chegou ao fim mais um ano de
trampa – venha lá esse 2020. venha lá uma nova fé ou uma nova crença de que
tudo. finalmente. vai ser diferente para melhor – esta esperança saloia que me
impregnaram no corpo é mesmo de baixo teor encefálico – mas. que posso fazer
eu. sou apenas mais um mortal fraco e cegueta a deambular pelos ponteiros de um
relógio que me engana desde aquela passagem de ano. onde eu e mais dois amigos
destemidos. nas traseiras de uma toyota hiace. gritámos urras. vivas e
impropérios à chegada de um ano que acreditávamos que nos traria todo o futuro
risonho do universo – foi a última passagem de ano em que não fizemos uma
contagem decrescente. o barulho dos foguetes iluminou o caminho de uma carrinha
parada num descampado de adamastores – não temíamos nada. nem ninguém. éramos
apenas crianças mascaradas de mosqueteiros em que o lema de alexandre dumas se
renovava com esperança e alegria às doze badaladas: todos por um. um por todos
e feliz ano novo – que bonitos que éramos. não há nada mais bonito do que um
corpo imaculado – juramos que um dia. num futuro próximo. voltaríamos a
comemorar uma outra passagem de ano num rolls-royce branco. descapotável e
flutes de dom perignon apontados às estrelas – pobre é assim. sonha – sonhar
não custa dinheiro – pobre o que quer é saltar e cantarolar aquela contagem
decrépita do ano velho e comer uva-passa às manadas para que nenhum mês caia em
desgraça – pobre fica tão entusiasmado com o fim de ano que até se esquece de
gastar o último dia de dezembro. e quando acorda. já é janeiro e pede socorro
jurando que o ano lhes foi roubado no instante em que terminou – claro que
estou a citar o caco antibes. quem melhor do que ele para falar de pobres. só o caco é capaz de me espremer o cérebro no
último dia de 2019. entrar dentro do meu ouvido e suavemente. chingar-me a
honra e a fé: “pobre tem que ficar tudo socado no conjugado”. pobre vai à loja
de 1.99€ e “compra tudo de prástrico” – pobre é uma visão do inferno. faz a
festa assobiando num apito que vai e vem e atira confetes ao ar acreditando que
é o botão dourado do got talent e. como não quer perder pitada do réveillon.
fica tão apertadinho que até faz xixi pelas pernas abaixo. eufórico e com as
meias ensopadas de mijo berra e jura que o novo ano lhe vai trazer paletes de
dinheiro. e as gajas da playboy tocar-lhe-ão á porta doidas por uns
preliminares com o novo capitalista – no meu caso. criado e ampliado com o pó
de deus. substituo as gatas assanhadas das revistas de adultos por uma renovada
esperança de que a minha companheira maria joão suavize o seu temperamento e
abrace mais a leveza dos dias – pobre é assim mesmo. contenta-se com pouca
coisa. é boa pessoa. mas tão ingénuo que se deixa iludir com facilidade – mas
não se aflijam porque já me tratei pior do que uma porta. talvez por ser fim de
ano sinta necessidade de recuperar alguma indulgência para comigo – o ano não
foi bom para quem ama – mas agora que renovei a fé em deus. estou mais crente
do que nunca no aparecimento da bondade divina para com este seu pobre servo
reconquistado pelos desígnios do senhor – só há uma coisa que não quero perder
com a entrada do ano novo: a memória e esta saudade que carrego dentro de mim
que me fere como se trouxesse à cabeça a coroa de espinhos da crucificação de
jesus – são estes espinhos que me recordam que um dia ao pó voltarei e nada
serei se não aceitar em mim tudo o que é invisível – sou uma criatura de deus.
agora agradecido. sentimental e com a fé atualizada para nunca mais esquecer de
que a morte mais não é do que o fim do corpo na terra – quero acreditar que um
dia. num outro espaço temporal. a saudade que não sei escrever terminará com o
reencontro de todos aqueles que partindo desta terra. ficaram eternamente em
mim – em 2020 quero continuar a ter saudades do meu pai. da sua leveza de
espírito. da sua bondade. do seu sentido de justiça e daquele sorriso que era
um abraço – quero ainda ter mais saudades de minha mãe e continuar a cumprir a
sua última vontade. eu e os meus irmãos sabemos bem o seu último desejo – quero
continuar a sentir-me mal por ainda não ter encontrado forma e engenho para
prestar homenagem a uma mulher que foi o pilar da nossa família – a minha mãe
tinha a força de quinhentas trovoadas e a doçura das manhãs dos primeiros dias
de primavera. devemos-lhe quase tudo – era uma mulher emancipada que lutou por
tudo aquilo que diariamente conquistou. sem nunca se esquecer de que uma
família para se eternizar precisa de amor – lutar. trabalhar. amar. lutar.
trabalhar. amar até que o coração se renda ao peso dos anos – foi assim que a
minha querida mãe partiu – quero que os dias de sol me tragam de novo a minha
cunhada – a minha zéza também era o sol da nossa / sua família – em 2020 não
quero perder nada do seu legado: devolveu-me a fé e a certeza de que esta vida
é apenas uma passagem e o mais importante é dizer tudo o que que nos vai na
alma no momento certo – nunca deixes nada por dizer. amanhã pode ser tarde – a
minha cunhada disse-me as coisas mais bonitas que um homem pode ouvir. disse-o
em saúde. sem medo. olhando-me nos olhos. amarrando-me as mãos e com a bondade
de um coração de ouro que imaginava viver para sempre – a minha zeza fez de mim
um homem muito mais tranquilo e sereno. era a minha menina. era a irmã mais
nova que nunca tive – para mim será sempre aquela miúda com cabelo aos
caracóis. óculos enormes que escondiam uma vontade de viver celestial.
envergonhada e giraça – conhecia escondida atrás das cortinas da sala a
primeira vez que entrei na casa dos seus pais – não posso mudar o passado. mas
posso e quero recordá-lo. quero recordar para sempre a minha cunhada feliz com
o seu companheiro que agora guardo também no meu coração – a vida foi muito
ingrata e injusta para este amor que só pecou porque o tempo se perdeu nos
desencontros da vida – feliz ano joana e miguel. este ano tirou-te a pessoa
mais importante da vida. mas não desistas de viver em alegria. vai por esse
mundo fora e serás recompensada – a tua mãe estará de olho em ti – quero amar
todos aqueles que vivem em mim. pouco ou muito. não importa. sem estas memórias
não sou nada. e se não for nada não existo e quem não existe nunca saberá que o
céu é a cobertura dos homens bons – sempre tive muita gente boa a meu lado. que
sorte. um privilégio que aceito com gratidão – em 2020 quero a minha família e
amigos mais perto de mim. todos. quero a vossa paz e a vossa bondade – não sou
especial. mas sou lopes – em 2020 quero continuar a lembrar-me do tio joão. há
dias que sinto tanto a sua falta. era um homem especial. inteligente e gentil.
não merecia partir tão cedo. fez-nos muita falta – ficou a sua semente a
confirmar que árvore boa não dá fruto mau – quero lembrar-me dos amigos que já
partiram. do joquinha. do luís vieira e do sérvio. gostava de um dia voltar a
encontrá-los – em 2020 quero que os meus filhos continuem a crescer com honra.
saúde. trabalho e bondade – quero que sejam destemidos no amor. amar sem medo é
a melhor coisa do mundo. amem de qualquer das maneiras. quem ama não teme o
próximo. nem o futuro. acreditem nas pessoas. ajudem sem olharem a quem.
sorriam. vocês são homens fantásticos. são especiais. são únicos porque
transportam a alma do vosso avô dentro de vocês – neste novo ano quero que as
minhas noras sejam muito felizes. honradas pelos seus companheiros e
recompensadas pela vida. vocês são as mulheres mais importantes do universo.
são vocês que cuidam do nosso único tesouro. os filhos são a nossa luz –
andreia. obrigado por esse sorriso com que carrega no peito o nosso luís. a
andreia sabe como esse rapaz é especial. foi o meu primeiro desejo. ser pai do
luís – não podia ter um filho melhor – obrigado também pelos nossos dois netos.
tenho a certeza de que serão. um dia. miúdos grandes em virtudes e felizes –
pedro não desistas nunca dos teus sonhos. a vida encontrar-te-á para o sucesso.
não corras. mas não abrandes. tu és um bom rapaz. nunca me cansarei de
acreditar no teu futuro. adoro-te – joão estamos muito orgulhosos de ti. este
último ano confirmou o que sempre soubemos. tens tudo para ser feliz e
independente – não te esqueças que foste ensinado a amar sem medo. aprende a
sorrir e deixa-te ir pelo mundo fora. és excecional e com um coração enorme –
um beijo muito especial para as futuras noras. bela e sofia. quero o melhor
para vocês. mas também quero que não se esqueçam de fazerem os nossos meninos
felizes. eles são meninos bons e gostam de amar uma única mulher – também quero
para 2020 que a lurdes envelheça com dignidade. ela merece tudo de bom. os
anjos não têm que servir de exemplo ao mundo – claro que um bom ano nunca poderia
ser bom se a minha sobrinha e a sua família não chegarem em paz à sua casa.
virá um anjo sentado na asa do avião – quero também para a minha irmã. irmão e
famílias muita saúde e paz. serão sempre carne da minha carne e sangue do meu
sangue – quero muito que a minha cunhada teresa não se esqueça da sua irmã
neste novo ano. fazes muita falta à maria joão. e claro. muita saúde para toda
a tua família – em 2020 quero o melhor da vida para a melhor companheira e mãe
do mundo. já são tantos anos a brindar a um novo ano – amo-te muito. mais do
que a lua. o sol. o vento ou a chuva – o que seria de 2020 sem o teu sorriso –
no novo ano vamos passear descalços pela praia. vamos ver o nascer do sol.
vamos beijarmo-nos e renovar os votos do nosso casamento – preciso de me casar
outra vez contigo – nunca tivemos medo de nos amarmos e assim será até ao fim
dos nossos dias: prometo estar contigo na alegria e na tristeza. na saúde e na
doença. na riqueza e na pobreza. amando-te até que o nosso mundo termine – espero
que deus finalmente ouça as tuas preces e não deixe que o teu pai se esqueça de
ti – sei que esse é o teu maior desejo para 2020 – e já que 2019 está prestes a
terminar. peço que 2020 traga muita saúde para todos aqueles que me estimam
como amigo. sem eles. eu seria apenas metade do que sou – devo-vos tanto. são
poucos. mas são tão bonitos e bons – salve 2020
31/12/2019
quero muita merda para 2020
29/12/2019
no meu peito já não cabem gaivotas* 4
introdução.
finalmente uma morte que traz boa disposição –
confesso que já sentia falta de uma escrita levezinha. tranquila. serena. uma
escrita tipo chazinho de camomila – nesta saga analítica de quatro tipos de
morte. a morte dolosa ou fraudulenta. que vos entrego. foge totalmente ao
estilo de escrita do sampaio rego. creio que é mais o género do joão surreal –
mas não importa quem escreve. o importante mesmo é esta vontade de compor a
vida que me sai de dentro. esta emoção. esta perturbação. este desassossego que
me magoa e ao mesmo tempo me ilude com o tempo. faz-me viver. faz-me sorrir –
meu deus. como sou feliz nesta busca incessante das palavras que nunca sei onde
estão – hoje. graciosamente. trago-vos uma morte que é uma história embrulhada
numa bela surpresa. com um final tipo alfred hitchcock – tentarei então fazer
um embrulho com um laço bonito. quer dizer. um laço pomposo e misterioso. só
espero que o papel chegue e a história no final mereça o vosso sorriso – vamos
começar então
1.
um marido convencidíssimo de que a sua esposa
o atraiçoa sente-se completamente desesperado. e de tal forma encasquetou que
essa deslealdade era real que a sua vida se tornou num verdadeiro inferno – o
ciúme passou a governar completamente a sua racionalidade. convertendo-a numa
irracionalidade absoluta – afogado nesse sentimento egoísta e incapaz de
dialogar com a sua companheira. busca em si um motivo para essa traição. mas
por mais que procure uma mínima razão para essa evidente deslealdade. não a enxerga
– está desesperado. sempre amou esta mulher. sempre foi fiel. sempre viveu para
a família – à falta de uma resposta que lhe alivie o sofrimento deixa-se tomar
por uma raiva silenciosa e o desfecho é o colapso emocional – não quer
acreditar que se tenha enganado quanto à companheira que conheceu ainda
adolescente. não pode. a mulher que um dia jurou amar pela santidade do
casamento católico é o centro do seu universo – o que seria da sua vida sem a
única pessoa que deu sentido à sua existência – com a psicose gravemente
instalada. esta leva-o a um pensamento delirante. pouco lúcido. sistematizado
pela negatividade e dotado de uma lógica errática própria de quem está doente –
uma mente doente pensa doentiamente – a falta de confiança arrasta-o para uma
agressividade interior perigosa e desgastante e a relação entra definitivamente
num estágio dramático – o silêncio é agora o seu maior inimigo – o seu
casamento está por um fio. a angústia é contínua e as noites uma enfermidade
dolorosa que o impede de descansar – deita-se infeliz e levanta-se ainda mais
infeliz. sente-se o pior homem do mundo – inseguro e com a sua autoestima a
roçar a lama. percebe que não aguenta muito mais esta sua indeterminação e.
resolve partir em busca da verdade. doa o que doer – ele sabe que o tempo está
contra si. este medo de perder a mulher que ama está a enlouquecê-lo – o
coração está prestes a implodir de sofrimento. é hora de saber toda a verdade.
é hora de saber se ainda é o homem que a sua mulher quer ter a seu lado para o
resto da vida – chegou o momento de enfrentar o medo. é urgente saber a
verdade. a sua amada tem que lhe dizer. olhos nos olhos. que o amor acabou. que
foi bom. mas chegou ao fim – depois de muito ponderar concebe então um plano
que lhe permita. objetivamente. aferir se as suas preocupações são reais ou
apenas a alma doente – tem que saber se a sua esposa tem um caso ou não. se o
ama ou não. meios termos já não são aceitáveis. a dor é colossal. insuportável.
há que colocar tudo em pratos limpos – reconhece as suas fragilidades por que
passa e reconhece também que só um amigo verdadeiro será capaz de o compreender
e ajudar – está desesperado. sabe que o plano é arriscado e maquiavélico. mas
parece-lhe ser esta a única solução capaz de lhe devolver a paz e o casamento
2.
o amigo dirige-se a sua casa. toca a
campainha. aguarda uns segundos. a porta abre-se e dá de caras com a esposa do
zé meireles que. surpreendida com a visita. lhe pergunta:
-- a esta hora aqui. aconteceu alguma coisa?
o amigo pesaroso e pouco à vontade
responde-lhe a gaguejar:
-- si... sim há. nem sei como te dizer…
faz-se silêncio. os olhos da cutilde
arregalam-se. o corpo entesa-se. as faces ruborizam-se enquanto a mudez é
consentimento para que o amigo do seu marido diga rapidamente ao que veio – o
jeremias entristecido. com os olhos encharcados de dor. a tremer e a gaguejar
diz-lhe então:
- o… o zé acabou de falecer. foi atropelado
[colocado num local estratégico. camuflado.
mas com uma perfeitíssima visão para o patamar da sua porta. o zé tenta
perceber nos meneamentos da sua querida esposa se realmente vislumbra algum
detalhe de júbilo ou tristeza]
a cutilde estremece. bamboleia. como se também
ela tivesse sido atropelada e. enquanto os segundos se multiplicavam numa
eternidade toda ela é tomada por uma dor paralisante. não consegue pronunciar
uma única palavra – não se ouve um único som ao redor de si. parecia até que o
mundo tinha acabado de falecer – o jeremias. em pânico. arruma-se igualmente
dentro do silêncio. concentra-se e projeta os olhos para dentro da alma da
cutilde – também ele quer saber se o seu amigo está. ou não. a ser enganado pela
esposa – o zé meireles é o seu amigo do coração. cresceram juntos. fizeram a
escola juntos. andaram nos namoricos juntos e quando um tombava com um copo o
outro nunca ficava para trás. se tivesse que dar a vida por alguém. esse
alguém. seria o zé – são mais do que amigos. são manos e o sofrimento de um
mano não dói. mata-nos – a cutilde dá dois passos atrás. encosta-se à porta.
percebe que está prestes a colapsar. e sem que o jeremias lhe pudesse valer. o
corpo desfalece e as pernas acabam por ceder – cutilde está prostrada no chão –
o jeremias entra em pânico. pela primeira vez. percebe que talvez o plano possa
não correr como tinham planeado. dá-lhe duas bofetadinhas ao de leve. abana-a.
chama-a pelo nome em desespero e. com custo. tempo e terror. a cutilde reabre
os olhos – completamente desfigurada. rapidamente recupera a memória do drama
que está a viver e. numa agonia de estraçalhar o coração. recusa acreditar que
o seu zé a tenha deixado ficar para sempre – a dor é insuportável. o coração
está prestes a partir-se e o corpo a sufocar perde-se em lágrimas –
completamente desorientada levanta-se. anda de um lado para o outro sem
discernir o que realmente deve fazer. sente-se perdida e não raciocina – se por
um lado quer sair a correr para abraçar o zé. por outro. recusa-se confrontar
com a verdade – já ninguém tinha realmente dúvidas que a cutilde amava o zé.
era fácil de perceber que a dor era genuína. saí-lhe da alma. o zé meireles era
o único homem da sua vida – quem entrou em pânico foi o jeremias. também ele
começou a sentir as pernas a desfalecer enquanto o corpo tremia como varas
verdes – estava metido numa alhada e agora não sabia como resolver a situação –
com a voz trémula tentou rapidamente encontrar um paliativo para o drama. pelo
menos adiar um pouco o que parecia já não ter solução – foi uma grande
estupidez. diria mesmo. do tamanho da sé de braga – segurou nas mãos da
cutilde. olhou-a nos olhos e pediu-lhe para ter esperança porque. em boa
verdade. ele não viu o corpo. apenas tinha recebido um telefonema do hospital a
dar conta da tragédia. mas o melhor era realmente verificar se o falecido era
mesmo o zé – lembrando-lhe um episódio recente que passara na TV. também
anunciaram a morte de alguém que afinal não tinha acontecido – suplicou-lhe que
tentasse descansar um pouco. em breve lhe daria notícias a confirmar ou não a
morte do seu marido – a pobre mulher consumia-se em dor. mas percebeu que o
melhor seria mesmo recolher-se um pouco e esperar pela confirmação do seu amigo
– o momento era de solidão. precisava ficar só. libertar a sua raiva com deus.
perguntar-lhe porquê o seu zé. qual a razão para lhe roubar o homem da sua vida
3.
o jeremias completamente tresloucado foi
rapidamente ter com o seu amigo a um café nas redondezas – o zé já o esperava
agitado e tomado por uma cor que prognosticava grandes sarilhos. tudo apontava
para que fosse ele o próximo a desfalecer – o jeremias sem deixar que o zé
dissesse uma única palavra disse-lhe: zé não tens razão nenhuma para
desconfiares da cutilde. ela não só não tem ninguém como te ama perdidamente –
os olhos do zé. momentaneamente.
encheram-se de alegria – mas agora te digo meu amigo. depois do que vi.
creio que ela vai mesmo deixar de te amar – não sei como vamos descalçar esta
bota. fizemos asneira da grossa – juro-te que não sei o que fazer para reverter
esta palermice – o zé se por um lado se sentia feliz por saber que afinal o
amor da sua mulher era realmente verdadeiro. por outro. compreendeu que a sua
cabeça lhe tinha pregado uma partida – e agora o que fazer? o coração acelerou.
o suor começou a escorrer-lhe pela face e o pânico tomou-lhe conta da emoção.
estava como o burro no meio da ponte. não sabia para que lado se deveria virar
– fiz asneira e vou perder a cutilde. desabafou o zé – desesperado. novamente.
pediu ao amigo para o ajudar a resolver a doidice em que se tinha metido. não
podia perder a mulher que amava por causa de uns ciúmes estúpidos – e ali
ficaram aquelas duas almas descarnadas a tentar encontrar uma solução para
resolver o imbróglio. a preocupação era que a cutilde não desconfiasse que
afinal tudo não tinha passado de um teste estúpido e doentio para aferir a sua lealdade
4.
a cutilde. afogada em dor. não encontrava
justificação para continuar a viver sem o seu zé e. num ato desesperado. ingere
um frasco de calmantes – a vida sem o seu grande amor não faz sentido. a
solução é também ela acompanhar o seu marido na viagem final – tudo para ela
tinha sido bem claro no dia em que desposou o zé. viveria a seu lado para o bem
e para o mal. na saúde e na doença e até que a morte os separasse – sim. que a
morte os separasse quando a velhice já não tem remédio. não assim. ainda se estavam
a conhecer. eram umas crianças. dentro de poucos dias comemorariam o quarto ano
de uma união sagrada – que deus lhe perdoe. mas prefere estar ao lado o seu
marido no céu
5.
entretanto o zé continuava a discutir com o
seu amigo a melhor forma de resolver o problema e. por mais voltas que dessem.
rapidamente perceberam que a única saída para aquela palermice era regressar a
casa. pedir perdão à sua mulher e esperar que ela compreendesse que esta
loucura só aconteceu porque a amava loucamente e não a suportaria perder por
nada deste mundo – assim fez. encheu-se de coragem. e pôs-se rapidamente a
caminho. quanto mais depressa resolvesse esta sua triste história mais depressa
a sua vida voltaria à normalidade – entra em casa e depara-se com o corpo da
cutilde estendido no chão da entrada do quarto – toma-a nos braços. e em
desespero. abana-a. chama pelo seu nome umas quantas vezes. pousa o ouvido no
seu coração e rapidamente percebe que a cutilde já não pertence a este mundo –
senta-se no chão e com a sua amada nos braços aperta-a contra o seu peito e ali
fica em silêncio a embalá-la como se estivesse a dormir – revoltado com ele
mesmo. percebe tarde de mais que foi a sua insegurança que acabou por lhe
roubar o seu grande amor. tinha estragado tudo e ele era o único culpado do
desfecho
6.
ao mesmo tempo a cutilde chega ao céu e a primeira
coisa que faz é perguntar ao s. pedro onde está o seu zé. e quando não é o seu
espanto quando ele lhe diz que a morte do zé foi um embuste. infelizmente para
ela o zé não faleceu. mas pode ficar tranquila. o seu amor por ele foi muito
bem recompensado na terra. o zé ficou com a casa e o carro pagos ao banco. para
não falar nos milhares que vai receber do seguro de vida
7.
moral da história: não acredite em tudo que
lhe dizem – antes de tomar uma overdose de pastilhas. atirar-se de um penhasco
ou dar um tiro na cabeça. verifique com os seus olhos se ninguém o aldrabou – e
mais um conselho senhor leitor. tome muita atenção à vida. na maior parte das
vezes é mesmo essa ordinária que nos engana. amámo-la e em troca faz-nos um
manguito – mas no meu caso. que sou o contador da história. aviso-vos desde já
que não tomo pastilhas. exceto as que me aliviam o relinchar dos bicos de papagaio
– pobre cutilde
*título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros
* albert einstein
16/12/2019
até o ferro apodrece
não sou do CHEGA – não sou de
partido nenhum pois cansei-me de grupos organizados de políticos não sérios e
mentirosos [com pequeníssimas exceções] – mas sou do tempo em que a UDP. de
mário tomé. chegou ao parlamento e. nesse tempo novo para a recentíssima
democracia portuguesa. lembro-me de me regozijar e celebrar a sua chegada à
casa da democracia – mesmo não partilhando os valores daquela esquerda ou da
terrífica extrema esquerda. quem não se lembra dos comunistas que matavam os
velhinhos. acredito que foi o primeiro grande teste à pluralidade no parlamento
depois do 25 de novembro – eu gosto de vozes discordantes – gosto de quem
perturba os consensos podres dos partidos da área do poder – gosto de gente que
não tem medo de apontar o dedo. e talvez por isso. fique satisfeito com a
eleição do grupo parlamentar numeroso do bloco de esquerda. do PAN e mais
recentemente do CHEGA. LIVRE e INICIATIVA LIBERAL. e para que não fiquem
dúvidas. por causa das más línguas. nunca votei no BE – nasci em ditadura. mas
cresci em liberdade – amo a liberdade. sou e serei sempre um homem grato aos
capitães de abril – foi essa liberdade dos cravos que me permitiu crescer como
cidadão do mundo. um país livre não tem fronteiras. não tem muros. nem dogmas –
um homem livre tem dentro de si um pensamento livre – por isso é que não posso
admitir. ou tolerar. que um órgão de soberania. eleito em eleições totalmente
livres. recupere tiques estalinistas ou fascistas – o sr. presidente da
assembleia da república. dr. eduardo ferro rodrigues. não tem o direito de se
dirigir a um deputado eleito democraticamente pelo povo português. e digo
novamente. em eleições livres e democráticas. naquele tom esdrúxulo.
pantomineiro e desrespeitoso – a liberdade individual do deputado andré
ventura. mas também a liberdade coletiva de todos os cidadãos portugueses
representados naquela assembleia por força do seu voto livre. foi violentamente
atacada nos valores conquistados de abril – a casa da liberdade não pode
aceitar que deputados batam palmas a quem se esquece e não respeita o artigo 11
da constituição portuguesa:
Artigo 11.o - Liberdade de
expressão e de informação
1. Qualquer pessoa tem direito à
liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a
liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver
ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.
foi uma vergonha dr. eduardo
ferro rodrigues. indignas as palmas dos senhores deputados – estou farto desta
gente que vive da política. daqueles que se servem dela para melhorar
substancialmente a sua forma de viver. e. principalmente. daqueles que fazem da
política um tacho coletivo onde tudo é permitido aos da sua cor e nada é
consentido aos que estão na oposição – nunca vi o sr. presidente da assembleia
da república. dr. eduardo ferro rodrigues. indignar-se contra os abusos de
poder do seu colega de partido eng.º josé sócrates. entre muitos outros que por
falta de tempo e espaço me abstenho de enumerar – o voto é sagrado e a
assembleia da república o local certo para que os seus deputados. de todos os
partidos. honrarem a constituição portuguesa. lei suprema do país. aceitando-a
defender. respeitar e fazê-la cumprir. mesmo quando essa violação parte da
segunda figura do estado português. com assento no conselho de estado. e que
tresloucadamente. no decorrer do debate parlamentar. se permitiu a um papel ridículo.
só com paralelo quando se insurgiu contra o antigo presidente do sporting. dr.
bruno de carvalho – o segundo cargo do estado requer elevação e recato –
senhores deputados e deputadas do partido socialista. as vossas palmas foram
uma vergonha. foram uma vergonha. confesso-vos que me senti envergonhado com a
vossa atitude – os senhores deputados. têm o dever e obrigação de garantir e
proteger a liberdade de expressão dentro e fora da assembleia da república. a
PIDE e a censura extinguiram-se na madrugada do 25 de abril. a liberdade nunca
poderá ser partidária – é completamente intolerável que o sr. presidente
eduardo ferro rodrigues se dirija ao deputado andré ventura com aqueles termos
inapropriados e desrespeitosos de “então diga lá o que tem a dizer” – a palavra
“vergonha” ou “é vergonhoso” não só não é ofensiva. ou mesmo vergonhosa. como
na maior parte das vezes fica aquém na forma e no conteúdo do que os sucessivos
governos do PS e PSD merecem ouvir – a governação destes partidos tem sido. ao
longo da nossa democracia. uma vergonha ou vergonhosa – o sr. presidente da
assembleia da república recuperou os tiques autoritários de antigos dirigentes
do partido socialista. quem não se lembra dos tiques soaristas ou mais
recentemente dos tiques socráticos – o sr. deputado eduardo ferro rodrigues
representa a velha guarda de um partido que sempre teve dificuldade em aceitar
todos aqueles que corajosamente foram capazes de denunciar os compadrios /
corrupção existentes dentro do PS – basta recuar ao governo de josé sócrates e
lembrar todas as tentativas para manipular e silenciar a comunicação social –
não me lembro de ver o dr. ferro rodrigues ou o PS indignados com as palavras
com que o seu colega de partido atacava a dra. moura guedes ou o correio da
manhã – mas nem precisámos de recuar tanto na história do partido que sentou o
sr. deputado ferro rodrigues na cadeira da presidência da assembleia da
república. bastava que este ilustríssimo político se insurgisse contra o seu
último presidente parlamentar. sua excelência dr. carlos césar conseguiu
empregar toda a sua família em instituições do estado. e pasmem-se. até esteve
quase a colocar um seu familiar numa comissão de socialistas para dinamizar os
cemitérios de lisboa. ele e mais uns quantos correligionários – é obra dr.
césar. isto sim é uma vergonha que nunca ouvi o militante socialista ferro
rodrigues insurgir-se. indignar-se com mais esta vergonhosa matilha de
delapidadores do erário público – diz-se por aí. pelos corredores da assembleia
da república também. que a figura de sua excelência dr. eduardo ferro rodrigues
substitui aqueles famosos três sábios macaquinhos japoneses que tapa os olhos.
a boca e os ouvidos sempre que se trata de recriminar o seu partido empregador
– mas desta gente dos partidos já pouco ou nada espero. da direita à esquerda –
o que me incomoda é o quase silêncio dos srs. jornalistas. dos opinadores da
política. dos comentaristas. dos analistas e dos colunistas. sim. esta
ilustríssima gente também vive da política. é conhecida graças à política.
aparece nas televisões pela mão dela e é estimada pelos políticos sempre que
precisam dela – assim sendo. deveriam ser estes senhores os primeiros a reagir
contra a tentativa de manipulação da liberdade de expressão. deveriam ser os
primeiros a cerrar fileiras contra qualquer tentativa de desvirtuar ou
condicionar um deputado na sua oratória política. mesmo que esse deputado seja
da extrema direita ou extrema esquerda. mas eleito em democracia – afinal
também vivem da palavra livre ou será que a vossa liberdade é igual à do sr.
presidente da assembleia da república… tem partido
13/12/2019
eu. os pés e a cabeça
ninguém sabe exatamente o que sou – às vezes sou uma coisa sem
pés nem cabeça. outras vezes. carrego uma cabeça que não me leva a lado nenhum.
e nos dias em que a cabeça sabe para onde ir. faltam-me os pés. por isso fico
onde estou – quando me aborreço de ser uma coisa sem pés. nem cabeça. sou o que
encontro à mão: sorrio. canto. danço. leio os astros. deito cartas do tarot.
faço serenatas para a lua e. nas noites de lua cheia. uivo e suplico aos
morcegos para me purgarem desse sofrimento – gostava de ser um transmorfo e.
quem sabe. transformar-me numa dessas criaturas que não têm alma e se alimentam
dos espíritos desassossegados. mas não sou coisa nenhuma para além de não saber
o que sou – talvez por isso. por não me transformar em coisa nenhuma. os
“outros” entendem que sabem tudo do que sou – que palermice – esquecessem-se
eles do que são e. sem se aperceberem. transformam-se no que não é bom – desses
“outros” nada sei. às vezes acredito que
são como são porque. infelizmente. nada podem fazer para não serem assim como
são. mas confesso. não são como eu gostaria que fossem – reconheço que não sei
nada de ninguém. houve tempos em que também acreditei que sabia quase tudo do
mundo e dos “outros”. agora. com o tempo a esgotar-se. percebo que quanto mais
envelheço menos sei do mundo. dos “outros” e também de mim – não sei nada de
nada e mesmo que pudesse saber não queria. perceber o pouco que sei de mim já é
coisa séria e complicada – sou um ignorante ingénuo. um analfabeto que sabe ler
e escrever e que. com o tempo a gastar os minutos. atrás de minutos. reconhece.
agora. que apenas o que faço com o meu destino me preocupa – todos temos uma
missão a cumprir nesta passagem efémera pela vida. tristemente e em agonia. eu ainda
procuro a minha – quando os “outros” crêem que sou o que não sou. olho para o
céu. abano a cabeça. rezo ao anjo da guarda. invoco os meus santos protetores.
são três: o velho s. judas tadeu que controla tudo o que são causas difíceis;
stª bárbara porque sempre tive medo das trovoadas; e stº estevão que em miúdo
fez o milagre de me tirar uma dor de dentes e. porque quero muito acreditar
nesta fé invisível. a troco de umas quantas orações. suplico-lhes que me aliviem
a carga dessa gente que me pesa – mas quando essa malta me aborrece mesmo muito.
e não quero maçar os meus benfeitores. saco da flauta mágica e disfarço-me de
hamelin. e tudo o que rasteja levo para desaparecer e o que é exasperação…
deixa de existir – estou demasiado ocupado com esta nova certeza de que estou mesmo
a envelhecer. não posso. não quero. e
nem necessito de me aborrecer com o que não me pertence – de seguida invoco o
destino e renovo-lhe a minha lealdade ao caminho traçado: sou o que sou e assim
será até ao seu final – por mais voltas que deem à balança ela tombará sempre
para o meu lado. tranquilamente e em serenidade – no entanto. nem sempre estou
no mesmo lado do equilíbrio. às vezes estou do lado da razão. outras da emoção.
mas na maior parte das vezes. estou no outro lado de mim. no escuro. no
silêncio. onde o medo acontece e os pecados se expiam – só eu sei onde centro a
coerência. sendo eu um homem com valores renascentistas. recordo leonardo da
vinci num dos seus muitos pensamentos: “é preciso deixar a sua marca na
história. fosse em que campo da existência fosse” – é neste caminho. que é só
meu. que tudo faço para me tornar mais indulgente. tolerante e condescendente
com o que os “outros” pensam que sabem de mim – continuo a ser como sou.
continuo à procura do melhor em mim e para mim. continuo a tentar aquilo que
ainda não fiz. encontrar a minha marca para a minha história. para o meu
bem-estar. que bem pode não ser o vosso – termino com duas anotações de
leonardo da vinci:
29/11/2019
henrique rojas montes
“parece-me que necessitamos de uma visão
mais abrangente, sobretudo no que se refere à gestão do amor. O grande erro do
século XX foi acharmos que o amor era só um sentimento, que vai e vem. E que
era um monólogo. Na realidade, o amor maduro é um ato de vontade e de
inteligência.”
27/11/2019
chegará o dia
chegará o dia em que direi:
que se foda a respiração
e todo este corpo
que mais não é
do que carne alimentada por dois pulmões
que respira mortalidade
ou vida estúpida
ou fuga à morte
ou outra coisa qualquer
que nos mantém ligados às ruas
aos sinais de trânsito
aos mercados com as suas vendedoras
às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade
como se um mar se guardasse num charco
e ao pequeno almoço que é quando começa o dia
e o corpo se curvasse ao café expresso com fé
que a sua cafeína seja a força motriz
para levantar voo até saturno
mas se não houver espaço
estrelas ou cometas
que as borras do café se transformem em raiva
para levantar o mundo
que tenho dentro de mim
chegará o dia em que digo: que se
foda a respiração e todo este corpo que mais não é do que carne alimentada por
dois pulmões que respira mortalidade. ou a vida estúpida. ou fuga à morte ou
outra coisa qualquer que nos mantém ligados às ruas. aos sinais de trânsito.
aos mercados com as suas vendedoras. às gaivotas tontas que agora aparecem na
minha cidade. como se um mar se guardasse num charco. ao pequeno almoço que é
quando começa o dia. e o corpo se curvasse ao café expresso com fé que a sua
cafeína seja a força motriz para levantar voo até saturno. mas se não houver
espaço. estrelas ou cometas. que as borras do café se transformarem em raiva
para levantar o mundo que tenho dentro de mim
20/11/2019
eu. os peixes e o cloro
em dezembro de 2010 resolvi
trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na cor –
instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes de
ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau naufragada do tempo
do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas para que os guelras
pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma ânfora que borbulha bolhinhas
de oxigénio e. mais uns quantos “bisegres” para que o fundo da caixa
reproduzisse. dentro das inúmeras limitações. o fundo do oceano – depois de
tudo devidamente preparado e ornamentado inundei a caixa de vidro com água da
companhia – delicadamente. abri a saca de plástico transparente. onde
transportei os guelras da loja até casa e. um a um. com delicadeza. operei o
transbordo para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus
novos animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de estimação e.
rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm uma característica em
comum. só precisam de liberdade para serem felizes – ali estava eu parado.
também imerso em prazer. a degustar o meu novo e excêntrico “affair” hídrico.
suplementado com uma convicção firme de que tinha acertado na escolha dos novos
inquilinos para o meu exótico aquário – os guelras estavam felizes e confiantes
no seu novo habitat. estavam enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com
curvas e contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam
de bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera. tal era a
velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro – estávamos
todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu lado. intrigado com a
singularidade dos feitios e cores dos novos amigos. não parava de abanar a cauda
– estava tudo a correr dentro da normalidade perspetivada pela vendedora.
especialista em animais de todas as espécies. quando me apercebi que algo
estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos. os olhos
esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não estava prevista no
manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de peixes ornamentais –
entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de peixes. em toda a minha vida só
com cães tinha partilhado afetos. não fazia a menor ideia de como se tratar um
peixe. nem avaliar a gravidade dos sintomas – será que estavam todos a ter um
AVC por intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de
adaptação ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o
mal. sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que
não se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus
tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior. estou
sujeito a que. a qualquer momento. me toque a campainha e me apareça à porta a
CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]–
comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei:
será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem
possível. a água ultimamente não anda grande coisa – se fossem humanos.
percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má qualidade da água.
reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos que a maleita passaria
com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os guelras não têm mãos e
as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas chegam aos olhos. que
chatice. nem uma comichãozinha podem ter – deus lá teve as suas razões para que
na sua infinita sabedoria não lhes desse mãos – mas a verdade. é que se lhes
tivesse implantado umas mãozinhas. tinha-me aligeirado a resolução do problema.
misturava na água umas gotinhas para a conjuntivite e logo via se o piscar
abrandava – vá-se lá entender deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola
ao saco e calar-me. não vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu
palavreado e ainda lhes desarranja os intestinos – já deveria saber há muito
que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar
preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto mais
paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar dos
olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são uma
dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a minha
preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não terem lágrimas.
mas porque não têm sentimentos – a verdade é que também conheço muitos humanos
assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem no meio do oceano – quem sabe
se deus quando criou o mundo animal tenha concebido os peixes propositadamente
assim. diferentes de todos os outros animais – talvez quisesse um animal que
não fosse bem animal. distinto de tudo o que tinha criado até ao momento.
distante dos homens. escamado. com guelras para sobreviver escondido na água.
frio. sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do
mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de
viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a resposta seria sempre um
desapego silencioso por tudo o que o rodeia. sem emoções. sem latidos. sem
rosnar. sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo traz
ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das barbatanas
com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os olhos para assinalar
a marcha pela profundeza dos oceanos – deus substituiu-lhes então as mãos por
guelras para que não pudessem abraçar. de seguida. tirou-lhe a voz para que não
pudessem dizer: gosto de ti e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras
para que não pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos
oceanos e mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior desafio
para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa indiferença. nem
tampouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se fez a vida dos peixes
desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a vida dos animais com
guelras é realmente muito complicada e sem sabor – foi quando pensei como a
criação do homem foi especial. como é bom dizer a alguém gosto de ti. abraçar e
sentir o calor da retribuição. o carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra
ou uma lágrima – deus fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as
correrias dos guelras. sentado a meu lado o meu cão seguia atentamente as
acrobacias dos seus novos camaradas com espanto. percebi no seu olhar que
estava feliz. não sei se por achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou
apenas porque estava solidário com a minha alegria – a vida só tem sentido
quando não desistimos dos afetos. mesmo quando esses afetos são difíceis de
alcançar. como com os peixes – encostei a minha cara ao aquário e com um
sorriso de quem gosta de fazer novos amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito
gosto. sou o vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis
na vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta
emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um borrifo de água.
mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois da apresentação fiquei
com a ideia de que deixaram de piscar os olhos e. estava para jurar. que até
sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar ou mudar o que deus fez –
olhei novamente… e decidi batizá-los. talvez assim passassem a ter alma – para
batizá-los escrevi o texto: aquário
os meus olhos encheram-se de
peixes – eugénio. amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua
marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se de negro. talvez
saiba da morte – pessoa. sempre ele. um vira-casacas. à noite caeiro – eu… sou
aquário de ascendente [hoje]. mas só depois de carneiro
11/11/2019
serei o quê?
um dia serei o quê?
um abraço
uma voz
um amigo
um inimigo
um viajante
um bobo
um escritor
um poema
um caminho
um jeito de andar
um dia serei o quê nesses vossos olhos?
um sopro
um lenço de mão
uma palavra
um beijo
uma forma de rir
uma lágrima
uma fotografia
um momento
um sol
um dia que se cruzou numa rua
um dia serei o quê nessa vossa boca?
uma oração
um pecador
um sedutor
uma flor
um gesto
uma fé
um sorriso
um teimoso
um sonhador
um carro de velocidade
um dia serei o quê nessa vossa recordação?
um arrependimento
um azar
um desastre
um amor
uma paixão
um pai encantado
um filho extremado
um marido apaixonado
um avô história
uma saudade que nunca se cansa
um dia serei o quê?
serei o quê nessa vossa vida?
serei para vós o mesmo quando o inferno me pungir a alma?
serei para vós o mesmo quando o céu me postular. não o que vós
pensais. mas o que as mãos carregam?
serei adeus ou serei goodbye
serei lágrima ou serei silêncio
serei saudade ou serei vai com deus
serei cerimónia fúnebre ou serei cerimónia de conciliação
tudo o que sou será pertença de um único dia: o dia do
juízo final
e então… nesse dia estúpido
serei o quê nesses vossos olhos?
serei o quê nessa vossa boca?
serei o quê nessa vossa memória?
alguma coisa sei que serei
porque ser nada
seria castigo que nem a morte desejaria
07/11/2019
teatro
[dedicado a júlio saraiva
poeta e jornalista já falecido]
sou teatro…
parei agora para pensar um
pouco
sossegar-me destas aflições
vocês compreendem…
não é fácil representar a
vida toda
nesta pausa
posso ser quem sou
inclino-me
seguro a cabeça com as mãos
fecho os olhos
e vestido a preceito desde a
última cena
viajo até à nascente
lá… onde ainda vivem as
fadas.
neste encontro,
não preciso do ponto
nem do contraponto
e nas luzes da ribalta
surgem sonhos infrangíveis
neste pensar, encontro-me
em palcos dourados,
tribunas,
plateias,
camarotes,
frisas e palmas
é o teatro gigante
e eu tão pequeno
tudo esgotado,
tudo de pé
chamam-me os aplausos
em coro,
acenam cachoeiras de flores
que eclodem aos meus pés.
é a primavera
pensava eu.
mas os olhos ainda raíam
deste descer à verdade.
rompem as pancadas de molière
o contrarregra vai subir o
pano
também eu subo à vida
acabou o teatro.
no dia
em que postei o teatro no luso poemas. agosto de 2009. recebi uma mensagem
privada do poeta e jornalista júlio saraiva que. amavelmente. fez questão de me
dizer quanto tinha gostado do poema e. na sua simplicidade. pediu-me
autorização para o levar para o seu blogue – nem queria acreditar que o júlio
saraiva se tinha dado ao trabalho de me escrever. que me elogiasse e quisesse divulgar
o poema na sua página – é a primeira vez que torno público este episódio. confesso
que fiquei um pouco envergonhado e pensei: e agora o que vai ser de mim. como
vou manter o nível. que dirá o júlio se ler o meu próximo poema – admito que nunca
me senti nem confortável. nem feliz com a poesia. só a prosa me enredava o
tempo com verdadeiro prazer – entrei em pânico e achei que o melhor para a
minha poesia seria silenciar-me. quanto menos pessoas soubessem deste episódio.
melhor – não sei se alguma vez o postou. confesso que nunca fui bom a seguir a
vida dos outros. mas também não é importante. valorizo mais o impulso. a
verdade do instante. e esta é sempre mais apreciada quando emerge na espontaneidade
– uns tempos depois faleceu e nunca tive oportunidade de lhe agradecer aquele
gesto. principalmente. nunca tive oportunidade de lhe dizer como aquela mensagem.
naquele instante. me devolveu a vontade de escrever – o luso era um espaço
pequeno para tanto ego gigante. sobrava a vaidade. a arrogância. a falta de
humildade e. principalmente. o bom senso e a tolerância – reconheço que havia
colegas intragáveis. de mau carácter. monstrinhos egocêntricos que projetavam uma
grandeza que. em boa verdade. não tinham – ser grande entre os pequenos não os
tornava especiais – não era fácil lidar com esse lado sombrio dos poetas – mas bem lá no fundo confesso que aprendi
muito com os meus camaradas do luso e a todos estou agradecido – depois. tal
como os mágicos fazem magia. o júlio também criou um momento excecional para
mim – durante um tempo esqueci tudo o que era mau – a modéstia chega sempre
mais depressa a quem não precisa de se pôr em bicos de pés para ganhar altura. já
são grandes. e ponto – que nunca lhe falte nada. esteja ele onde estiver. mas
se faltar. que não seja papel. lápis e… amigos. para que. em companhia. continue
a beber o seu “choupinho”
31/10/2019
manuel de barros
22/10/2019
eu. a dama e a celulite
em contramão. uma dama rebuliça e enérgica
dirige-se para mim – acerto-lhe com os olhos. e interrogo-me: será que vou ter
problemas. a esta velocidade vai-se-me enfaixar no pescoço – cabelo loiro
oxigenado. levantado à frente. face redonda e rosada. não sei se é cor natural
ou se está apenas afogueada pela velocidade que imprime ao andamento. uma
pochete louis vitton contrafacionada num bairro chinês de pequim. acompanha o
movimento das pernas numa desordem perigosa. ainda vai dar com o adereço na
cabeça de algum transeunte – botas douradas. furadas com estilização. sobem-lhe
pela perna com ganas de chegar o mais longe possível – dois dedos acima de uma
rótula rombuda e três abaixo da cintura. uma minissaia branca vestida com
desprezo. a fazer sobressair uma cicatriz mal-arrumada no umbigo. mascarada de
importância com piercings-diamante falso de quinze quilates – confesso que
fiquei com a ideia de que a saia era apenas um adorno para desviar as atenções
do umbigo – olhos redondos. claros. a contrastar com uma pintura excêntrica. um
negro que não era luto. balançava o corpo numa agitação perigosa para os dois
enormes seios amarrotados pela licra preta de uma camisola de alças – confesso
que por momentos entrei em pânico. a aproximação apresentava-se desatenta.
descuidada. desnorteada. e decididamente em excesso de velocidade – tinha que
evitar a todo o custo o embate – já não tenho condições para choques com
viaturas que transportam matérias perigosas – cerrei os dentes e preparei-me
para a fusão dos corpos – quando pensei que o embate era inevitável. a dama.
num movimento de toureio. atira com as ancas para um lado. e sai com o tronco pelo
outro – foi tudo tão rápido que comecei à procura da bandarilha espetada no
corpo – felizmente tudo não passou de excitação – olhei para trás e ainda não
recuperado percebi que a minha alucinação se deveu a uma mini saia comprada nas
galerias lafayette de paris. encandeou-me. cegou-me. roubou-me o norte e mesmo
numa excitante desordem mental. percebi de imediato que me tinha perdido nos adereços.
a testosterona invadiu-me os neurónios. começou a descer-me pelas vértebras. comecei
a suar em bica e quando dei conta estava com a dama em pecado. em pensamento. mesmo
à minha frente – era muita mulher para mim. era muita curva e contracurva. era
um pecado quase mortal. deus. e a minha companheira. nunca me perdoariam um
pecado com esta dimensão – desorientado. fiquei sem saber se seria melhor
atirar-me para uma valeta ou aceitar o embate como inevitável e preparar-me
para as consequências – era impossível ficar indiferente às propriedades naturais.
penso eu. desta excêntrica dama – deitei os olhos ao chão. arrependi-me. voltei
a olhar. deitei novamente os olhos ao chão. voltei a arrepender-me. voltei com
os olhos para o chão. e foi então que. surpreendentemente. a dama me dirigiu a
palavra: estás a olhar para onde – surpreendido. envergonhado e embaraçado
respondi: estava a olhar para a celulite. isso não está nada bem. e não condiz
com a minissaia – e assim. numa manhã de quarta-feira nos cruzámo-nos numa
eternidade de tempo: eu tão cedo não vou esquecer esta dama e a dama vai comprar
todos