.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

16/09/2018

a minha cidade. o notário e o iodo

 
 
 
 
 
pintura - eugène boudin
 
 

 

estou no coração da minha cidade – raramente me desloco ao centro da minha cidade. nunca fui muito de confusões nem vou muito à bola com multidões – pior. confesso que tenho medo dos carros que não são conduzidos por mim. das motas com escapes livre. dos polícias com pistolas e das janelas em edifícios que não param de crescer – as cidades já não são como antigamente. são confusas. impessoais. conflituosas. irritantes. barulhentas. fazem-me nervos. baralham-me o funcionamento do corpo e o coração começa a bater sem gostar. quando dou conta estou com arritmias. as pernas entram em desespero. os calcanhares começam a doer. perco o discernimento. a paciência. entro numa agitação masoquista. acalento. ruborizo. fico tresloucado e só me apetece fugir para o que é meu – este cansaço associado ao nervoso miudinho recorda-me os domingos de verão na minha infância – não havia domingo de bom tempo que os meus pais não aproveitassem para dar um pulinho à praia – nessa época. os médicos aconselhavam banhos de iodo para quase todos as maleitas do corpo e do espírito – os meus pais levavam muito a sério os conselhos dos senhores doutores. era gente que tinha estudado em coimbra – no sábado à noite já não havia sossego em minha casa: preparavam-se os fatos de banho. as toalhas. os bonés. o protetor solar. o prego para o jogo do espeto. a bola nívea. as cartas para jogar uma bisca lambida e uma data de sorrisos que não víamos em mais nenhuma altura do ano. eramos todos felizes com tão pouco –  a noite passava em passo de caracol. mas quando o dia raiava já a minha mãe e a lurdes [minha segunda mãe] andavam em bolandas a tratar do farnel – neste farnel não faltava nada. era tudo a multiplicar por dez. o ar do mar incrustado de iodo puxava um apetite desgovernado – comia-se até chegar com o dedo – a minha mãe ficava feliz. entendia que crianças bem alimentadas são mais resistentes às maleitas dos invernos. ficam menos expostas às pontadas de uma corrente de ar – eu acreditava. naquele tempo. contava-se a história de que napoleão tinha mais medo de uma corrente de ar do que de uma bala de canhão – passei a vida toda com medo das pontadas de ar e estive quase a morrer atropelado – há coisas do diabo – o meu pai tinha a seu encargo a compilação dos apetrechos que garantiam luxo e conforto à excursão domingueira: guarda-sóis. tapa ventos. mantas. cadeiras e banquinhos e uma cuba de plástico cheia de gelo para manter as bebidas frescas durante todo o dia – a questão que se colocava era como meter tudo na mala do carro – nunca nada ficou para trás – depois dos banhos de sol. sal e iodo refugiávamo-nos num pinhal a forrar o estômago com as iguarias preparadas pelas minhas duas mães – eram dias enormes. bonitos. afetuosos. era um abraço que ainda hoje aperta – chegávamos a casa já com o sol quase tomado pela escuridão – seria tudo perfeito não fosse eu regressar completamente arrasado de cansaço. sentia o corpo todo a colapsar. preso por arames. como se estivesse ligado à corrente elétrica e pudesse implodir os fusíveis a todo o momento – ficava um cangalho. quebrado e sem forças – a minha mãe dizia que era efeito do iodo. mexia com o meu sistema nervoso. a transmissão de sinais entre as diferentes partes do corpo estava em conflito. em rotura e as dores nas pernas completavam a moldura de um miúdo à beira do colapso – a praia era demasiadamente esgotante para mim – não era nada fácil aguentar aqueles domingos mergulhados em iodo – o problema piorava com a minha mãe a multiplicar por cem os sintomas. resultado: overdose quase mortal – mas aos poucos lá me ia acalmando dizendo que os benefícios destas tomas seriam para toda a vida e que uma noite de repouso traria tudo à normalidade – assim era. no dia seguinte acordava novo em folha – em troca destas dores benfeitoras o frio do inverno não passaria pela lã das camisolas interiores e as gripes e constipações curar-se-iam com sumos de laranja. vitamina C natural – já não uso camisola interior de lã. nem ceroulas. nem tenho aquela comichão da lã virgem que me comia o cérebro o dia todo – só eu e deus é que sabemos o que se sofria com aquele agasalho. mil vezes pior do que o iodo  – toda a comichão acabou quando chegou a camisola do século XXI: a thermotebe – foi uma bênção de deus – nunca percebi porque não foi contemplado com um nobel o sr. thermotebe. uma injustiça – o tempo passou. agora percebo que depressa demais. tudo está diferente. substitui o iodo pelo monóxido de carbono. comecei a fumar e só parei trinta anos mais tarde. engordei. fiquei feiíssimo. passei a usar óculos para ler. deixei de correr e pinchar. deixei de ter  pressa pelo dia seguinte. os prédios cresceram. desumanizaram-se. a mercearia do zeca lacota fechou. a casa de pasto luso-brasileira também e à praça do comércio já não chegam pela madrugada os camiões do algarve carregados com as primeiras uvas da época – quem a viu e quem vê a minha cidade. não conheço ninguém. ando aqui à meia hora e ainda não passou nenhum dos meus colegas de liceu. estou só numa cidade que era minha – as portas do comércio despidas de amizade. sem comerciantes enfarpelados. a sorrir. a dar bom dia. a enviar cumprimentos para os paizinhos. já ninguém me chama pelo nome. as crianças já não partem vidros a jogar à bola. nem jogam à macaca. nem há peditórios para as festas de santo antónio. olho para todo o lado e não encontro nada. nem o mário polícia sinaleiro. está tudo de pernas para o ar. só os sinos das igrejas batem as mesmas horas – sou um desconhecido na minha cidade – enquanto caminho vou recusando todas as emoções saudosistas – um homem tem que ter os olhos postos no futuro. sei ao que vim – vim ao centro da minha cidade por obrigação. o notário exige a minha presença. dito com mais rigor. exige uma assinatura presencial – aqui estou para fazer valer com verdade o meu nome num papel que deveria ser importante. não estou certo que assim seja – e o doutor notário confirma que sou mesmo o do cartão de cidadão – são casas estranhíssimas. povoadas de doutores. de vendedores e compradores. todos com sorrisos cuidados. os que vendem convencidos que venderam bem. os que compram inchados de vaidade por atestarem o seu poderio económico e os doutores juram que sem o conhecimento da lei o mundo seria uma selva – com ar sério só mesmo as funcionárias. estão-se nas tintas para os negócios. passam-lhes pelas mãos milhões e ganham tostões – já passou o tempo em que era simpaticamente coagido pelo advogado a entregar voluntariamente uma gorjeta ao funcionário como reconhecimento de bons serviços prestados – este. agradecido pela deferência. despedia-se com um aperto de mão que se não fosse o iodo lixava-me as falanges – subi ao notário para reconhecer uma procuração que permite alienar. no brasil. uma coisa que nunca produziu um centavo – que homem de negócios compreende isto? o melhor é manter este ex-negócio em segredo para não me envergonhar – esta coisa dos contratos escritos necessita de corpos robustos e com muito iodo – o tráfico comercial produz cada coisa mais estranha – só gente estranha produz coisas estranhas – mas acreditemos no futuro – saí para a rua feliz. o brasil em breve terá notícias minhas. a minha assinatura voará sobre o atlântico e me fará representar com tudo que existe em abundância em mim: imaginação e esperança – creio que este stock de imaginação e esperança se deve às doses maciças de iodo que apanhei em catraio – a minha mãe tinha razão. o iodo é para toda a vida – estou de regresso a casa. o tempo passou. os carros também e os semáforos ordenam ritmadamente o nosso mundo. agora passa a combustão fóssil para logo de seguida passar a combustão O2 – tudo a consumir energia que não é renovável e os filhos do criador cada vez mais acelerados e irritados afrontam as buzinadelas com movimentos de toureio a pé. e a classe para sobreviver é a forma como gingamos a coluna vertebral. o joelho metido para dentro e o corpo a equilibrar a desordem psíquica enquanto o físico acelera rumo ao inevitável: o fim dos sonhos – vivo nesta confusão que se tornou sobrevivência. ainda ando com verde. ainda paro com o vermelho – graças ao iodo ainda conservo o tino – a minha vida é um para-arranca e de tanto esticão e solavanco um dia fico sem caixa de velocidades – vai-me valendo o iodo para aguentar esta vida de trampa






 

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