27/09/2018
deambulações noturnas XXXIII
24/09/2018
aqui estou
aqui estou eu. um pé no passado e outro no futuro que me
escapa – quem me dera que o mundo não fosse um segredo. nem um passarinho tonto
à procura dos porquês. ou esta coisa que sinto dentro de mim que não sei se é
fé ou vontade de morrer – lanço-me para cima do que sou. escondo-me. a cama
rebola. eu rebolo-me contra a cama. afundo-me num contrato sonolento. luto. fujo
do segredo. fujo dos porquês e perco o rasto dos meus próprios pés –
não quero caminhar mais. estou cansado – a dormir fico morto para o mundo das
sombras – o candeeiro bamboleia entre uma janela e um guarda-roupa. onde
repousam os cabides de uma vida. encostado ao canto dos lamentos um casaco
preto de bombazina. forrado de procura e ambição. mangas puídas. cotovelos
esfacelados e um lenço branco no bolso direito escarrado de atropelos – na
parede a minha foto de há quarenta anos. olhos negros. tristes. não sei se posei
triste ou se antecipei o futuro na lente da máquina. lábio quebrado. cabelo
puxado à esquerda. escorrido. à espera de tesoura para me compor. pescoço meio
torto a tombar para o dono do destino e um cristo pregado por mim à parede – os
olhos de deus perdidos em mim. vigilante. castrador. incómodo. sempre a sussurrar
mesmo em silêncio: não devias ter feito isto. aquilo. aqueloutro. pecaste.
erraste. e a alma dorida de tantos porquês – entraste-me pela boca como se
fosses palavra. eu disse amém e o teu corpo amarrotou-se na minha gula de viver
– se realmente existes perdoa-me por nunca ter aceite o teu destino – se não
perdoares. vomita-me uma última vez e parte de mim como entraste
16/09/2018
eu. a minha cidade. o notário e o iodo
estou no coração da
minha cidade – raramente me desloco ao centro da minha cidade. nunca fui muito
de confusões nem vou muito à bola com multidões – pior. confesso que tenho medo
dos carros que não são conduzidos por mim. das motas com escape livre. dos
polícias com pistolas e das janelas em edifícios que não param de crescer – as cidades já não são como antigamente. são
confusas. impessoais. conflituosas. irritantes. barulhentas. fazem-me nervos. baralham-me
o funcionamento do corpo e o coração começa a bater sem gostar. quando dou
conta o coração descompassa. as pernas entram em desespero. os calcanhares latejam.
perco o discernimento. a paciência. entro numa agitação masoquista. acalento. ruborizo.
fico tresloucado e só me apetece fugir para o que é meu – este cansaço associado
ao nervoso miudinho recorda-me os domingos de verão na minha infância – não
havia domingo de bom tempo que os meus pais não aproveitassem para dar um
pulinho à praia – nessa época. os médicos aconselhavam banhos de iodo para
quase todos as maleitas do corpo e do espírito – os meus pais levavam muito a
sério os conselhos dos senhores doutores. era gente que tinha estudado em
coimbra – no sábado à noite já não havia sossego em minha casa: preparavam-se
os fatos de banho. as toalhas. os bonés. o protetor solar. o prego para o jogo
do espeto. a bola nívea. as cartas para jogar uma bisca lambida e sorrisos que só
apareciam nessa altura do ano. éramos felizes com tão pouco – a noite passava em passo de caracol. mas quando
o dia raiava já a minha mãe e a lurdes [minha segunda mãe] andavam em bolandas a tratar do farnel – neste
farnel não faltava nada. era tudo a multiplicar por dez. o ar do mar incrustado
de iodo puxava um apetite desgovernado – comia-se até chegar com o dedo – a
minha mãe ficava feliz. entendia que crianças bem alimentadas são mais
resistentes às maleitas dos invernos. ficam menos expostas às pontadas de uma
corrente de ar – eu acreditava. naquele tempo. dizia-se que napoleão temia mais
uma corrente de ar do que uma bala de canhão – passei a vida toda com medo das
pontadas de ar e estive quase a morrer atropelado – são coisas do diabo
– o meu pai era o responsável por reunir os apetrechos que garantiam luxo e
conforto à excursão domingueira: guarda-sóis. tapa ventos. mantas. cadeiras e banquinhos
e uma cuba de plástico cheia de gelo para manter as bebidas frescas durante
todo o dia – a questão que se colocava era como meter tudo na mala do carro –
nunca nada ficou para trás – depois dos banhos de sol. sal e iodo
refugiávamo-nos num pinhal a forrar o estômago com as iguarias preparadas pelas
minhas duas mães – eram dias enormes. bonitos. afetuosos. era um abraço que ainda
hoje aperta – chegávamos a casa já com o sol quase engolido pela escuridão – seria
tudo perfeito não fosse eu regressar completamente arrasado de cansaço. sentia
o corpo todo a colapsar. preso por arames. como se estivesse ligado à corrente
elétrica e pudesse implodir os fusíveis a todo o momento – ficava um cangalho. quebrado
e sem forças – a minha mãe dizia que era efeito do iodo. mexia com o meu
sistema nervoso. a transmissão de sinais entre as diferentes partes do corpo
estava em conflito. em rotura e as dores nas pernas completavam a moldura de um
miúdo à beira do colapso – a praia era demasiadamente esgotante para mim – não era nada fácil aguentar
aqueles domingos mergulhados em iodo – o problema piorava com a minha mãe a multiplicar por cem os sintomas.
resultado: overdose quase mortal – mas aos poucos lá me ia acalmando dizendo que
os benefícios destas tomas seriam para toda a vida e que uma noite de repouso traria
tudo à normalidade – assim era. no dia
seguinte acordava novo em folha – em troca destas dores benfeitoras o frio do
inverno não passaria pela lã das camisolas interiores e as gripes e
constipações curar-se-iam com sumos de laranja. vitamina C natural – já não uso
camisola interior de lã. nem ceroulas. nem tenho aquela comichão da lã virgem que
me comia o cérebro o dia todo – só eu e deus é que sabemos o que se sofria com
aquele agasalho. mil vezes pior do que o iodo – toda a comichão acabou quando chegou a
camisola do século XXI: a thermotebe – foi uma bênção de deus – nunca percebi
porque não foi contemplado com um nobel o sr. thermotebe. uma injustiça – o
tempo passou rápido demais. tudo está diferente. trocámos o iodo pelo monóxido
de carbono. comecei a fumar e só parei trinta anos mais tarde. engordei. fiquei
feiíssimo. passei a usar óculos para ler. desisti de correr. de saltar. de ter pressa
pelo dia seguinte. os prédios cresceram. desumanizaram-se. a mercearia do zeca
lacota e a casa de pasto luso-brasileira fecharam. também e à praça do comércio
já não chegam pela madrugada os camiões do algarve carregados com as primeiras
uvas da época – quem a viu e quem vê. não conheço ninguém. ando aqui à meia
hora e nenhum dos meus colegas de liceu passou por mim. estou só numa cidade
que era minha – as portas do comércio despidas de amizade. sem comerciantes
enfarpelados. a sorrir. a dar bom dia. a enviar cumprimentos para os paizinhos.
já ninguém me chama pelo nome. as crianças já não partem vidros a jogar à bola.
nem jogam à macaca. nem há peditórios para as festas de santo antónio. olho
para todo o lado e não encontro nada. nem o mário polícia sinaleiro. está tudo
de pernas para o ar. só os sinos das igrejas batem as mesmas horas – sou um
desconhecido na minha cidade – enquanto caminho vou recusando todas as emoções
saudosistas – um homem tem que ter os olhos postos no futuro. sei ao que vim – vim
ao centro da minha cidade por obrigação. o notário exige a minha presença. com
mais rigor. exige que assine presencial – aqui estou para fazer valer com
verdade o meu nome num papel que deveria ser importante. não estou certo que
assim seja – e o doutor notário confirma que sou mesmo quem diz o cartão de
cidadão – são casas estranhíssimas. povoadas de doutores. de vendedores e
compradores. todos com sorrisos cuidados. os que vendem convencidos que
venderam bem. os que compram inchados de orgulho. atestando o seu poderio
económico e os doutores juram que sem o conhecimento da lei o mundo seria uma selva
– com ar sério só mesmo as funcionárias. estão-se nas tintas para os negócios.
passam-lhes pelas mãos milhões e ganham tostões – já passou o tempo em que era simpaticamente
coagido pelo advogado a entregar voluntariamente uma gorjeta ao funcionário
como reconhecimento de bons serviços prestados – este. agradecido pela
deferência. despedia-se com um aperto de mão que se não fosse o iodo lixava-me
as falanges – subi ao notário para reconhecer uma procuração que permite
alienar. no brasil. uma coisa que nunca rendeu um centavo – que homem de
negócios compreende isto? o melhor é enterrar este ex-negócio no esquecimento
para não me envergonhar – esta coisa dos contratos escritos exige corpos
robustos e bem iodados – o tráfico comercial produz cada coisa mais estranha –
só gente estranha produz coisas estranhas – mas acreditemos no futuro – saí
para a rua feliz. o brasil em breve terá notícias minhas. a minha assinatura
voará sobre o atlântico e me fará representar com tudo que existe em abundância
em mim: imaginação e esperança – creio que este stock de imaginação e esperança
se deve às doses maciças de iodo que apanhei em catraio – a minha mãe tinha
razão. o iodo é para toda a vida – estou de regresso a casa. o tempo passou. os
carros também e os semáforos ordenam ritmadamente o nosso mundo. agora passa a
combustão fóssil para logo de seguida passar a combustão O2 – tudo a consumir
energia que não é renovável e os filhos do criador cada vez mais acelerados e
irritados. afrontam as buzinadelas com movimentos de toureio a pé. e a classe para
sobreviver é a forma como gingamos a coluna vertebral. o joelho metido para
dentro e o corpo a equilibrar a desordem psíquica enquanto o físico acelera
rumo ao inevitável: o fim dos sonhos – vivo nesta confusão que se tornou
sobrevivência. ainda ando com verde. ainda paro com o vermelho – graças ao iodo
ainda conservo o tino – a minha vida é um para-arranca. tanto esticão e
solavanco. um dia fico sem caixa de velocidades – vai-me valendo o iodo para aguentar
esta vida de trampa
14/09/2018
deambulações noturnas XXXII
senti-me inspirado e pensei: tenho de escrever qualquer
coisa – como correu bem resolvi não parar: qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer
coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer
coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer
coisa. qualquer coisa. qualquer coisa. qualquer coisa… e quando dei por mim já
era tudo e já era nada – qualquer coisa