. sabia perfeitamente distinguir quando um amigo estava num daqueles dias em que o pai lhe tinha dado calor às orelhas. o rosto trazia instalado um sistema de alerta facial que nos colocava de sobreaviso:

-- estou com pouca paciência. toca a abanar as orelhas para longe

mas se pelo contrário conseguisse um suplemento na féria semanal o semblante abria-se num sorriso rasgado de orelha a orelha e a partilha do aprazimento contagiava a amizade do grupo mais rápido do que a gripe espanhola:

-- bora pessoal. hoje fuma tudo à borla

sabíamos tudo uns dos outros. eramos amigos desde que o sol nascia até ao seu sumiço – o nosso rosto era uma impressão digital. única. intransferível e só interpretável pelos valores da amizade – eram tempos do arco da velha

[trinta anos mais tarde]

desde que apareceu a internet os amigos passaram a comunicar pelas redes sociais numa linguagem de símbolos e sons universais – passamos a estar diariamente presentes na vida daqueles que estimamos e também daqueles que pouco ou nada nos dizem – basta ter um computador e um registo no facebook e os amigos começam a nascer de todos os cantos. mais de mil no primeiro dia e ao fim do mês dez mil e ainda não completamos seis meses e já temos amigos até do japão e por cada amigo cem likes. enganchados nos likes milhares de dedos virados para um céu que nem sabíamos existir – não é fácil envelhecer com as novas tecnologias. todos os dias uma nova ferramenta e eu sem escola profissional para me ensinar como se faz um ctrl-alt-delete – o mundo de pernas para o ar e eu também – não tenho tempo para tanto amigo. não tenho tempo nem que viva mil anos. e o botão enter do meu teclado gasto. sem tinta. prestes a furar de tanto bater que sim – parece que estou triste mas não estou. estou ansioso. as teclas chamam pelos dedos. os likes sorriem. e os corações cada vez mais vermelhos. e os lábios carnudos. e ursinhos e gatinhos e o jardim zoológico nas teclas e cada animal quer dizer todo o tipo de merdas que não consegui aprender – estou velho. só sei mesmo deixar um polegar virado para o céu – espero que todo mundo saiba que estou confiante e bem de saúde

[hoje é um dia especial]

sinto-me global. sinto que me entreguei por inteiro ao mundo das redes sociais – só não quero é que me convidem para jogar á bola. não é por nada. mas já não sou dado a correrias e também não quero que ninguém saiba da minha mazelas nos joelhos – estou todo fodido – estou ansioso que o facebook me comunique o numero de likes recebidos no último mês – tenho fé que vou bater um novo máximo. estou no encalço do  CR7 – eu e o melhor do mundo a viver debaixo do mesmo teto global – os humanos nunca param de surpreender. como muita boa gente não sabia exprimir os seus sentimentos logo encontraram ferramentas virtuais para interpretar as emoções num espaço sem fronteiras e tudo à distância de um clique – carrega num smile amarelinho com a boca para cima já todo o mundo sabe que se trata de uma dose controlada de felicidade. dez smiles seguidos é uma overdose de júbilo. podendo. se não for vigiada. trazer sérios problema de saúde – mas para além destas preocupações e benefícios há uma outra vertente que valorizo imenso. um smile não envergonha a língua portuguesa. não é necessário escrever. basta o tal clique inofensivo e camões agradece – o único problema destas carinhas redondas a sorrir é perceber a sua veracidade. nunca saberemos se é uma imposturice ou se saiu mesmo do coração e como recebemos resmas delas por dia rapidamente apreendemos que o melhor é aceitar tudo tal e qual como vem empacotado. sem questionar. sem argumentar e no mesmo instante. para não acumular e perder o sentido da coisa. devolver a cortesia em modo de correio azul. um dedo virado para o céu acompanhado com uma dessas carinhas amarelas rechonchudinhas e a amizade ficará presa a cimento para sempre – quem inventou esta comunicação é um génio. se tivesse nascido na minha terra garanto-vos que enquanto não tivesse uma rua com o seu nome não descansaria – não importa o grau de amizade que liga o emissor com o recetor que a carinha encaixa perfeitamente no perfil. não importa se é gordo ou magro. letrado ou analfabeto. cavalheiro ou marginal. viva em braga ou no chile e fale castelhano ou checheno tudo funciona sobre rodas – estou até convencido que um dia será com estas figurinhas que entraremos em contacto com os extraterrestres – comunicar é agora espontaneidade e dá centenas de amigos ao dia – como é fácil iludir o nosso universo habitável – para perceber-mos se realmente alguém está bem na vida das redes sociais faz-se uma contagem rápida dos amigos e dos likes conquistados:

-- foda-se. parece impossível aquele nabo do antunes já tem mais oito amigos do que eu 

ganhar ou perder amigos é agora um drama com consequências muito mais gravosas do que no meu tempo – nesse meu tempo. um gajo embrulhava-se nuns socos e pontapés e no dia seguinte. como todos eram sempre poucos  para jogar futebol o remédio era mesmo fazer as pazes – um aperto de mão e a amizade continuava no mesmo ponto em que tinha sido interrompida – a oferta de amigos no mercado das redes sociais neste momento é maior do que a procura – os amigos estão ao preço dada uva mijona – és muito amigo se colocares muitos likes. e um amigo de trampa se te esqueceres de carregar os likes – o nosso mundo de amigos é agora assim: esgadanham-se uns aos outros por meia dúzia de likes:

-- ó filho se me deixares ser teu amigo prometo que te faço uns likes tão loucos que até vês a estrela polar

socialmente um gajo com poucos amigos nas redes sociais é um gajo marginalizado pela irmandade da Internet – se não me dás um like também não levas nenhum meu – se tem poucos amigos é porque o gajo não deve ser grande pistola. deve ter a mania que é chico esperto. menino da mamã – vai longe. vai – a solução é nem passar cartão e passar ao lado das postagens e das fotos – comentar um gajo com poucos amigos nem pensar é mau para a sua reputação

-- a estes merdas elitistas que não dão likes nem lhes dou confiança. bloquei-os logo – quero que se fodam todos

o problema é que todos querem ser amigos de todos para serem aceites no mundo global da internet – estes amigos não pesam às costas. não tens que os compreender. não tens que os ouvir. não tens que os chamar a atenção num momento menos feliz. simplesmente existem – é fácil a sua manutenção e mesmo quando se zangam por algum motivo não andam ao soco. nem que apertar a mão como cavalheiros – agora bloqueia-se o tratante e logo de seguida posta-se um frase pesarosa no perfil a dar conta da morte prematura de um amigo que verdadeiramente nunca o tinha sido:

-- tão bem lhe fiz e o agradecimento é este. não merecia. não tenho sorte nenhuma com os amigos

e o milagre da multiplicação já não é pão nem vinho. são amigos aos milhares. a emergir como ratos. de cantos que nem imaginava existir. e likes. abraços. migo e migas aos beijinhos e jinhos a perder de vista:

-- força migo;

-- deus é grande;

-- não mereces. mas vais ultrapassar;

-- aconteceu-me na semana passada. é uma tristeza mas já passou;

-- não ligues migo. esse gajo deve ser um paneleiro de merda;

-- se fosse comigo fodia-lhe as trombas;

-- vais [ver] que tudo se vai resolver. tem fé; 

-- se precisares de uma amiga sabes que para ti estou sempre aqui. jinhos;

-- cabrão. eu sei o que merecia esse filho da puta – há gajos que não se enxergam - abraço

e um homem depois destas manifestações de carinho incha mais que o peixe balão – bem sei que a maior parte destes amigos nem os conheço pessoalmente. e outra grande parte apenas os conheço de um único aperto de mão. ou de uma palavra reles de circunstância. ou então porque são amigos de amigos que também não conheço – o amigo de verdade. aquele que é mesmo amigo amigo nem me fala pelas redes sociais quando pressente um problema. liga-me por um telefone que quando toca ilumina o seu nome no mostrador – atendo. e logo chega em letra grande um like que não tem o dedo para cima. tem alegria suficiente para alimentar uma conversa por tempo impossível de contar – e assim é. retoma-se a amizade exatamente no ponto em que a interrompemos – não importa o tempo que passou. conhecemos todas as inflexões de voz e recuamos ao passado na única máquina que nos faz viajar no tempo: a amizade – os amigos de verdade são sempre únicos. cada um deles é um mundo único

-- que saudades tenho desses catraios

neste novo movimento tecnológico o importante mesmo já não é só o número de amigos que se possa somar. para esta malta o que começa a contar é a rapidez com que se coloca o like – um verdadeiro amigo tem que estar sempre atento. sempre de sentinela e mal surja a oportunidade o seu like tem de ser o primeiro – acabamos de postar um texto de quatro páginas e nos primeiros dez segundos já temos cinquenta likes. aos trinta segundos chegaram já mais de mil e antes do minuto atinjo os nove mil novecentos e noventa e cinco – incrível – passada a primeira hora lá chegam os últimos cinco amigos. envergonhados de cabeça baixa. cheios de desculpas esfarrapadas. quatro lamentam não terem tempo para ler a correr. o outro alegou:

-- a culpa é da EDP cortou-me a eletricidade. fiquei sem net apenas por ter em atraso o pagamento de uma fatura

entender este novo movimento das redes sociais é trabalhão que arrasa completamente com a intuição de um cristão. melhor. creio até que nos dias que correm já não há pessoas infelizes no mundo – esta nossa sociedade é um bando de gente socialmente feliz  

-- tudo mundo aparece nas redes sociais a rir com dentes mais brancos que o branco branco. o pepsodent faz milagres inacreditáveis – os dentistas estão fodidos – o pessoal escova os dentes cem vezes ao dia para aparecer no facebook

todas as manhãs mandam beijos de bom dia em múltiplos de dez o que me leva a pensar que talvez despertem sem falar um para o outro. creio que tem a ver com o respeito do espaço de cada um. no meu tempo os quartos eram muito mais pequenos e não havia forma de não invadir o espaço da nossa companheira:

-- vê se te despachas a sair da casa de banho que quero ir aí

ou então quando o amor andava no ar ela dizia:

-- deixa tudo arrumado que eu não sou tua criada 

os casais começavam logo pela manhã a comunicar e a partilhar tarefas e em juras de amor que perduravam para toda a vida. ela prometia que se despacharia mais depressa das pinturas e ele jurava pela sua saúde que nunca mais deixaria as cuecas no chão do quarto – mas isto está tudo mudado para melhor. todo o mundo se ama numa loucura que chega até a ser constrangedora para os casais mais antigos – agora sei que no passado o amor era muito fatela. senão vejamos – de tempos a tempos. curtos. vão para a internet. e como se fosse promessa.  botam palavras de amor aos conjugues que derretem qualquer coração de pedra. ninguém resiste a tanto love

-- estou convencido que se o shakespeare fosse vivo tinha que dar o triplo do veneno para o romeu bater a soleta. com este amor não é fácil falecer

o que mais me encanta é que nos dias de hoje não há casais incultos. todo o mundo tem uma bagagem cultural que constantemente me faz chegar as lágrimas aos olhos. oferecem frases de autores tão desconhecidos que até os próprios autores citados ficam na dúvida se realmente escreveram aquilo – o amor embrulhado em fitas de arte dura muito mais tempo – fico sempre muito orgulhoso deste seres humanos tão especiais. ainda bem que os amigos ficam realmente a saber que adoram literatura e que aproveitam todos os bocadinhos livres do dia para lerem e promoverem autores desconhecidos – são os novos mecenas do mundo tecnológico – depois vem a parte pior deste amor que arde e até se consegue ver. um amigo daqueles do coração. comunicativo e muito sensível às coisas do amor e que é capaz de ir a tribunal jurar a pés juntos que aquele amor é a oitava maravilha do mundo das redes sociais deixa um comentário em lágrimas:

-- parabéns. continuem a regar esse jardim de amor. vocês são perfeitos. nunca vi um casal que se amasse tanto

responde logo a dona daquele amor que não cabe numa resma de papel A4

-- és lindo. tens um coração lindo. jinhos lindo

de seguida o face torna-se numa slot machine e caem em catadupa gostos e corações que dava para encher o cesto da capuchino vermelho – a sua avó ficaria com um ego do super homem e a história do lobo mau lá teria que ser reformulada. a avozinha comia o lobo de faca e garfo com tanta manifestação carinhosa – mas o que mais me surpreende nestes movimentos sentimentais são aqueles que substituem o gosto por aqueles bonequinhos de boca aberta. espantados. creio eu – ora aqui o caso torna-se grave porque fico sem saber se a intenção de oferecer este dito boneco é de uma amizade de espanto ou gozo para espantar a amizade – no meu entender a mensagem que deixam pode ser entendida de várias formas 

1º - não imaginava que gostavas tanto do teu marido. estou espantada; 

2º - nunca me passou pela cabeça que se amassem tanto depois do que já o vi fazer-te. estou espantada;

3º - olha que tu tens um lata do caraças. és mesmo uma vendida. andas sempre a dizer mal dele e agora vens para aqui meter nojo – se fosses lavar a loiça… sua cabra. estou espantado;

4º - nunca vos vi comunicar um com o outro mas aqui na net são o casal mais maravilhoso do facebook. – ó bonitona. deixa que te diga. és um exemplo para todos. só se pode ter inveja de um amor tão genuíno - são TOP. estou espantado;

5º - tenho tantas saudades vossas. a última vez que vos vi estavam a almoçar no zé das bifanas – estavam os dois lindos. são um casal fantástico – só não fui à vossa mesa porque deveriam estar preocupados com alguma coisa pois estiveram sempre ao telemóvel e saíram a correr – beijinhos e continuem assim.  estou espantada;

6º - vocês estão juntos ainda? são uns heróis – confesso que nunca me passou pela cabeça que o vosso casamento aguentasse tanto – chegaram a casar pela igreja ou foi só pelo civil? – parabéns.  estou espantada;

7º - tens o sorriso mais lindo da net. nunca tinha reparado. estou espantada;

8º - és uma guerreira para aguentar esse gajo. ele não te merece.  estou espantada;

9º - puta que pariu esse amor. até mete nojo de tão lindo que é.  estou espantada;

10º - adoro-vos. gostava que a minha maria me escrevesse coisas assim. infelizmente é uma puta e só sabe foder-me a cabeça – maldita hora em que levei aquela cabra ao altar. se não fosse os filhos já a tinha atirado da janela – beijinho para vocês. são um exemplo – felicidades e dá um abraço ao sortudo. estou espantado;

e assim continuariamos com mais uns quantos exemplos mas infelizmente também eu não tenho tempo para escrever mais nada – a minha maria está aos berros e já sei que ou me apresento rapidamente em passo ligeirinho ou acontece-me como da última vez. deu-me no focinho e de seguida ligou para o número verde de violência doméstica a queixar-se de défice de atenção – bem sei que acaba tudo bem. logo que apanha um computador esquece tudo e enche-me de beijos e likes e não se farta de dizer aos amigos que sou o homem da sua vida – com a idade aprendi a ser tolerante e nunca me esqueço do que dizia os meus avós: uma bofetada pode salvar o casamento – o meu já vai a caminho das bodas de ouro e nunca me queixei de uma bofetada mal dada – sou um homem com sorte





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