.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

31/12/2019

quero muita merda para 2020


foto - google


chegou ao fim mais um ano de trampa – venha lá esse 2020. venha lá uma nova fé ou uma nova crença de que tudo. finalmente. vai ser diferente para melhor – esta esperança saloia que me impregnaram no corpo é mesmo de baixo teor encefálico – mas. que posso fazer eu. sou apenas mais um mortal fraco e cegueta a deambular pelos ponteiros de um relógio que me engana desde aquela passagem de ano. onde eu e mais dois amigos destemidos. nas traseiras de uma toyota hiace. gritámos urras. vivas e impropérios à chegada de um ano que acreditávamos que nos traria todo o futuro risonho do universo – foi a última passagem de ano em que não fizemos uma contagem decrescente. o barulho dos foguetes iluminou o caminho de uma carrinha parada num descampado de adamastores – não temíamos nada. nem ninguém. éramos apenas crianças mascaradas de mosqueteiros em que o lema de alexandre dumas se renovava com esperança e alegria às doze badaladas: todos por um. um por todos e feliz ano novo – que bonitos que éramos. não há nada mais bonito do que um corpo imaculado – juramos que um dia. num futuro próximo. voltaríamos a comemorar uma outra passagem de ano num rolls-royce branco. descapotável e flutes de dom perignon apontados às estrelas – pobre é assim. sonha – sonhar não custa dinheiro – pobre o que quer é saltar e cantarolar aquela contagem decrépita do ano velho e comer uva-passa às manadas para que nenhum mês caia em desgraça – pobre fica tão entusiasmado com o fim de ano que até se esquece de gastar o último dia de dezembro. e quando acorda. já é janeiro e pede socorro jurando que o ano lhes foi roubado no instante em que terminou – claro que estou a citar o caco antibes. quem melhor do que ele para falar de pobres.  só o caco é capaz de me espremer o cérebro no último dia de 2019. entrar dentro do meu ouvido e suavemente. chingar-me a honra e a fé: “pobre tem que ficar tudo socado no conjugado”. pobre vai à loja de 1.99€ e “compra tudo de prástrico” – pobre é uma visão do inferno. faz a festa assobiando num apito que vai e vem e atira confetes ao ar acreditando que é o botão dourado do got talent e. como não quer perder pitada do réveillon. fica tão apertadinho que até faz xixi pelas pernas abaixo. eufórico e com as meias ensopadas de mijo berra e jura que o novo ano lhe vai trazer paletes de dinheiro. e as gajas da playboy tocar-lhe-ão á porta doidas por uns preliminares com o novo capitalista – no meu caso. criado e ampliado com o pó de deus. substituo as gatas assanhadas das revistas de adultos por uma renovada esperança de que a minha companheira maria joão suavize o seu temperamento e abrace mais a leveza dos dias – pobre é assim mesmo. contenta-se com pouca coisa. é boa pessoa. mas tão ingénuo que se deixa iludir com facilidade – mas não se aflijam porque já me tratei pior do que uma porta. talvez por ser fim de ano sinta necessidade de recuperar alguma indulgência para comigo – o ano não foi bom para quem ama – mas agora que renovei a fé em deus. estou mais crente do que nunca no aparecimento da bondade divina para com este seu pobre servo reconquistado pelos desígnios do senhor – só há uma coisa que não quero perder com a entrada do ano novo: a memória e esta saudade que carrego dentro de mim que me fere como se trouxesse à cabeça a coroa de espinhos da crucificação de jesus – são estes espinhos que me recordam que um dia ao pó voltarei e nada serei se não aceitar em mim tudo o que é invisível – sou uma criatura de deus. agora agradecido. sentimental e com a fé atualizada para nunca mais esquecer de que a morte mais não é do que o fim do corpo na terra – quero acreditar que um dia. num outro espaço temporal. a saudade que não sei escrever terminará com o reencontro de todos aqueles que partindo desta terra. ficaram eternamente em mim – em 2020 quero continuar a ter saudades do meu pai. da sua leveza de espírito. da sua bondade. do seu sentido de justiça e daquele sorriso que era um abraço – quero ainda ter mais saudades de minha mãe e continuar a cumprir a sua última vontade. eu e os meus irmãos sabemos bem o seu último desejo – quero continuar a sentir-me mal por ainda não ter encontrado forma e engenho para prestar homenagem a uma mulher que foi o pilar da nossa família – a minha mãe tinha a força de quinhentas trovoadas e a doçura das manhãs dos primeiros dias de primavera. devemos-lhe quase tudo – era uma mulher emancipada que lutou por tudo aquilo que diariamente conquistou. sem nunca se esquecer de que uma família para se eternizar precisa de amor – lutar. trabalhar. amar. lutar. trabalhar. amar até que o coração se renda ao peso dos anos – foi assim que a minha querida mãe partiu – quero que os dias de sol me tragam de novo a minha cunhada – a minha zéza também era o sol da nossa / sua família – em 2020 não quero perder nada do seu legado: devolveu-me a fé e a certeza de que esta vida é apenas uma passagem e o mais importante é dizer tudo o que que nos vai na alma no momento certo – nunca deixes nada por dizer. amanhã pode ser tarde – a minha cunhada disse-me as coisas mais bonitas que um homem pode ouvir. disse-o em saúde. sem medo. olhando-me nos olhos. amarrando-me as mãos e com a bondade de um coração de ouro que imaginava viver para sempre – a minha zeza fez de mim um homem muito mais tranquilo e sereno. era a minha menina. era a irmã mais nova que nunca tive – para mim será sempre aquela miúda com cabelo aos caracóis. óculos enormes que escondiam uma vontade de viver celestial. envergonhada e giraça – conhecia escondida atrás das cortinas da sala a primeira vez que entrei na casa dos seus pais – não posso mudar o passado. mas posso e quero recordá-lo. quero recordar para sempre a minha cunhada feliz com o seu companheiro que agora guardo também no meu coração – a vida foi muito ingrata e injusta para este amor que só pecou porque o tempo se perdeu nos desencontros da vida – feliz ano joana e miguel. este ano tirou-te a pessoa mais importante da vida. mas não desistas de viver em alegria. vai por esse mundo fora e serás recompensada – a tua mãe estará de olho em ti – quero amar todos aqueles que vivem em mim. pouco ou muito. não importa. sem estas memórias não sou nada. e se não for nada não existo e quem não existe nunca saberá que o céu é a cobertura dos homens bons – sempre tive muita gente boa a meu lado. que sorte. um privilégio que aceito com gratidão – em 2020 quero a minha família e amigos mais perto de mim. todos. quero a vossa paz e a vossa bondade – não sou especial. mas sou lopes – em 2020 quero continuar a lembrar-me do tio joão. há dias que sinto tanto a sua falta. era um homem especial. inteligente e gentil. não merecia partir tão cedo. fez-nos muita falta – ficou a sua semente a confirmar que árvore boa não dá fruto mau – quero lembrar-me dos amigos que já partiram. do joquinha. do luís vieira e do sérvio. gostava de um dia voltar a encontrá-los – em 2020 quero que os meus filhos continuem a crescer com honra. saúde. trabalho e bondade – quero que sejam destemidos no amor. amar sem medo é a melhor coisa do mundo. amem de qualquer das maneiras. quem ama não teme o próximo. nem o futuro. acreditem nas pessoas. ajudem sem olharem a quem. sorriam. vocês são homens fantásticos. são especiais. são únicos porque transportam a alma do vosso avô dentro de vocês – neste novo ano quero que as minhas noras sejam muito felizes. honradas pelos seus companheiros e recompensadas pela vida. vocês são as mulheres mais importantes do universo. são vocês que cuidam do nosso único tesouro. os filhos são a nossa luz – andreia. obrigado por esse sorriso com que carrega no peito o nosso luís. a andreia sabe como esse rapaz é especial. foi o meu primeiro desejo. ser pai do luís – não podia ter um filho melhor – obrigado também pelos nossos dois netos. tenho a certeza de que serão. um dia. miúdos grandes em virtudes e felizes – pedro não desistas nunca dos teus sonhos. a vida encontrar-te-á para o sucesso. não corras. mas não abrandes. tu és um bom rapaz. nunca me cansarei de acreditar no teu futuro. adoro-te – joão estamos muito orgulhosos de ti. este último ano confirmou o que sempre soubemos. tens tudo para ser feliz e independente – não te esqueças que foste ensinado a amar sem medo. aprende a sorrir e deixa-te ir pelo mundo fora. és excecional e com um coração enorme – um beijo muito especial para as futuras noras. bela e sofia. quero o melhor para vocês. mas também quero que não se esqueçam de fazerem os nossos meninos felizes. eles são meninos bons e gostam de amar uma única mulher – também quero para 2020 que a lurdes envelheça com dignidade. ela merece tudo de bom. os anjos não têm que servir de exemplo ao mundo – claro que um bom ano nunca poderia ser bom se a minha sobrinha e a sua família não chegarem em paz à sua casa. virá um anjo sentado na asa do avião – quero também para a minha irmã. irmão e famílias muita saúde e paz. serão sempre carne da minha carne e sangue do meu sangue – quero muito que a minha cunhada teresa não se esqueça da sua irmã neste novo ano. fazes muita falta à maria joão. e claro. muita saúde para toda a tua família – em 2020 quero o melhor da vida para a melhor companheira e mãe do mundo. já são tantos anos a brindar a um novo ano – amo-te muito. mais do que a lua. o sol. o vento ou a chuva – o que seria de 2020 sem o teu sorriso – no novo ano vamos passear descalços pela praia. vamos ver o nascer do sol. vamos beijarmo-nos e renovar os votos do nosso casamento – preciso de me casar outra vez contigo – nunca tivemos medo de nos amarmos e assim será até ao fim dos nossos dias: prometo estar contigo na alegria e na tristeza. na saúde e na doença. na riqueza e na pobreza. amando-te até que o nosso mundo termine – espero que deus finalmente ouça as tuas preces e não deixe que o teu pai se esqueça de ti – sei que esse é o teu maior desejo para 2020 – e já que 2019 está prestes a terminar. peço que 2020 traga muita saúde para todos aqueles que me estimam como amigo. sem eles. eu seria apenas metade do que sou – devo-vos tanto. são poucos. mas são tão bonitos e bons – salve 2020

 


29/12/2019

no meu peito já não cabem gaivotas* 4



imagem - google 



introdução.

finalmente uma morte que traz boa disposição – confesso que já sentia falta de uma escrita levezinha. tranquila. serena. uma escrita tipo chazinho de camomila – nesta saga analítica de quatro tipos de morte. a morte dolosa ou fraudulenta. que vos entrego. foge totalmente ao estilo de escrita do sampaio rego. creio que é mais o género do joão surreal – mas não importa quem escreve. o importante mesmo é esta vontade de compor a vida que me sai de dentro. esta emoção. esta perturbação. este desassossego que me magoa e ao mesmo tempo me ilude com o tempo. faz-me viver. faz-me sorrir – meu deus. como sou feliz nesta busca incessante das palavras que nunca sei onde estão – hoje. graciosamente. trago-vos uma morte que é uma história embrulhada numa bela surpresa. com um final tipo alfred hitchcock – tentarei então fazer um embrulho com um laço bonito. quer dizer. um laço pomposo e misterioso. só espero que o papel chegue e a história no final mereça o vosso sorriso – vamos começar então


1.

um marido convencidíssimo de que a sua esposa o atraiçoa sente-se completamente desesperado. e de tal forma encasquetou que essa deslealdade era real que a sua vida se tornou num verdadeiro inferno – o ciúme passou a governar completamente a sua racionalidade. convertendo-a numa irracionalidade absoluta – afogado nesse sentimento egoísta e incapaz de dialogar com a sua companheira. busca em si um motivo para essa traição. mas por mais que procure uma mínima razão para essa evidente deslealdade. não a enxerga – está desesperado. sempre amou esta mulher. sempre foi fiel. sempre viveu para a família – à falta de uma resposta que lhe alivie o sofrimento deixa-se tomar por uma raiva silenciosa e o desfecho é o colapso emocional – não quer acreditar que se tenha enganado quanto à companheira que conheceu ainda adolescente. não pode. a mulher que um dia jurou amar pela santidade do casamento católico é o centro do seu universo – o que seria da sua vida sem a única pessoa que deu sentido à sua existência – com a psicose gravemente instalada. esta leva-o a um pensamento delirante. pouco lúcido. sistematizado pela negatividade e dotado de uma lógica errática própria de quem está doente – uma mente doente pensa doentiamente – a falta de confiança arrasta-o para uma agressividade interior perigosa e desgastante e a relação entra definitivamente num estágio dramático – o silêncio é agora o seu maior inimigo – o seu casamento está por um fio. a angústia é contínua e as noites uma enfermidade dolorosa que o impede de descansar – deita-se infeliz e levanta-se ainda mais infeliz. sente-se o pior homem do mundo – inseguro e com a sua autoestima a roçar a lama. percebe que não aguenta muito mais esta sua indeterminação e. resolve partir em busca da verdade. doa o que doer – ele sabe que o tempo está contra si. este medo de perder a mulher que ama está a enlouquecê-lo – o coração está prestes a implodir de sofrimento. é hora de saber toda a verdade. é hora de saber se ainda é o homem que a sua mulher quer ter a seu lado para o resto da vida – chegou o momento de enfrentar o medo. é urgente saber a verdade. a sua amada tem que lhe dizer. olhos nos olhos. que o amor acabou. que foi bom. mas chegou ao fim – depois de muito ponderar concebe então um plano que lhe permita. objetivamente. aferir se as suas preocupações são reais ou apenas a alma doente – tem que saber se a sua esposa tem um caso ou não. se o ama ou não. meios termos já não são aceitáveis. a dor é colossal. insuportável. há que colocar tudo em pratos limpos – reconhece as suas fragilidades por que passa e reconhece também que só um amigo verdadeiro será capaz de o compreender e ajudar – está desesperado. sabe que o plano é arriscado e maquiavélico. mas parece-lhe ser esta a única solução capaz de lhe devolver a paz e o casamento


2.

o amigo dirige-se a sua casa. toca a campainha. aguarda uns segundos. a porta abre-se e dá de caras com a esposa do zé meireles que. surpreendida com a visita. lhe pergunta:

-- a esta hora aqui. aconteceu alguma coisa?

o amigo pesaroso e pouco à vontade responde-lhe a gaguejar:

-- si... sim há. nem sei como te dizer…

faz-se silêncio. os olhos da cutilde arregalam-se. o corpo entesa-se. as faces ruborizam-se enquanto a mudez é consentimento para que o amigo do seu marido diga rapidamente ao que veio – o jeremias entristecido. com os olhos encharcados de dor. a tremer e a gaguejar diz-lhe então:

- o… o zé acabou de falecer. foi atropelado

[colocado num local estratégico. camuflado. mas com uma perfeitíssima visão para o patamar da sua porta. o zé tenta perceber nos meneamentos da sua querida esposa se realmente vislumbra algum detalhe de júbilo ou tristeza]

a cutilde estremece. bamboleia. como se também ela tivesse sido atropelada e. enquanto os segundos se multiplicavam numa eternidade toda ela é tomada por uma dor paralisante. não consegue pronunciar uma única palavra – não se ouve um único som ao redor de si. parecia até que o mundo tinha acabado de falecer – o jeremias. em pânico. arruma-se igualmente dentro do silêncio. concentra-se e projeta os olhos para dentro da alma da cutilde – também ele quer saber se o seu amigo está. ou não. a ser enganado pela esposa – o zé meireles é o seu amigo do coração. cresceram juntos. fizeram a escola juntos. andaram nos namoricos juntos e quando um tombava com um copo o outro nunca ficava para trás. se tivesse que dar a vida por alguém. esse alguém. seria o zé – são mais do que amigos. são manos e o sofrimento de um mano não dói. mata-nos – a cutilde dá dois passos atrás. encosta-se à porta. percebe que está prestes a colapsar. e sem que o jeremias lhe pudesse valer. o corpo desfalece e as pernas acabam por ceder – cutilde está prostrada no chão – o jeremias entra em pânico. pela primeira vez. percebe que talvez o plano possa não correr como tinham planeado. dá-lhe duas bofetadinhas ao de leve. abana-a. chama-a pelo nome em desespero e. com custo. tempo e terror. a cutilde reabre os olhos – completamente desfigurada. rapidamente recupera a memória do drama que está a viver e. numa agonia de estraçalhar o coração. recusa acreditar que o seu zé a tenha deixado ficar para sempre – a dor é insuportável. o coração está prestes a partir-se e o corpo a sufocar perde-se em lágrimas – completamente desorientada levanta-se. anda de um lado para o outro sem discernir o que realmente deve fazer. sente-se perdida e não raciocina – se por um lado quer sair a correr para abraçar o zé. por outro. recusa-se confrontar com a verdade – já ninguém tinha realmente dúvidas que a cutilde amava o zé. era fácil de perceber que a dor era genuína. saí-lhe da alma. o zé meireles era o único homem da sua vida – quem entrou em pânico foi o jeremias. também ele começou a sentir as pernas a desfalecer enquanto o corpo tremia como varas verdes – estava metido numa alhada e agora não sabia como resolver a situação – com a voz trémula tentou rapidamente encontrar um paliativo para o drama. pelo menos adiar um pouco o que parecia já não ter solução – foi uma grande estupidez. diria mesmo. do tamanho da sé de braga – segurou nas mãos da cutilde. olhou-a nos olhos e pediu-lhe para ter esperança porque. em boa verdade. ele não viu o corpo. apenas tinha recebido um telefonema do hospital a dar conta da tragédia. mas o melhor era realmente verificar se o falecido era mesmo o zé – lembrando-lhe um episódio recente que passara na TV. também anunciaram a morte de alguém que afinal não tinha acontecido – suplicou-lhe que tentasse descansar um pouco. em breve lhe daria notícias a confirmar ou não a morte do seu marido – a pobre mulher consumia-se em dor. mas percebeu que o melhor seria mesmo recolher-se um pouco e esperar pela confirmação do seu amigo – o momento era de solidão. precisava ficar só. libertar a sua raiva com deus. perguntar-lhe porquê o seu zé. qual a razão para lhe roubar o homem da sua vida


3.

o jeremias completamente tresloucado foi rapidamente ter com o seu amigo a um café nas redondezas – o zé já o esperava agitado e tomado por uma cor que prognosticava grandes sarilhos. tudo apontava para que fosse ele o próximo a desfalecer – o jeremias sem deixar que o zé dissesse uma única palavra disse-lhe: zé não tens razão nenhuma para desconfiares da cutilde. ela não só não tem ninguém como te ama perdidamente – os olhos do zé. momentaneamente.  encheram-se de alegria – mas agora te digo meu amigo. depois do que vi. creio que ela vai mesmo deixar de te amar – não sei como vamos descalçar esta bota. fizemos asneira da grossa – juro-te que não sei o que fazer para reverter esta palermice – o zé se por um lado se sentia feliz por saber que afinal o amor da sua mulher era realmente verdadeiro. por outro. compreendeu que a sua cabeça lhe tinha pregado uma partida – e agora o que fazer? o coração acelerou. o suor começou a escorrer-lhe pela face e o pânico tomou-lhe conta da emoção. estava como o burro no meio da ponte. não sabia para que lado se deveria virar – fiz asneira e vou perder a cutilde. desabafou o zé – desesperado. novamente. pediu ao amigo para o ajudar a resolver a doidice em que se tinha metido. não podia perder a mulher que amava por causa de uns ciúmes estúpidos – e ali ficaram aquelas duas almas descarnadas a tentar encontrar uma solução para resolver o imbróglio. a preocupação era que a cutilde não desconfiasse que afinal tudo não tinha passado de um teste estúpido e doentio para aferir a sua lealdade


4.

a cutilde. afogada em dor. não encontrava justificação para continuar a viver sem o seu zé e. num ato desesperado. ingere um frasco de calmantes – a vida sem o seu grande amor não faz sentido. a solução é também ela acompanhar o seu marido na viagem final – tudo para ela tinha sido bem claro no dia em que desposou o zé. viveria a seu lado para o bem e para o mal. na saúde e na doença e até que a morte os separasse – sim. que a morte os separasse quando a velhice já não tem remédio. não assim. ainda se estavam a conhecer. eram umas crianças. dentro de poucos dias comemorariam o quarto ano de uma união sagrada – que deus lhe perdoe. mas prefere estar ao lado o seu marido no céu


5.

entretanto o zé continuava a discutir com o seu amigo a melhor forma de resolver o problema e. por mais voltas que dessem. rapidamente perceberam que a única saída para aquela palermice era regressar a casa. pedir perdão à sua mulher e esperar que ela compreendesse que esta loucura só aconteceu porque a amava loucamente e não a suportaria perder por nada deste mundo – assim fez. encheu-se de coragem. e pôs-se rapidamente a caminho. quanto mais depressa resolvesse esta sua triste história mais depressa a sua vida voltaria à normalidade – entra em casa e depara-se com o corpo da cutilde estendido no chão da entrada do quarto – toma-a nos braços. e em desespero. abana-a. chama pelo seu nome umas quantas vezes. pousa o ouvido no seu coração e rapidamente percebe que a cutilde já não pertence a este mundo – senta-se no chão e com a sua amada nos braços aperta-a contra o seu peito e ali fica em silêncio a embalá-la como se estivesse a dormir – revoltado com ele mesmo. percebe tarde de mais que foi a sua insegurança que acabou por lhe roubar o seu grande amor. tinha estragado tudo e ele era o único culpado do desfecho


6.

ao mesmo tempo a cutilde chega ao céu e a primeira coisa que faz é perguntar ao s. pedro onde está o seu zé. e quando não é o seu espanto quando ele lhe diz que a morte do zé foi um embuste. infelizmente para ela o zé não faleceu. mas pode ficar tranquila. o seu amor por ele foi muito bem recompensado na terra. o zé ficou com a casa e o carro pagos ao banco. para não falar nos milhares que vai receber do seguro de vida


7.

moral da história: não acredite em tudo que lhe dizem – antes de tomar uma overdose de pastilhas. atirar-se de um penhasco ou dar um tiro na cabeça. verifique com os seus olhos se ninguém o aldrabou – e mais um conselho senhor leitor. tome muita atenção à vida. na maior parte das vezes é mesmo essa ordinária que nos engana. amámo-la e em troca faz-nos um manguito – mas no meu caso. que sou o contador da história. aviso-vos desde já que não tomo pastilhas. exceto as que me aliviam o relinchar dos bicos de papagaio – pobre cutilde


*título extraído do livro de nuno camarneiro – no meu peito não cabem pássaros

* albert einstein

 


16/12/2019

até o ferro apodrece



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não sou do CHEGA – não sou de partido nenhum pois cansei-me de grupos organizados de políticos não sérios e mentirosos [com pequeníssimas exceções] – mas sou do tempo em que a UDP. de mário tomé. chegou ao parlamento e. nesse tempo novo para a recentíssima democracia portuguesa. lembro-me de me regozijar e celebrar a sua chegada à casa da democracia – mesmo não partilhando os valores daquela esquerda ou da terrífica extrema esquerda. quem não se lembra dos comunistas que matavam os velhinhos. acredito que foi o primeiro grande teste à pluralidade no parlamento depois do 25 de novembro – eu gosto de vozes discordantes – gosto de quem perturba os consensos podres dos partidos da área do poder – gosto de gente que não tem medo de apontar o dedo. e talvez por isso. fique satisfeito com a eleição do grupo parlamentar numeroso do bloco de esquerda. do PAN e mais recentemente do CHEGA. LIVRE e INICIATIVA LIBERAL. e para que não fiquem dúvidas. por causa das más línguas. nunca votei no BE – nasci em ditadura. mas cresci em liberdade – amo a liberdade. sou e serei sempre um homem grato aos capitães de abril – foi essa liberdade dos cravos que me permitiu crescer como cidadão do mundo. um país livre não tem fronteiras. não tem muros. nem dogmas – um homem livre tem dentro de si um pensamento livre – por isso é que não posso admitir. ou tolerar. que um órgão de soberania. eleito em eleições totalmente livres. recupere tiques estalinistas ou fascistas – o sr. presidente da assembleia da república. dr. eduardo ferro rodrigues. não tem o direito de se dirigir a um deputado eleito democraticamente pelo povo português. e digo novamente. em eleições livres e democráticas. naquele tom esdrúxulo. pantomineiro e desrespeitoso – a liberdade individual do deputado andré ventura. mas também a liberdade coletiva de todos os cidadãos portugueses representados naquela assembleia por força do seu voto livre. foi violentamente atacada nos valores conquistados de abril – a casa da liberdade não pode aceitar que deputados batam palmas a quem se esquece e não respeita o artigo 11 da constituição portuguesa:

Artigo 11.o - Liberdade de expressão e de informação

1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras.

foi uma vergonha dr. eduardo ferro rodrigues. indignas as palmas dos senhores deputados – estou farto desta gente que vive da política. daqueles que se servem dela para melhorar substancialmente a sua forma de viver. e. principalmente. daqueles que fazem da política um tacho coletivo onde tudo é permitido aos da sua cor e nada é consentido aos que estão na oposição – nunca vi o sr. presidente da assembleia da república. dr. eduardo ferro rodrigues. indignar-se contra os abusos de poder do seu colega de partido eng.º josé sócrates. entre muitos outros que por falta de tempo e espaço me abstenho de enumerar – o voto é sagrado e a assembleia da república o local certo para que os seus deputados. de todos os partidos. honrarem a constituição portuguesa. lei suprema do país. aceitando-a defender. respeitar e fazê-la cumprir. mesmo quando essa violação parte da segunda figura do estado português. com assento no conselho de estado. e que tresloucadamente. no decorrer do debate parlamentar. se permitiu a um papel ridículo. só com paralelo quando se insurgiu contra o antigo presidente do sporting. dr. bruno de carvalho – o segundo cargo do estado requer elevação e recato – senhores deputados e deputadas do partido socialista. as vossas palmas foram uma vergonha. foram uma vergonha. confesso-vos que me senti envergonhado com a vossa atitude – os senhores deputados. têm o dever e obrigação de garantir e proteger a liberdade de expressão dentro e fora da assembleia da república. a PIDE e a censura extinguiram-se na madrugada do 25 de abril. a liberdade nunca poderá ser partidária – é completamente intolerável que o sr. presidente eduardo ferro rodrigues se dirija ao deputado andré ventura com aqueles termos inapropriados e desrespeitosos de “então diga lá o que tem a dizer” – a palavra “vergonha” ou “é vergonhoso” não só não é ofensiva. ou mesmo vergonhosa. como na maior parte das vezes fica aquém na forma e no conteúdo do que os sucessivos governos do PS e PSD merecem ouvir – a governação destes partidos tem sido. ao longo da nossa democracia. uma vergonha ou vergonhosa – o sr. presidente da assembleia da república recuperou os tiques autoritários de antigos dirigentes do partido socialista. quem não se lembra dos tiques soaristas ou mais recentemente dos tiques socráticos – o sr. deputado eduardo ferro rodrigues representa a velha guarda de um partido que sempre teve dificuldade em aceitar todos aqueles que corajosamente foram capazes de denunciar os compadrios / corrupção existentes dentro do PS – basta recuar ao governo de josé sócrates e lembrar todas as tentativas para manipular e silenciar a comunicação social – não me lembro de ver o dr. ferro rodrigues ou o PS indignados com as palavras com que o seu colega de partido atacava a dra. moura guedes ou o correio da manhã – mas nem precisámos de recuar tanto na história do partido que sentou o sr. deputado ferro rodrigues na cadeira da presidência da assembleia da república. bastava que este ilustríssimo político se insurgisse contra o seu último presidente parlamentar. sua excelência dr. carlos césar conseguiu empregar toda a sua família em instituições do estado. e pasmem-se. até esteve quase a colocar um seu familiar numa comissão de socialistas para dinamizar os cemitérios de lisboa. ele e mais uns quantos correligionários – é obra dr. césar. isto sim é uma vergonha que nunca ouvi o militante socialista ferro rodrigues insurgir-se. indignar-se com mais esta vergonhosa matilha de delapidadores do erário público – diz-se por aí. pelos corredores da assembleia da república também. que a figura de sua excelência dr. eduardo ferro rodrigues substitui aqueles famosos três sábios macaquinhos japoneses que tapa os olhos. a boca e os ouvidos sempre que se trata de recriminar o seu partido empregador – mas desta gente dos partidos já pouco ou nada espero. da direita à esquerda – o que me incomoda é o quase silêncio dos srs. jornalistas. dos opinadores da política. dos comentaristas. dos analistas e dos colunistas. sim. esta ilustríssima gente também vive da política. é conhecida graças à política. aparece nas televisões pela mão dela e é estimada pelos políticos sempre que precisam dela – assim sendo. deveriam ser estes senhores os primeiros a reagir contra a tentativa de manipulação da liberdade de expressão. deveriam ser os primeiros a cerrar fileiras contra qualquer tentativa de desvirtuar ou condicionar um deputado na sua oratória política. mesmo que esse deputado seja da extrema direita ou extrema esquerda. mas eleito em democracia – afinal também vivem da palavra livre ou será que a vossa liberdade é igual à do sr. presidente da assembleia da república… tem partido



13/12/2019

eu. os pés e a cabeça



pintura - rené magritte



ninguém sabe exatamente o que sou – às vezes sou uma coisa sem pés nem cabeça. outras vezes. carrego uma cabeça que não me leva a lado nenhum. e nos dias em que a cabeça sabe para onde ir. faltam-me os pés. por isso fico onde estou – quando me aborreço de ser uma coisa sem pés. nem cabeça. sou o que encontro à mão: sorrio. canto. danço. leio os astros. deito cartas do tarot. faço serenatas para a lua e. nas noites de lua cheia. uivo e suplico aos morcegos para me purgarem desse sofrimento – gostava de ser um transmorfo e. quem sabe. transformar-me numa dessas criaturas que não têm alma e se alimentam dos espíritos desassossegados. mas não sou coisa nenhuma para além de não saber o que sou – talvez por isso. por não me transformar em coisa nenhuma. os “outros” entendem que sabem tudo do que sou – que palermice – esquecessem-se eles do que são e. sem se aperceberem. transformam-se no que não é bom – desses “outros” nada sei.  às vezes acredito que são como são porque. infelizmente. nada podem fazer para não serem assim como são. mas confesso. não são como eu gostaria que fossem – reconheço que não sei nada de ninguém. houve tempos em que também acreditei que sabia quase tudo do mundo e dos “outros”. agora. com o tempo a esgotar-se. percebo que quanto mais envelheço menos sei do mundo. dos “outros” e também de mim – não sei nada de nada e mesmo que pudesse saber não queria. perceber o pouco que sei de mim já é coisa séria e complicada – sou um ignorante ingénuo. um analfabeto que sabe ler e escrever e que. com o tempo a gastar os minutos. atrás de minutos. reconhece. agora. que apenas o que faço com o meu destino me preocupa – todos temos uma missão a cumprir nesta passagem efémera pela vida. tristemente e em agonia. eu ainda procuro a minha – quando os “outros” crêem que sou o que não sou. olho para o céu. abano a cabeça. rezo ao anjo da guarda. invoco os meus santos protetores. são três: o velho s. judas tadeu que controla tudo o que são causas difíceis; stª bárbara porque sempre tive medo das trovoadas; e stº estevão que em miúdo fez o milagre de me tirar uma dor de dentes e. porque quero muito acreditar nesta fé invisível. a troco de umas quantas orações. suplico-lhes que me aliviem a carga dessa gente que me pesa – mas quando essa malta me aborrece mesmo muito. e não quero maçar os meus benfeitores. saco da flauta mágica e disfarço-me de hamelin. e tudo o que rasteja levo para desaparecer e o que é exasperação… deixa de existir – estou demasiado ocupado com esta nova certeza de que estou mesmo a envelhecer.  não posso. não quero. e nem necessito de me aborrecer com o que não me pertence – de seguida invoco o destino e renovo-lhe a minha lealdade ao caminho traçado: sou o que sou e assim será até ao seu final – por mais voltas que deem à balança ela tombará sempre para o meu lado. tranquilamente e em serenidade – no entanto. nem sempre estou no mesmo lado do equilíbrio. às vezes estou do lado da razão. outras da emoção. mas na maior parte das vezes. estou no outro lado de mim. no escuro. no silêncio. onde o medo acontece e os pecados se expiam – só eu sei onde centro a coerência. sendo eu um homem com valores renascentistas. recordo leonardo da vinci num dos seus muitos pensamentos: “é preciso deixar a sua marca na história. fosse em que campo da existência fosse” – é neste caminho. que é só meu. que tudo faço para me tornar mais indulgente. tolerante e condescendente com o que os “outros” pensam que sabem de mim – continuo a ser como sou. continuo à procura do melhor em mim e para mim. continuo a tentar aquilo que ainda não fiz. encontrar a minha marca para a minha história. para o meu bem-estar. que bem pode não ser o vosso – termino com duas anotações de leonardo da vinci:



“Posso sorrir, e matar enquanto sorrio,
E proclamar-me feliz com o que me aflige o coração,
Molhar as minhas faces com lágrimas fingidas
E acomodar a minha cara a todas as ocasiões...
Posso acrescentar cores ao camaleão,
Mudar de forma mais depressa que Proteu
E mandar para a escola o sanguinário Maquiavel!”

                              //

“Vede aqueles que podem ser chamados
Simples condutores de comida,
Produtores de estrume, enchedores de latrinas,
Pois deles nada mais se vê no mundo
Nem qualquer virtude se observa no seu trabalho,
Nada deles restando além de latrinas cheias”



29/11/2019

henrique rojas montes



pintura - google


“parece-me que necessitamos de uma visão mais abrangente, sobretudo no que se refere à gestão do amor. O grande erro do século XX foi acharmos que o amor era só um sentimento, que vai e vem. E que era um monólogo. Na realidade, o amor maduro é um ato de vontade e de inteligência.”


27/11/2019

chegará o dia






chegará o dia em que direi:

que se foda a respiração

e todo este corpo

que mais não é

do que carne alimentada por dois pulmões

que respira mortalidade

ou vida estúpida

ou fuga à morte

ou outra coisa qualquer

que nos mantém ligados às ruas

aos sinais de trânsito

aos mercados com as suas vendedoras

às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade

como se um mar se guardasse num charco

e ao pequeno almoço que é quando começa o dia

e o corpo se curvasse ao café expresso com fé

que a sua cafeína seja a força motriz

para levantar voo até saturno

mas se não houver espaço

estrelas ou cometas

que as borras do café se transformem em raiva

para levantar o mundo

que tenho dentro de mim

  


chegará o dia em que digo: que se foda a respiração e todo este corpo que mais não é do que carne alimentada por dois pulmões que respira mortalidade. ou a vida estúpida. ou fuga à morte ou outra coisa qualquer que nos mantém ligados às ruas. aos sinais de trânsito. aos mercados com as suas vendedoras. às gaivotas tontas que agora aparecem na minha cidade. como se um mar se guardasse num charco. ao pequeno almoço que é quando começa o dia. e o corpo se curvasse ao café expresso com fé que a sua cafeína seja a força motriz para levantar voo até saturno. mas se não houver espaço. estrelas ou cometas. que as borras do café se transformarem em raiva para levantar o mundo que tenho dentro de mim


20/11/2019

eu. os peixes e o cloro




 

em dezembro de 2010 resolvi trazer para casa um aquário e cinco peixes miscigenados na raça e na cor – instalei a caixa de vidro num local aconchegado e protegido das correntes de ar. forrei o fundo com joguinhas brancas. encalhei uma nau naufragada do tempo do vasco da gama. plantei umas algas verdes fofinhas para que os guelras pudessem jogar ao esconde esconde. encrostei uma ânfora que borbulha bolhinhas de oxigénio e. mais uns quantos “bisegres” para que o fundo da caixa reproduzisse. dentro das inúmeras limitações. o fundo do oceano – depois de tudo devidamente preparado e ornamentado inundei a caixa de vidro com água da companhia – delicadamente. abri a saca de plástico transparente. onde transportei os guelras da loja até casa e. um a um. com delicadeza. operei o transbordo para o meu oceano pacífico privado – e ali fiquei a apreciar os meus novos animais de estimação. quer dizer. os meus novos guelras de estimação e. rapidamente percebi. de que os peixes e as crianças têm uma característica em comum. só precisam de liberdade para serem felizes – ali estava eu parado. também imerso em prazer. a degustar o meu novo e excêntrico “affair” hídrico. suplementado com uma convicção firme de que tinha acertado na escolha dos novos inquilinos para o meu exótico aquário – os guelras estavam felizes e confiantes no seu novo habitat. estavam enérgicos. corriam como loucos. davam piruetas com curvas e contracurvas. faziam bolhinhas pela boca e as barbatanas não paravam de bater. mais parecia o voo das andorinhas a anunciar a primavera. tal era a velocidade e alegria com que se moviam de um lado para o outro – estávamos todos felizes. eu. os peixes e o max. que ao meu lado. intrigado com a singularidade dos feitios e cores dos novos amigos. não parava de abanar a cauda – estava tudo a correr dentro da normalidade perspetivada pela vendedora. especialista em animais de todas as espécies. quando me apercebi que algo estranho estava a acontecer. os guelras estavam tremulosos. os olhos esbugalhados não paravam de piscar – esta altercação não estava prevista no manual de boas práticas de manuseamento e bem-estar de peixes ornamentais – entrei em pânico. não sabia nada da anatomia de peixes. em toda a minha vida só com cães tinha partilhado afetos. não fazia a menor ideia de como se tratar um peixe. nem avaliar a gravidade dos sintomas – será que estavam todos a ter um AVC por intoxicação da água? ou seriam apenas pequenos espasmos nervosos de adaptação ao seu novo lar? o que me desassossega. é que para o bem e para o mal. sou eu o único responsável pelo seu bem-estar – estamos numa época em que não se pode facilitar com os cuidados aos animais. ainda me culpam de maus tratos e quem sabe. acabo em tribunal acusado de negligência – e pior. estou sujeito a que. a qualquer momento. me toque a campainha e me apareça à porta a CMTV acompanhada pelo PAN [partida das pessoas. dos animais e da natureza]– comecei à procura do que poderia estar a causar aquele pisca pisca e pensei: será que os peixes estão nauseados com o cloro da água da companhia? é bem possível. a água ultimamente não anda grande coisa – se fossem humanos. percebíamos com facilidade se o problema recaía sobre a má qualidade da água. reviravam os olhos. esfregavam-nos e logo concluíamos que a maleita passaria com umas gotas oftalmológicas – mas a verdade é que os guelras não têm mãos e as barbatanas são curtas. creio que nem esticadas chegam aos olhos. que chatice. nem uma comichãozinha podem ter – deus lá teve as suas razões para que na sua infinita sabedoria não lhes desse mãos – mas a verdade. é que se lhes tivesse implantado umas mãozinhas. tinha-me aligeirado a resolução do problema. misturava na água umas gotinhas para a conjuntivite e logo via se o piscar abrandava – vá-se lá entender deus e os peixes – mas o melhor é meter a viola ao saco e calar-me. não vá o todo o poderoso aborrecer-se com este meu palavreado e ainda lhes desarranja os intestinos – já deveria saber há muito que os desígnios de deus são insondáveis e nunca questionáveis – começo a ficar preocupado. sinto que o pisca pisca está mais intenso e também os sinto mais paraditos – pudessem ao menos chorar para eu perceber a gravidade do piscar dos olhos – mas como se veria uma lágrima no meio de um oceano? os peixes são uma dor de cabeça – pensando bem. talvez nesta coisa das lágrimas a minha preocupação seja uma tolice. os peixes não choram não por não terem lágrimas. mas porque não têm sentimentos – a verdade é que também conheço muitos humanos assim. sem lágrimas e sem sentimentos e não vivem no meio do oceano – quem sabe se deus quando criou o mundo animal tenha concebido os peixes propositadamente assim. diferentes de todos os outros animais – talvez quisesse um animal que não fosse bem animal. distinto de tudo o que tinha criado até ao momento. distante dos homens. escamado. com guelras para sobreviver escondido na água. frio. sem sorrisos. com mau feitio e indiferente a tudo que existe fora do mundo aquático – e por mais tentativas do homem para influenciar o seu modo de viver. domesticar. ou até mantê-los em cativeiro. a resposta seria sempre um desapego silencioso por tudo o que o rodeia. sem emoções. sem latidos. sem rosnar. sem miar. sem asas e sem sonhos – tudo o que este animal marítimo traz ao mundo dos humanos é um alheamento sincronizado do movimento das barbatanas com o abrir e fechar das guelras. abana o rabo e pisca os olhos para assinalar a marcha pela profundeza dos oceanos – deus substituiu-lhes então as mãos por guelras para que não pudessem abraçar. de seguida. tirou-lhe a voz para que não pudessem dizer: gosto de ti e ainda insatisfeito. trocou os pulmões por guelras para que não pudessem arfar quando se apaixonassem – por fim. meteu-os nos oceanos e mandou-os multiplicarem-se. dizendo-lhes: vocês serão o maior desafio para a humanidade – os homens nunca compreenderão a vossa indiferença. nem tampouco aceitarão a forma como vos amais – e assim se fez a vida dos peixes desde a criação do mundo até à compra do meu aquário – a vida dos animais com guelras é realmente muito complicada e sem sabor – foi quando pensei como a criação do homem foi especial. como é bom dizer a alguém gosto de ti. abraçar e sentir o calor da retribuição. o carinho de um abraço. um sorriso. uma palavra ou uma lágrima – deus fez um grande trabalho – enquanto me inebriava com as correrias dos guelras. sentado a meu lado o meu cão seguia atentamente as acrobacias dos seus novos camaradas com espanto. percebi no seu olhar que estava feliz. não sei se por achar que teria ganho mais cinco companheiros. ou apenas porque estava solidário com a minha alegria – a vida só tem sentido quando não desistimos dos afetos. mesmo quando esses afetos são difíceis de alcançar. como com os peixes – encostei a minha cara ao aquário e com um sorriso de quem gosta de fazer novos amigos apresentei-me: sou o sampaio. muito gosto. sou o vosso encarregado de bem-estar. espero que se sintam confortáveis na vossa casa. que também é a minha – fiquei à espera de uma resposta emocional. um olá. uma cambalhota com um mortal à retaguarda. um borrifo de água. mas nada – foi quando fui levemente surpreendido. depois da apresentação fiquei com a ideia de que deixaram de piscar os olhos e. estava para jurar. que até sorriam – fiquei em paz e resolvi não mais questionar ou mudar o que deus fez – olhei novamente… e decidi batizá-los. talvez assim passassem a ter alma – para batizá-los escrevi o texto: aquário

 

os meus olhos encheram-se de peixes – eugénio. amarelo. explícito na sensibilidade – camões. nos olhos a sua marca – excêntrico. chama-se dali. são cores – torga. veste-se de negro. talvez saiba da morte – pessoa. sempre ele. um vira-casacas. à noite caeiro – eu… sou aquário de ascendente [hoje]. mas só depois de carneiro


11/11/2019

serei o quê?





um dia serei o quê?

um abraço

uma voz

um amigo

um inimigo

um viajante

um bobo

um escritor

um poema

um caminho

um jeito de andar

 

um dia serei o quê nesses vossos olhos?

um sopro

um lenço de mão

uma palavra

um beijo

uma forma de rir

uma lágrima

uma fotografia

um momento

um sol

um dia que se cruzou numa rua

 

um dia serei o quê nessa vossa boca?

uma oração

um pecador

um sedutor

uma flor

um gesto

uma fé

um sorriso

um teimoso

um sonhador

um carro de velocidade

 

um dia serei o quê nessa vossa recordação?

um arrependimento

um azar

um desastre

um amor

uma paixão

um pai encantado

um filho extremado

um marido apaixonado

um avô história

uma saudade que nunca se cansa

 

um dia serei o quê?

serei o quê nessa vossa vida?

serei para vós o mesmo quando o inferno me pungir a alma?

serei para vós o mesmo quando o céu me postular. não o que vós pensais. mas o que as mãos carregam?

serei adeus ou serei goodbye

serei lágrima ou serei silêncio

serei saudade ou serei vai com deus

serei cerimónia fúnebre ou serei cerimónia de conciliação

tudo o que sou será pertença de um único dia: o dia do juízo final

e então… nesse dia estúpido

serei o quê nesses vossos olhos?

serei o quê nessa vossa boca?

serei o quê nessa vossa memória?

alguma coisa sei que serei

porque ser nada

seria castigo que nem a morte desejaria



07/11/2019

teatro


júlio saraiva


[dedicado a júlio saraiva poeta e jornalista já falecido]

 

sou teatro…

parei agora para pensar um pouco

sossegar-me destas aflições

vocês compreendem…

não é fácil representar a vida toda

 

nesta pausa

posso ser quem sou

inclino-me

seguro a cabeça com as mãos

fecho os olhos

e vestido a preceito desde a última cena

viajo até à nascente

lá… onde ainda vivem as fadas.

 

neste encontro,

não preciso do ponto

nem do contraponto

e nas luzes da ribalta

surgem sonhos infrangíveis

neste pensar, encontro-me

em palcos dourados,

tribunas,

plateias,

camarotes,

frisas e palmas

 

é o teatro gigante

e eu tão pequeno

tudo esgotado,

tudo de pé

chamam-me os aplausos

em coro,

acenam cachoeiras de flores

que eclodem aos meus pés.

é a primavera

pensava eu.

                                                                                                    

mas os olhos ainda raíam

deste descer à verdade.

rompem as pancadas de molière

o contrarregra vai subir o pano

também eu subo à vida

 

acabou o teatro.

 

 

no dia em que postei o teatro no luso poemas. agosto de 2009. recebi uma mensagem privada do poeta e jornalista júlio saraiva que. amavelmente. fez questão de me dizer quanto tinha gostado do poema e. na sua simplicidade. pediu-me autorização para o levar para o seu blogue – nem queria acreditar que o júlio saraiva se tinha dado ao trabalho de me escrever. que me elogiasse e quisesse divulgar o poema na sua página – é a primeira vez que torno público este episódio. confesso que fiquei um pouco envergonhado e pensei: e agora o que vai ser de mim. como vou manter o nível. que dirá o júlio se ler o meu próximo poema – admito que nunca me senti nem confortável. nem feliz com a poesia. só a prosa me enredava o tempo com verdadeiro prazer – entrei em pânico e achei que o melhor para a minha poesia seria silenciar-me. quanto menos pessoas soubessem deste episódio. melhor – não sei se alguma vez o postou. confesso que nunca fui bom a seguir a vida dos outros. mas também não é importante. valorizo mais o impulso. a verdade do instante. e esta é sempre mais apreciada quando emerge na espontaneidade – uns tempos depois faleceu e nunca tive oportunidade de lhe agradecer aquele gesto. principalmente. nunca tive oportunidade de lhe dizer como aquela mensagem. naquele instante. me devolveu a vontade de escrever – o luso era um espaço pequeno para tanto ego gigante. sobrava a vaidade. a arrogância. a falta de humildade e. principalmente. o bom senso e a tolerância – reconheço que havia colegas intragáveis. de mau carácter. monstrinhos egocêntricos que projetavam uma grandeza que. em boa verdade. não tinham – ser grande entre os pequenos não os tornava especiais – não era fácil lidar com esse lado sombrio dos poetas –   mas bem lá no fundo confesso que aprendi muito com os meus camaradas do luso e a todos estou agradecido – depois. tal como os mágicos fazem magia. o júlio também criou um momento excecional para mim – durante um tempo esqueci tudo o que era mau – a modéstia chega sempre mais depressa a quem não precisa de se pôr em bicos de pés para ganhar altura. já são grandes. e ponto – que nunca lhe falte nada. esteja ele onde estiver. mas se faltar. que não seja papel. lápis e… amigos. para que. em companhia. continue a beber o seu “choupinho”



31/10/2019

manuel de barros


manoel de barros



Retrato do artista quando coisa


A maior riqueza
do homem
é sua incompletude.
Nesse ponto
sou abastado.
Palavras que me aceitam
como sou
— eu não aceito.
Não aguento ser apenas
um sujeito que abre
portas, que puxa
válvulas, que olha o
relógio, que compra pão
às 6 da tarde, que vai
lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.
Perdoai. Mas eu
preciso ser Outros.
Eu penso
renovar o homem
usando borboletas.



22/10/2019

eu. a dama e a celulite



foto google


em contramão. uma dama rebuliça e enérgica dirige-se para mim – acerto-lhe com os olhos. e interrogo-me: será que vou ter problemas. a esta velocidade vai-se-me enfaixar no pescoço – cabelo loiro oxigenado. levantado à frente. face redonda e rosada. não sei se é cor natural ou se está apenas afogueada pela velocidade que imprime ao andamento. uma pochete louis vitton contrafacionada num bairro chinês de pequim. acompanha o movimento das pernas numa desordem perigosa. ainda vai dar com o adereço na cabeça de algum transeunte – botas douradas. furadas com estilização. sobem-lhe pela perna com ganas de chegar o mais longe possível – dois dedos acima de uma rótula rombuda e três abaixo da cintura. uma minissaia branca vestida com desprezo. a fazer sobressair uma cicatriz mal-arrumada no umbigo. mascarada de importância com piercings-diamante falso de quinze quilates – confesso que fiquei com a ideia de que a saia era apenas um adorno para desviar as atenções do umbigo – olhos redondos. claros. a contrastar com uma pintura excêntrica. um negro que não era luto. balançava o corpo numa agitação perigosa para os dois enormes seios amarrotados pela licra preta de uma camisola de alças – confesso que por momentos entrei em pânico. a aproximação apresentava-se desatenta. descuidada. desnorteada. e decididamente em excesso de velocidade – tinha que evitar a todo o custo o embate – já não tenho condições para choques com viaturas que transportam matérias perigosas – cerrei os dentes e preparei-me para a fusão dos corpos – quando pensei que o embate era inevitável. a dama. num movimento de toureio. atira com as ancas para um lado. e sai com o tronco pelo outro – foi tudo tão rápido que comecei à procura da bandarilha espetada no corpo – felizmente tudo não passou de excitação – olhei para trás e ainda não recuperado percebi que a minha alucinação se deveu a uma mini saia comprada nas galerias lafayette de paris. encandeou-me. cegou-me. roubou-me o norte e mesmo numa excitante desordem mental. percebi de imediato que me tinha perdido nos adereços. a testosterona invadiu-me os neurónios. começou a descer-me pelas vértebras. comecei a suar em bica e quando dei conta estava com a dama em pecado. em pensamento. mesmo à minha frente – era muita mulher para mim. era muita curva e contracurva. era um pecado quase mortal. deus. e a minha companheira. nunca me perdoariam um pecado com esta dimensão – desorientado. fiquei sem saber se seria melhor atirar-me para uma valeta ou aceitar o embate como inevitável e preparar-me para as consequências – era impossível ficar indiferente às propriedades naturais. penso eu. desta excêntrica dama – deitei os olhos ao chão. arrependi-me. voltei a olhar. deitei novamente os olhos ao chão. voltei a arrepender-me. voltei com os olhos para o chão. e foi então que. surpreendentemente. a dama me dirigiu a palavra: estás a olhar para onde – surpreendido. envergonhado e embaraçado respondi: estava a olhar para a celulite. isso não está nada bem. e não condiz com a minissaia – e assim. numa manhã de quarta-feira nos cruzámo-nos numa eternidade de tempo: eu tão cedo não vou esquecer esta dama e a dama vai comprar todos 



chico buarque



chico buarque


também acho uma delícia quando você esquece os olhos em cima dos meus