29/03/2021
26/03/2021
eu. o meu pai e o abajur
I.
a entrada dos filhos na idade do armário. expressão que marca o
início de uma nova etapa de crescimento: a puberdade ou adolescência. quase
sempre traz consigo períodos de grande crispação. tanto ao nível escolar como
familiar – a instabilidade. a impulsividade. as alterações de humor. as novas
amizades. aliadas a novas e exigentes responsabilidades escolares. transformam
o dia a dia dos pais num verdadeiro inferno – para os jovens irreverentes.
estas dores de crescimento. indecifráveis pela imaturidade. aliadas a uma
vontade desenfreada de crescer rapidamente. só se revelam desastrosas alguns
anos mais tarde – já adultos. com o saber amadurecido. a consciência entra em
convulsões e as imbecilidades passadas transformam-se em remorsos. nos casos
mais graves. em vergonha – começam então as interrogações: como foi possível
ser tão imbecil – às vezes não há resposta. é-se imbecil. ponto final –
valha-nos a compreensão dos adultos. que tendo passado pelas mesmas mutações.
encontram na tenra idade a justificação para todas as idiotices: ainda é uma
criança. só tem corpo – pois bem. eu era um desses adolescentes imbecis. com
uma cubicagem elevadíssima de imbecilidade – assim cresci atazanando a cabeça
aos meus progenitores. não havia dia nenhum que não aprontasse alguma –
acredito mesmo que os meus pais. em momentos de alguma crispação e desespero.
se tenham arrependido daquela noite de amor – acabei por ter sorte. pois
algumas dessas tontarias. que ainda não relatei. poderiam ter tido
consequências bem mais complicadas – mas lá cresci. com empurrão daqui e dali.
lá fui ganhando corpo e tino. felizmente. nada de muito grave me envergonha –
não me envolvi com drogas. mas tive alguns amigos que se desgraçaram com esse
vício maldito e acabaram perdidos no mundo das substâncias pesadas – para
compensar. tornei-me fumador e. para mal dos meus pulmões. andei longos anos a
contribuir para o sustento da tabaqueira – claro que tive milhentas peripécias
que podiam ter corrido mal. mas por todas passei entre os pingos da chuva. umas
vezes por sorte. outras. porque mesmo malandro que fosse. sempre coloquei a
família em primeiro lugar – este valor da família acompanhou-me sempre. a
família é o meu sustento. e a grande aventura da minha vida – hoje. sinto e sei
que os meus filhos beberam essa poção mágica dos meus pais. também para eles a
família é o seu alimento. e eu e a mãe. a sua grande aventura – confesso que
fomos muito rígidos com a sua educação. às vezes até um bocadinho excessivos.
felizmente. tudo correu bem e valeu a pena – o provérbio português filho és.
pai serás. não vingou comigo. os meus filhos não seguiram o mesmo caminho – às
vezes interrogo-me: que freio imerge na alma de um catraio para que. nos
desafios da incerteza. acione o travão de emergência e evite o passo fatal para
o submundo – sem ter certezas. porque não as há. a única resposta que encontro
é a família: a bondade e a benevolência do meu pai. e a firmeza e competência
da minha mãe – os dois eram a antítese um do outro. mas ao mesmo tempo a
fórmula perfeita para um casal que. partilhava tudo. família e trabalho. e
mesmo assim cumpriram o prometido perante deus: chegaram às bodas de ouro e só
a morte os separou – o meu pai um excelente vendedor. sorridente. com uma
facilidade enorme de comunicação e. principalmente. um homem de consensos. bom.
sempre preocupado com os seus funcionários. a reivindicar aumentos para os seus
vencimentos. entendia. e bem. que o que ganhavam não era digno. nem o
suficiente para honrar a família – a minha mãe era o oposto. mais contida. com
mão de ferro. sempre a gerir os excessos de generosidade do meu pai. sempre
preocupada com o dia de amanhã – dirigia a produção da empresa não como patroa.
mas como operária. competentíssima e implacável com os seus subordinados – foi
esta simbiose que me fez optar sempre por eles. pela sua capacidade de entrega
ao mundo das responsabilidades – agora posso confessar. já que não tenho os
meus pais comigo. em criança. tinha mais orgulho no trabalho de operária fabril
da minha mãe. do que propriamente nas viagens comerciais do meu pai – cresci
dentro de uma fábrica. com cheiro a colas e pele. e nunca me lembro de ver a
minha mãe sem que estivesse sacrificada ao trabalho. de pé ou amarrada a uma
máquina de costura – era uma mulher dos diabos. uma operária dos diabos. fazia
de tudo naquela empresa. quando uma colaboradora faltava. era sempre ela quem
assumia o posto – fruto da canseira dos meus pais acabei a crescer sozinho e
independente – pelos meus dez anos era completamente autónomo. desde que tenho
memória que sempre decidi o que queria ou não fazer. sempre vivi em liberdade
absoluta. todo o meu percurso de vida foi. exclusivamente. da minha
responsabilidade – assim fui crescendo entre estados de espírito de alegria
extasiante e momentos de solidão extrema – aprendi depressa a conquistar a
noite. habituei-me a não dormir e a sentir o silêncio como o meu melhor amigo –
passei a ler tudo o que me era possível – a banda desenhada o meu primeiro
entretimento. depois os cinco. livros para crianças de mistério e aventura de
enid blyton – entusiasmado com a leitura entrei diretamente nos clássicos da
literatura portuguesa onde descobri a minha grande paixão: júlio dínis – lia
compulsivamente. não conseguia parar de devorar páginas e de sonhar. ganhei as
minhas primeiras noites de amor platónico. onde a honra. a verdade. e o amor
triunfavam sempre – uma família inglesa. morgadinha dos canaviais. e os
fidalgos da casa mourisca. acompanharam-me até aos dias de hoje. não os voltei
a ler. mas estou certo que se o fizesse. reviveria a mesma paixão.
incrustaram-se na alma. morrerei com aquele mundo idílico. que nunca encontrei
em mais lado nenhum – foi o júlio o meu grande educador. bebi dele todo o
romantismo da vida. do triunfo do bem sobre o mal. da honra. do carácter. foi
com os seus livros que aprendi a chorar – quando o dia rompia era outro miúdo.
com as mágoas curadas pela solidão da leitura. pelo silêncio. e pela noite –
estava pronto a correr todos os riscos do mundo. era um rapaz-homem novo. com
autoestima. destemido para a vida e para os sonhos – um miúdo com total
liberdade. independente. e uma vontade enorme de fazer amigos e coisas o mais
rapidamente possível – aprendi então a sorrir mesmo que a alma me ardesse. e
muitas vezes ardia. quase sempre – entre pouco estudo. bola. tabaco. e amigos.
estes. o maior vício. a vida corria sem ter fim – era “o maior da cantareira” –
viver com poucas regras era a minha adrenalina – o 25 de abril ainda me trouxe
mais o que já tinha em abundância: liberdade – hoje sei que fui das muitas
crianças vítimas da revolução. não o digo para me desculpar de nada. mas por
ser verdade. foi um período completamente louco e intensíssimo de emoções e
experiências revolucionárias. até mesmo os adultos se perderam com aqueles
novos e excêntricos tempos de mudança radical da nossa sociedade – viver a
revolução de abril jovem foi uma experimentação única e fantástica. não posso
dizer que não a trocaria por nada deste mundo. mas quase. hoje percebo que com
mais um pedacinho de juízo poderia ter tido as duas coisas
II.
no meio de tanta tontaria e liberdade. uma única vez fui levado de
gancho para a esquadra da polícia – confesso que foi uma experiência
transformadora. e também uma grande lição para o resto da vida – estava a jogar
flippers numa casa de jogo. que por sinal pertencia ao sporting clube de braga.
quando uma rusga policial entrou de rompante pela casa adentro – de bastões e
com mau aspeto. num piscar de olhos. já se tinham espalhado pelo salão de
jogos. nem tempo tive para dizer ai – quando me apercebi tinha um PSP ao meu pé
a mandar-me parar a jogatina – pediram-me o bilhete de identidade. e depois de
meter as mãos em todos os bolsos uma dúzia de vezes. fui obrigado a dizer que
não o tinha comigo – como não tinha identificação o remédio foi entrar na
“ramona” e seguir para a esquadra para provar quem era aquele miúdo. e o que
fazia – foi uma viagem que teve tanto de terrífica como de paródia – para os
meus comparsas era uma alegria viajar às custas da PSP. mais parecia uma
excursão de finalistas do liceu – aquelas máquinas deixavam-me completamente
perdido de amores. só sonhava em carregar nos botõezinhos. fazer a bola girar.
sentir o galope da pontuação. e ver os bónus a cair como orgasmos – foi o
momento da vida em que acreditava ser possível fazer carreira a jogar flippers.
na máquina dos dragões eu era o ronaldo lá do sítio. carregava o quadro de
bónus até não aceitar mais. e cheguei a ganhar dinheiro de quem quisesse jogar
ao meu lado – o problema foi que o responsável rapidamente se apercebeu de que
estava a fazer mealheiro. e num ápice substituiu os dragões por uma outra mais
tecnológica – lá se acabou o rendimento. passei também a meter a moedinha – mas
como estava a dizer. fui levado para a ramona. estacionada em frente à porta do
vício. em pleno centro da cidade – à porta uma multidão de curiosos
excitadíssimos começou a formar-se. o acontecimento era raro para a época. o 25
de abril tinha tirado as polícias da rua e a gandulagem sentia que podia fazer
o que queria – a multidão adensou-se e. depressa. percebi que a minha paz
familiar podia terminar. o meu pai era muito conhecido na cidade. e como as
notícias más correm sempre mais depressa do que as boas. comecei a temer que
viesse a saber do que me estava a acontecer. não lhe passava pela cabeça que o
filho frequentava casas de jogo
- ó senhor lopes. acabei de ver o seu filho engavetado pela PSP
numa casa de jogo
felizmente que naquele tempo não havia CMTV. mas mesmo assim não
me livrei de ouvir uns quantos impropérios pouco abonatórios: vai trabalhar
malandro. drogado. vadio. ladrões. ponham-nos a trabalhar. metam-nos dentro das
grades… e mais umas quantas dissertações sobre a honra da minha mãe. coitada.
tão inocente como o meu pai – entrei para a carrinha. enterrei-me no último
banco com a cabeça entre as pernas. a vergonha escorria-me pela cara abaixo. só
queria sair dali o mais depressa possível – num instante a carrinha estava à
pinha de artistas do jogo. fomos obrigados a dividir os bancos para cabermos
todos numa só fornada – quando ganhei coragem para erguer a cabeça apercebi-me
que tinha a meu lado uma equipa de astros. meliantes com curso superior e com artigos
científicos publicados no cadastro da PSP. mas lá chegamos à esquadra –
meteram-nos todos numa sala enormíssima. com umas quantas secretárias equipadas
com máquinas de escrever. e agentes altamente treinados para a dactilografia:
um dedo em cada tecla. e cinco minutos para descobrir cada letra – enquanto
esperava pela vez para ser identificado e provar que era mesmo bom rapaz.
portador de um DNA de bom comportamento e cadastro limpo. os mais mafiosos
prostraram-se em frente aos polícias numa algazarra desaforida – queriam ser os
primeiros a prestar declarações. todos argumentavam estar com pressa. todos
estavam de passagem. diziam ter entrado só para procurar um amigo. e que
precisavam de regressar rapidamente aos seus negócios – pela aragem acredito que
a maior parte seriam amigos do alheio. gente com habilidade para fanar – o
engraçado é que só dei conta dos artistas na esquadra. na sala de jogo pareciam
todos betinhos – a cabeça só vê o que realmente quer ver – eu. meio atarantado.
com medo e acanhado. acabei por me enfiar a um canto. encutinhado. caladinho
que nem um fuso. não queria chamar a atenção dos bófias. alimentava uma réstia
de esperança de que se esquecessem de mim. ou aparecesse um amigo do meu pai e
me safasse daquela humilhação – o tempo voou. mantive-me entretido com a
inquisição dos senhores agentes aos meus parceiros de infortúnio. deu para
confirmar que estava muito bem acompanhado. era tudo malta com rasgo para a
vida noturna – a maior parte deles com largo cadastro. alguns já com tempo de
prisão. processos em tribunal. e outras minudências no registo – lembro-me de
um comparsa. morava num bairro mais abaixo da minha casa. que tinha sido preso
por roubar gasolina com um isqueiro. teve azar. aquela gasolina era de
incendiar. lá se foi a viatura – era malta com mãozinhas já agraciadas com
várias estrelas michelin. desde pequenos roubos a tráfico de droga. brigas
violentas. havia de tudo naquele convívio de amigos – lá chegou a minha vez. o
PSP apesar de carrancudo era educado – comecei a responder ao inquérito:
filiação. idade. morada. o que estava a fazer dentro do estabelecimento. e mais
uma quantas questões para perceber se era. ou não. aprendiz de meliante –
demorou mais do que com os meus camaradas porque tiveram que abrir ficha. era a
minha primeira vez. acredito que ainda conste nos arquivos. mas em meu abono um
passado irrepreensível – depois de explicar bem quem era o meu pai. tudo se
tornou mais fácil. naquele tempo os agentes estavam habituados a passar pela
fábrica dos meus pais. gostavam de artigos de pele. e também de umas borlas.
coisa que o meu pai fazia sempre de bom grado – em boa verdade eu era um bom
rapaz. um bocado acelerado. mas com um bom íntimo – tinha presença assídua na
igreja. frequentava a congregação católica. ajudava à missa do carmo. era eu
que fazia o peditório dominical na eucaristia das onze e trinta. e o mais
importante. era filho de uma boa família cristã – esta minha passagem pela
igreja dará outra bela história. mas tem que ser bem contada para não me
envergonhar. corro o risco de arruinar a honra familiar – acabou tudo bem.
voltei para a minha vida. o meu pai só muito mais tarde soube da minha visita à
esquadra. felizmente que foi pela minha boca – mas adiante. a história
principal não mete polícia. nem gringos. nem jogo. nem más companhias. a trama
principal é a magia. diria. um grande feito de ilusionismo
III.
teria os meus doze. treze anos. já bem vividos. já tinha dado o
meu primeiro beijo. fumava. e olhava para a sombra com desdém. nunca me tive em
muita boa conta. mas não sei porque carga de água. ou de asneira. dou por mim
em pânico a fugir do meu pai a sete pés – não me lembro ao certo o que tramei.
mas devo ter feito algo de muito grave na fábrica. a solução. foi bater com as
pernas no rabo e esconder-me em casa – devo ter ultrapassado todos os limites.
o meu amado pai não era de grandes correrias. era mais de esperar por me
apanhar a jeito. e então sim. fazia-me esticar as orelhas. e rematava sempre a
conversa com a ameaça de que na próxima a coisa não ficaria só pelas orelhas –
a ladainha do costume. acabei por me habituar. e depois de fazer as minhas contas
de cabeça. percebi rapidamente que a prova dos nove dava sempre saldo positivo
– as traquinices compensavam largamente os puxões de orelha. e nunca me pareceu
que crescessem mais por uns esticões – mas o certo é que naquele dia a coisa
era séria. mesmo muito séria. o meu pai surge-me pelo retrovisor em alta
aceleração. de cabeça completamente perdida. a bracejar. e pensei cá para mim:
vamos ter problemas. desta vez a coisa não se vai ficar pelas orelhas. prepara
o corpinho que vai haver tortura – entrei em casa em modo supersónico. subi os
degraus como o speedy gonzález. três de cada vez. e aflitíssimo procurei um
bunker para me esconder – deparou-se-me um problema. onde me esconder? comecei
a andar de um lado para o outro. aterrorizado. nenhum esconderijo me parecia
seguro o suficiente apesar do meu pai
vir cego. ele conhecia os cantos à casa tão bem quanto eu – vou para um lado.
depois para o outro. desesperado. todos os locais me pareciam maus. e para
adensar a iminente tragédia. a lurdes não estava em casa para me acudir – o meu
pai bate a porta de casa. ouço os passos agoniados pela escada acima. a fusão
da matéria estava iminente. e como estava sem soluções para me eclipsar.
encostei-me a um candeeiro e enfiei a cabeça num abajur vermelho escuro – era
uma daquelas peças africanas em pau preto que o meu pai tinha trazido das
províncias ultramarinas. numa das suas viagens de negócios – este abajur
ocupava um canto de um pequeno aposento. tinha a seu lado um pequeno móvel
lacado. qualquer coisa d. luís ou d. maria. a minha mãe tinha a mania dos
estilos. onde se via uma coleção completa da história de portugal. e outra de
lendas. já naquele tempo ficava bem uma casa de família ter uma estante com
livros. dava aquele ar de malta culta – era um tipo de escritório. ou sala de
estudo. montado especialmente para mim. os meus pais acreditavam que uma
escrivaninha ajudava a estudar. mas nunca foi usada para esse fim. achava-me
demasiado inteligente para perder tempo com essas mesquinhices. a bola tinha
uma relação de amizade fortíssima comigo. e o resto do tempo era dedicado à
cultura geral. os meus amigos mais velhos eram inteligentíssimos – a
arquitetura da casa remontava aos anos cinquenta. quartos para a frente. a meio
um corredor enorme dividia a casa em duas partes. e logo à entrada. dois
quartos ligados: o dito escritório. e já no seu interior uma outra porta que
dava para o quarto de passar a ferro. este com uma claraboia que permitia ter
luz natural o dia todo – esta claridade fusca. fez com que o meu pai nem
acendesse a luz do aposento. nunca ninguém acendia aquela luz. nem eu para
estudar. talvez por isso é que ia sempre às escuras para os testes – era um
quarto giro porque se ficava com a sensação de que a luz era divina. filtrada
por vidros baços. criava um género de “microclima” luminoso. um entardecer no
bosque. com os raios de luz a desfalecerem na imensidão da vegetação. com
várias sombras e reflexos. um género de luz e contraluz – e eu ali. estático.
quase sem respirar. em pensamento a prece ao meu deus. rogando-lhe que
aceitasse o meu arrependimento e me perdoasse todos os pecados. jurando que se
me salvasse do enxerto de porrada me tornaria seu discípulo para sempre – como
a aflição era tanta ainda acrescentei mais um santo ao peditório. s. judas tadeu.
o santo das causas impossíveis. ainda hoje mantenho uma relação próxima com
este servo de deus – o meu pai passava de um lado para outro. sempre a rezar-me
os améns. a bufar. a prometer-me o inferno. completamente desvairado. mais
parecia um vendaval tal era a fúria com que varria a casa – passa por mim umas
quantas vezes em direção ao quarto de passar a ferro. e por cada passagem as
ofertas de porrada triplicavam. e eu hirto. com o coração suspenso. em orações
contínuas. a prometer tudo o que podia. que não era grande coisa. mas
felizmente naquele dia acabou por ser suficiente – debaixo do abajur só lhe via
os pés desgovernados. em derrapagem. a chiar nas curvas. percebi pela
furiosidade com que rodava que só o cansaço me poderia safar de ficar com o
corpo marcado. diria mais. acabar com a carne desossada – o meu pai tinha feito
quase a maratona. correu a casa toda não sei quantas vezes. vasculhou tudo o
que era lugar – por graça do senhor e do meu santo a minha profecia bateu
certa. acabou por desistir pelo esgotamento físico. mas não sem antes deixar um
aviso em voz engrossada:
-- ao jantar acerto contas contigo – tu vais ver o que te espera
quando ouço bater a porta da rua deixo-me escorregar pelas pernas
abaixo. também estava esgotado. e ali fiquei sentado. a ouvir o coração a
lastimar-se de medo. amparado pelo meu salvador: o abajour – tinha ficado sem
peta de sangue. boca seca. com as pernas em espasmos. tremiam como varas
verdes. como se estivesse a ter um ataque de epilepsia – mas era jovem. com a
vida toda pela frente. rapidamente me recompus e pensei: isto era coisa de
mestre. um verdadeiro luís de matos. na época ainda não havia luís de matos.
mas faz de conta. havia o harry houdini. fiz-me desaparecer dentro de um abajur
africano – estava maravilhado comigo – passei num instante de uma
hospitalização iminente para uma euforia parva. e disse cá com os botões: isto
dá uma história fantástica. mais épica do que a viagem de bartolomeu dias.
dobrar o cabo da boa esperança era coisa de meninos – transformei o meu pai em
adamastor e construí uma epopeia para cantar os meus feitos pra lá de taprobana
– se depressa pensei. mais depressa fui pelo meu mundo cantar a minha glória –
o meu pai levou uma troça geral da família. e quando chegou a casa. já não teve
coragem de acertar contas. apesar da cara de poucos amigos. e de nunca me
encarar nos olhos – era o melhor pai do mundo. aquele coração não guardava mal
nenhum mais de cinco minutos. e por mais que tentasse parecer zangado. não
sabia mentir – tenho a certeza de que bem lá no íntimo se divertiu tanto como
eu. acredito que ficou orgulhoso com o meu improviso. e pensado: este rapaz vai
longe
IV.
os anos passaram. e nunca mais encontrei um abajur que me
escondesse das asneiras que fui inventando pela vida – acabei por crescer
sempre a correr atrás do que fui fazendo de menos bem. e percebi que o melhor
era não me esconder de coisa nenhuma – desde então nunca mais parei de correr
pelo mundo. e continuo sem parar
p.s. – já depois de escrever este pedaço de história da minha vida. a minha irmã confidenciou-me que ainda se lembra bem desta façanha. mas não se consegue lembrar que disparate fiz para irritar tanto o nosso pai – no entanto. veio em meu socorro. percebeu que pela furiosidade do pai lopes a coisa podia ficar mesmo muito feia – coisa de irmã mais velha
18/03/2021
março é muito mais do que o [um] dia do pai
mil novecentos
e noventa e oito. dez da manhã. uma voz desconhecida liga do hospital a dizer
que tinhas subido ao céu – eu sabia que os dias estavam cada vez mais escassos
para ti. o teu corpo já sofria há muito tempo. só o coração resistia – chorámos.
todos – apesar de estranhar a palavra saudade sabia que o melhor para ti era
regressares à casa do teu deus. não merecias essas dores medonhas que te
roubavam o sossego. nós também não – estou certo que foste bem recebido. eras
especial. e não o eras por ser meu pai. mas por seres um ser humano excecional.
bondoso. terno. um homem bom – vinte e três anos se passaram meu pai. vinte e
três anos contados a doer por dentro. e eu sempre a perguntar porque me encomendaste
tão tarde. porque me roubaste tempo a teu lado. porque não me deixaste caminhar
ao pé de ti. envelhecíamos os dois devagarinho – sempre fui tão novo a teu
lado. nunca me viste crescido. nunca me viste a olhar o teu mundo – andei perdido
no meu. nos sonhos da mocidade. a querer fazer coisas que afinal nunca passaram
de nada – tu sabias o que era ser jovem. talvez por teres tido uma juventude tão
amarga. nunca te importaste com a minha. acreditavas estar feliz. deixaste-me
crescer da forma que eu imaginava ser a melhor. mas não era. nem para mim. nem
para ti – sempre soubeste que o tempo da vida às vezes custa a passar – faz este
mês vinte e três anos que me cravaram março no corpo – foi este mês que me ensinou
como a palavra saudade muda quando se perde o pai – aprendi a chorar. a olhar fotografias.
a ouvir o bater da porta de casa. os teus passos pelas escadas. o prato na mesa.
e aquele conforto tranquilo como olhavas a finitude da vida. como se tivesses agradecido
ao mundo por te acolher – e nós todos de volta de ti. eu. a mamã. a lolinha. o
zé albertinho. a lurdinhas. os teus netinhos. todos. éramos imensos. era uma
casa cheia. uma família de sorrisos. de falas. e de esperança – outra foto… e
lá vens tu. a descer a rua. sempre com aquele passo medido e certo. já tinhas
aprendido que o mundo não se faz a correr – sabias tantas coisas – só não guardo
as fotos onde tu. já não és tu. és doença. dor e desespero – um pai nunca
parte. não interessam os anos de luz que perdeste ao meu lado. nem o silêncio
onde te escondes. a tua voz nunca se calou. eu ouço-te. ouço-te como se vivesses
num canto escorreito de mim. a olhar pelas minhas cicatrizes de março – temos
tantas saudades. os teus netos ainda se lembram de ti. de os sentares ao teu
colo… e têm tanto de ti. tanto do que nos ensinaste – às vezes ainda quero
acreditar que há um céu para gente boa e outro para gente sem interesse. e nos
dias em que me apetece rezar. quando quero acreditar. quando tenho fé. peço a
deus que me perdoe os meus pecados. e me leve para o teu pé. para o pé da mamã.
da zeza. do meu sogro. do tio joão. e de mais dois ou três amigos que tenho por
aí – mesmo que estejas perdido no reino do teu deus. eu saberei encontrar-te.
saberei beijar-te e abraçar – guardo-te na memória com todas as forças que vou obrigando
o corpo a manter – março será para sempre o mês em que te vi de olhos cerrados.
em que senti os meus lábios gelados no último beijo que te dei – março é o mês
da dor. tu morreste em dor. sofreste. foste crucificado a uma doença malvada –
levei-te à tua última morada. era dia do pai. que injustiça. enterrar-te no
nosso dia. o dia em que mais falta faz ter um pai. e aquele cheiro a terra de
tanta gente. de tantos pais e filhos. revolvida sem critério. a pesar a escuridão.
e o coveiro de pá na mão à tua espera. como se tu não fosses meu pai. a tapar
vidas. e a deixar a minha exposta para sempre – precisavas de ir. deixei-te ir.
apanhei um punhado de terra e cobri-te. bateu como um trovão. e a minha mão
suja para sempre. para sempre. meu pai – perdoa-me por ter sido tão jovem – choramos
os três. eu. a lolinha. e o zé alberto. choramos porque somos a tua multidão na
terra que nos destes – mas março será sempre março. e será para sempre o meu
mês. o mês do meu pai. o mês que me permite ser pai – deixa-me dizer-te: adoro
ser pai. como tu – sei que um dia voltaremos a falar. e nem imaginas o que
tenho para te contar. quantas aventuras tenho para te mostrar. sei que te vais
divertir como sempre te divertiste com as minhas palermices – sabes. a vida passa
tão rápido. bem me dizias tu. mas desta vez vamos sentar-nos com tempo. vamos
falar até cansar. nenhum dos dois terá que trabalhar. e também não estará a dar
nenhum filme do chuck norris – vou-te arranjar o cabelo. endireitar-te a gola do
casaco. aconchegar-te a camisa. e olhar-te nos olhos até me cansar. segurar-te
as mãos. tocá-las e aproximá-las de mim – passou tanto tempo. tantos dias e
noites. e nós com tanta falta de ti – um dia vou-te contar tudo o que perdeste
de nós. tens que saber o que se passou na tua ausência. há tanto para te
orgulhares
sabes…!!
não te direi mais nada. o
resto ficará para esse dia especial. o reencontro – digo-te apenas que tenho
saudades tuas. e que te amo ainda mais. passados vinte e três anos
05/03/2021
eu. o colégio d. diogo de sousa e os padres
I. o cristo da parede e o silêncio do colégio
nesta
história verdadeira e cruel não sei que idade teria ao certo. talvez uns dez ou
onze anos. algo por aí. estaria no primeiro ano do antigo ciclo [5º ano]. a
pouco mais de um ano de transitar para o liceu sá de miranda – por essa época andava
em estudos no colégio d. diogo de sousa. em internato diurno. tinha aulas de
manhã. almoçava na cantina. e depois seguia para as salas de estudo. onde o
silêncio ecoava como castigo. e os livros zumbiam os mesmos cânticos das sereias
de ulisses: pediam rua. liberdade. amizades verdadeiras – de manhã ainda se
passava com uma perna às costas. vários professores. disciplinas diferentes. e
muitos intervalos para cavaquear – depois do almoço. era uma tortura enfrentar
aqueles “catrapaços” num salão de alunos tristes e combalidos. cabisbaixos.
enterrados na solidão das matérias. escabelados entre contas e histórias de
reis e poetas mortos – nunca me senti muito bem naquele ambiente sepulcral – em
frente. amarrado à parede. o crucifixo com o meu cristo em agonia. com espinhos
cravados na cabeça em dor. por culpa do pôncio pilatos reza a história da
igreja. talvez por isso. a compartilhar o meu sofrimento. também eu carregava
uma coroa de espinhos na cabeça: a matéria para memorizar – éramos ambos vítimas
de homens poderosos. eu do meu pai. que me tinha internado o dia inteiro no
colégio. e cristo de um governador romano – daí aquela frase de que deus é omnipotente.
omnipresente e omnisciente fizesse sentido. não me largava um minuto – algumas
décadas depois desapareceu da minha vida. e das paredes. foi substituído pela
indiferença. não queria saber se existia. ou não. se foi crucificado. se
não – sei que eu. tal como ele. ressuscitei para outro mundo – éramos vigiados
por um homem de confiança da reitoria. um bufo ao estilo de capataz. fazia
quilómetros numa vigia rude e atenta. ao menor ruído lá chegava o ameaço em voz
de quem manda. pode: shhhhhhh. pouco barulho. e quando o burburinho subia de
tom. também o ameaço subia para uma visitinha ao reitor – os seus olhos
percorriam-nos a todos. um a um. e por cada passagem revistava minuciosamente o
que tínhamos em cima da carteira. não fosse escondermos um qualquer almanaque
de banda desenhada da disney – as regras eram para se cumprir sem qualquer tipo
de exceção: cabeça enterrada até ao tampo da carteira. a matéria a um palmo dos
olhos. e mesmo que o corpo vagueasse pelo infinito do mundo. era ali que ficaríamos
até que o sino batesse à retirada
Parte inferior do formulário
II. o
silêncio da criança e o poder do padre
tudo era
duríssimo. e cruel demais para miúdos de leite – este colégio estava ao nível do
ensino monástico da idade média. com castigos físicos e emocionais implacáveis.
não permitindo nenhuma forma de ligações interpessoais entre alunos e
professores padres – era inexistente a relação de responsabilidade e confiança.
todos os alunos eram tratados com um distanciamento frio. mecânico. sem nenhuma
estratégia metodológica para as diferenças de aprendizagem entre crianças – não
havia preocupação com a miudagem com menor capacidade para adquirir os
conteúdos programáticos – para o colégio da diocese de braga tudo dependia do
tempo de estudo. ou da atenção com que se estava nas aulas – não sabe… estuda
mais – não sabe… presta mais atenção – não sabe… esforça-te mais – hoje. todos
sabemos que as coisas já não se passam assim. há bons alunos que necessitam de
muita ajuda e acompanhamento ao longo do seu percurso escolar – com o
comportamento selvático de certos professores. não tenho dúvidas de que a minha
saúde física e mental foi afetada. e o desenvolvimento biopsicossocial seriamente
comprometido – levei muito tempo a reparar-me. para não falar na dignidade da criança
humana que ficou irremediavelmente ferida – agora vivemos tempos diferentes. podemos
falar de métodos pedagógicos à vontade. naquele tempo. não era assim. ninguém
queria saber das monstruosidades praticadas nas salas de aula – a criança na
escola não tinha direitos. nem legislação que a protegesse. o professor tinha
sempre razão. e a sociedade aceitava estes desvios comportamentais dos educadores
como educação positiva. de preparação para a vida adulta – infelizmente nos
dias de hoje os extremos tocaram-se. o professor não tem qualquer direito. e
está completamente desprotegido em termos de legislação. e os alunos fazem o
que bem entendem – pobres dos alunos do antigamente. pobres dos professores dos
nossos dias – para as crianças o melhor era o silêncio. porque o mais certo era
ouvir que o professor devia ter tido alguma razão para dar a sova. e só se perdiam
as que caíam por fora
III.
as orações do medo e o silêncio da memória - a vara. o pai e o perdão
nos dias
em que tínhamos português. nenhum aluno fazia intervalo. ficávamos todos sentados
nas carteiras a rezar em voz alta. todos. sem exceção. a implorar a deus que o
senhor padre viesse bem-disposto. e não se fizesse acompanhar da sua temida vara
– com os olhos pregados no crucifixo. completamente atemorizados. sem que
conseguíssemos abrir a boca a não ser para suplicar a deus – era assim o
intervalo – acreditem que era muito difícil uma criança ter vontade de
frequentar aquela escola. digo criança porque vivíamos uma época em que a inocência
era real. não havia instituições para nos proteger. não havia TV para denunciar
os abusos dos professores. não havia internet para divulgar o terror que se
passava dentro das instituições de ensino eclesiástico. e muitas vezes. não
havia pai. nem mãe – se o reitor chamasse o pai. e teria que ser um caso muito
grave. o castigo seria em dobro. apanhava-se do pai. diante do reitor. e do
reitor. diante do pai – e ainda ficava com a recomendação para fazer o que
fosse necessário. para o colocar no bom caminho – o importante era fazer dele
um homem – o meu pai não se enquadrava de nenhuma forma neste perfil de homem
rude. insensível e absolutista – agora como pai. sei muito melhor. que a
autoridade de um progenitor é conquistada pela bondade e justiça interior – o
meu pai. para a época. era na verdade especial. era um homem bom – mas mesmo
tendo um pai compreensivo e justo. não tinha o à-vontade que os filhos têm nos
dias de hoje – infelizmente os pais passaram a grandes amigos. a escravos dos
filhos. esquecendo-se completamente que mais importante do que serem amigos é
exercer a sua função paterna – é dessa figura que o filho necessita para
crescer com uma saúde mental sadia. e um dia tornar-se também ele um excelente
pai – chegar a casa. chamar o meu pai. e denunciar os maus tratos a que tinha
sido submetido. não era fácil – tínhamos medo de tudo. o conhecimento dos pais
era muito diminuto. e o respeito inabalável – se levássemos uma carga de
porrada de um professor. por não ter feito bem o trabalho de casa. não vínhamos
para casa com lamentações. ficávamos muito caladinhos e aguentávamos – a
educação era muito rígida e raramente pedagógica – terei que ser justo. também
havia professores que eram ternura pura. verdadeiros educadores. a maior parte
mulheres. o problema estava mais nos homens. pouco dados a sorrisos e afetos.
fruto de uma educação também ela deficiente em proximidade afetiva. mas grave
grave. eram os senhores padres professores – a maior parte deles fora retirada das
suas famílias em tenra idade. vinham na sua grande maioria das zonas mais
recônditas do país. para seminários onde recebiam estudos e educação de homens.
sem nenhum tipo de ambiente familiar. brutalizados por regras rigorosíssimas. e
alguns nem no natal iam a casa por dificuldades financeiras – vivia-se muito
mal naquela época. principalmente as pessoas do campo. sobreviviam com grande
sacrifício. amarrados a um pedaço de terra que pouco lhes dava para fugir à
pobreza e à miséria – grande parte dos seminaristas nunca tinham saído das suas
aldeias. chegar ao seminário era a sua grande viagem. a primeira cidade que
viam. a primeira casa com luz elétrica. com água canalizada. e a primeira cama
só deles. ainda que partilhada numa camarata – os padres. num dia longínquo.
também foram crianças. e também sofreram horrores ao serem arrancados das suas
famílias. o único mundo que compreendiam – os seminários não criavam apenas
ministros do evangelho. mas também inquisidores. determinados a acabar com os cábulas.
com os meninos de bem. com aqueles que aos seus olhos tinham tudo para ter
sucesso e não o aproveitavam – lembro-me perfeitamente dos seus nomes. como
esquecer. mas não os transcreverei para papel. para a imortalidade de um texto.
já faleceram. e se me mantive em silêncio até à construção desta missiva. não
seria um homem de bem se divulgasse agora os seus nomes – passaram muitos anos
e falando por mim. estão todos perdoados
IV. o
verbo que me calou
numa dessas
aulas. o senhor padre. professor da disciplina de português. perguntou-me um verbo
qualquer. para responder tinha que me pôr de pé ao lado da carteira. não fui
capaz de abrir a boca. nem me lembro se o sabia ou não. mas o medo de errar era
tanto que a mente simplesmente paralisava – como não respondi levei o primeiro
estalo. e como continuava a não responder. acabei a percorrer a sala toda ao
som de estalos. até fechar o círculo – não sei quantos estalos apanhei. sei que
foram muitos. mas o que mais me custou foi a humilhação verbal que acompanhava
o estalar das mãos. juntava os mais diversos comentários depreciativos. como:
burro. anormal. menino de bem. e outros insultos sem fim. até não ter mais
adjetivos. e sentir que já não restava mais nada de mim – banhado em lágrimas.
a chorar compulsivamente. dorido. com o rosto marcado. mandou-me sentar. e disse-me
com a maior das crueldades: amanhã tens que saber os verbos todos. se não
souberes levas de novo. e o dobro. e assim será até que os saibas todos na
ponta da língua – naquele dia já não almocei. não jantei. agoniei – logo a
seguir ao jantar disse à minha mãe que não estava bem. tinha frio. possivelmente
estaria a chocar uma gripe – pedi uma botija de água quente e fui para a cama
dizendo que estava mal e que me doía o corpo todo – doía-me muito mais a alma
do que o corpo – deram-me o termómetro. sorrateiramente encostei-o à botija de
água quente até que a febre se transformasse numa preocupação – assim foi.
fiquei a escaldar. metia dó. e os meus pais acreditaram na febre – tomei um
qualquer antipirético. e assim passei a noite doente da alma. em pesadelos. e medo
profundo – creio até que de noite ainda levei mais umas quantas bofetadas nos
sonhos
V. o
dia em que a febre me salvou
pela manhã
voltei a redobrar as queixas. mais febre e mais dores generalizadas. e voltei a
receber o termómetro para comprovar o meu estado febril – como não tinha botija.
a cama permanecia fria. e havia um aquecedor de barras no quarto. liguei-o. deixei-o
incandescer. encostei o termómetro às barras incandescentes. mas calculei mal o
tempo e acabou por se partir nas minhas mãos – pensei que estava entregue ao
diabo do professor. comecei a antecipar os estalos. e a preparar-me para repetir
a volta de humilhação – mas lá consegui enganar a minha mãe com mais queixas e
um mal-estar generalizado. acabando por ter permissão para ficar o dia inteiro
na cama – no entanto. insisti para que os meus pais ligassem ao colégio para
informar o senhor padre da minha doença súbita – foi assim que me safei de
levar mais uma carga de porrada e humilhação – recuperei rapidamente. e o dia acabaria
por ser passado em paz. acreditando que a promessa do senhor padre professor
caísse no esquecimento – de qualquer forma. tinha ganho mais uns dias para
estudar os verbos. ganhava tempo. e esperança
VI. o
dia em que o meu pai enfrentou deus
o problema
é que os meus pais ficaram preocupados e partiram em busca dos cacos do
termómetro nos lençóis. principalmente do mercúrio que era perigoso ao contacto
com a pele – voltas e mais voltas e nada. estava tudo junto ao aquecedor. fui
obrigado a contar o que realmente se passara – felizmente o meu pai tomou o meu
partido. não gostou de saber que o filho tinha apanhado uma sova como ele próprio
nunca fora capaz de dar – acabou tudo numa conversa azeda com o reitor do
colégio. deixando-lhe um recado em jeito de ultimato: proibia. expressamente. o
senhor padre de voltar a tocar-me – mais tarde soube que para além da proibição.
também deixou bem claro que se me voltasse a tocar o partia em dois. foi mesmo
com esta frase. que encerrou a conversa com o reitor – sendo um colégio privado
nem sei como não nos puseram na porta da rua. possivelmente com medo do
escândalo – só tive pena não o ter sabido na altura. teria posto o senhor padre
a dançar o verdadeiro bailinho da madeira – mas na verdade nunca mais me tocou.
o que foi uma mudança significativa na minha saúde mental. mas os meus colegas
continuaram a sofrer torturas consecutivas. principalmente o zé das calças. um
miúdo rural vindo do alto minho. que nunca caiu nas graças do senhor padre – não
estou a exagerar. quando digo tortura. nem ninguém me contou. foi com os meus
olhos que assisti aos meus camaradas de turma a serem varejados até que o
sangue lhes escorresse pelas pernas. cabeças abertas. e muitos rebolões pelo
chão com gemidos abafados de dor. e se o som subia. levavam ainda mais – já nem
conto as bofetadas e varadas ocasionais. isso eram apontamentos para que a
matéria ficasse mais rapidamente memorizada. o pai nosso de cada dia – toda
esta brutalidade. porque crianças não sabiam uma lição qualquer
VII. o amor também precisa do saber da idade
foram dois
anos muito cruéis. senti-me como um prisioneiro de opinião. desterrado para um campo
de concentração e tortura. algo quase idêntica ao tarrafal – foi um período
muito complicado. muitas vezes questionei porque é que o meu pai me tinha colocado
naquele inferno. já que tinha sido um belíssimo aluno na primária – acordar era
muito custoso. pegar nos livros. a cruz que carregava todos os dias – lembro-me
bem de. ao deitar. rezar para que deus me protegesse dos padres. principalmente
do senhor padre de português. e me tirasse daquele colégio medieval – é verdade
que estava habituado a afetos e mimos. não os que se dão hoje aos filhos. que
os abraçamos e beijamos dúzias de vezes ao dia. mas afetos de uma família
tranquila. com o meu pai a respeitar a minha mãe. a dialogar. a falarem sobre trabalho.
isso era diário. vivia numa casa de família – naquele tempo a minha casa era já
especial. a minha mãe era independente e com uma presença forte no seio
familiar. emancipada e senhora do seu valor profissional – faz três anos em
dezembro que a minha mãe faleceu. ainda não consegui escrever nada sobre ela. e
tenho tanto para escrever e contar. foi uma mulher fantástica. a história da
nossa família não se pode contar sem a enaltecer. foi a sua capacidade de
trabalho e de sacrifício que garantiu o nosso equilíbrio familiar. uma mulher obstinada
pela profissão. líder. era ela que. com pulso de ferro. coordenava toda a
produção da empresa e fazia aquela máquina trabalhar – o meu pai amava-a. apesar
do seu lado combativo. e de o obrigar constantemente a regressar à realidade crua
de patrão. com algumas dezenas de colaboradores pouco habituados aos ritmos
diabólicos de uma indústria nova na nossa cidade – mais tarde também eu pude provar
dessa realidade difícil. não era fácil manter a ordem e a disciplina com
funcionários tão pouco preparados. era preciso muito rigor e método no trabalho.
e isso era responsabilidade da minha mãe – naquele tempo era tudo difícil e
pobre. patrões e funcionários lutavam para levar uns tostões para casa – a
minha mãe era o ponto de equilíbrio da balança. e a única capaz de tirar o meu
pai do mundo dos afetos e sonhos. mas ele amava-a. talvez até por esse seu lado
de guerreira – já adulto também eu questionei esse lado afetuoso do meu pai. e
só muitos anos mais tarde. percebi que era ele que estava certo. esse lado era
a sua essência. pedir-lhe que fosse diferente foi um erro. deixaria de ser meu
pai. e eu também deixaria de ser o que sou – maldita juventude. leva-nos a fazer
coisas terríveis – só o entendi muitos anos mais tarde. mas tive de crescer muito.
muito mesmo. para compreender que o amor precisa [também] do saber da idade – o
envelhecimento transformou-me. aos poucos aquilo que era importante deixou de
ser. o que antes via como defeito. é afinal um direito de cada um seguir o
caminho que entende ser o melhor para si. o seu modo de ser – o meu pai fez o
dele e confesso que demorei muito tempo a compreendê-lo – comecei então a
perceber que afinal quem estava errado era eu. ao priorizar o que na verdade
não tinha valor – esse é. talvez. o meu maior arrependimento em relação ao meu
pai – mas sim. éramos uma família de gente boa. o tempo acabou por me mostrar
esse nosso lado. esse lado justo. de valorizar a vida. a família. e o trabalho –
os bens materiais para o meu pai nunca foram uma prioridade – talvez por isso me
custasse tanto a perceber como me tinha abandonado num colégio imundo. sem nenhum
calor humano
VIII.
o colégio. as caldinhas e o pão com marmelada
um dia.
para que todos percebam melhor o que era o colégio d. diogo de sousa. quando
ganhar coragem. quando envelhecer um pouco mais. contarei algumas histórias que
vivi com alguns colegas de turma – confesso que já tentei. mas acabo sempre por
desistir. mesmo passadas quase cinco décadas. a ferida ainda não cicatrizou.
recordar ainda dói – talvez fruto dessa revolta dei comigo a fazer algumas
palermices em casa. que levaram o meu pai a ameaçar-me que me internava no
colégio das caldinhas. em santo tirso – na época. um filho mais velho de um
vizinho foi para esse colégio. em internato completo. só vinha a casa no natal
e na páscoa – estavam lá enclausurados. os mais insurretos dos insurretos. o
que me levava a pensar que se o d. diogo era mau. então esse colégio das
caldinhas seria algo além da minha imaginação. de onde só se saía para o
hospital ou morgue – ganhei coragem e disse ao meu pai que não tentasse. pois
pegaria fogo ao colégio no primeiro dia que lá entrasse. e estou certo de que o
faria. tal era a minha revolta – já em mim se formava uma das minhas marcas de
personalidade: o que se promete tem que ser feito. as consequências resolvem-se
mais tarde. mas a palavra de um homem é sagrada – acredito que o meu pai me
tenha levado a sério. creio que percebeu que falava verdade. e também percebi
que a minha mãe e a lurdes não permitiriam – o que me interrogo é que género de
criança seria eu para levar o meu pai. um homem dócil. bom de nascença. com a
tolerância de santo. a querer mandar-me para um colégio daqueles – não deveria
ser flor que se cheirasse. mas era fruto de uma liberdade excecional. as portas
de casa eram abertas e a rua a minha grande paixão – sei que a vida na época não
foi fácil para os meus pais. trabalharam imenso. e lutavam por cada tostão que ganhavam
com esforço. e muito desse dinheiro servia para pagar colégios caríssimos –
sempre andei nas melhores instituições de ensino da minha cidade: pré-primária
no colégio dublin. um convento de uma ordem religiosa fundada em 1655 – primeira
classe na escola primária do bairro da misericórdia. esta foi a exceção. ensino
público frequentado por alunos de um dos bairros mais problemáticos da cidade:
as palhotas – todos os dias me roubavam o pão com marmelada que levava numa
daquelas sacas de pano bordadas com o meu nome. mas ficava perto de casa. o que
facilitava a vida aos meus pais – por fim. e como perceberam que a minha
integração nunca aconteceu. e a pedido da professora. aconselhou a mudarem-me
de escola – segundo ela. era demasiado frágil para estar no meio de miúdos
oriundos de famílias com graves problemas sociais – mudaram-me então para a gulbenkian.
onde fiz a segunda. terceira e quarta classe. sem nenhum tipo de dificuldade –
frequentada pela elite da cidade de braga. senti-me rei. com as lições de
sobrevivência aprendidas com os rufias das palhotas. os meus amigos eram presas
fáceis. era eu que lhes comia o pão com marmelada. e o dono da bola no recreio –
ouvi muitas vezes a minha mãe dizer que só me queria ver formado e casado –
compreende-se. foi mãe já com mais de quarenta. a minha irmã era treze anos
mais velha. e o meu irmão onze. tinha imenso medo de não conseguir dar um rumo
à minha vida. já que os meus irmãos eram adultos. creio que até já casados. ou quase
– hoje orgulho-me imenso dos pais que tive. foram fantásticos e completamente
dedicados aos filhos. viveram para unir a família – mas naquela época senti-me
muito sozinho. senti-me perdido. condicionou o meu crescimento durante muitos
anos. nunca mais confiei nos homens da igreja – agora que envelheci um bom
bocado olho para a religião com outros olhos. por vezes sou crente. quando
estou menos revoltado com o destino. e descrente. quando me revolto com as
injustiças no mundo – na maior parte das vezes só sou crente para continuar a
acreditar que existe vida depois da morte. e assim reencontrar os meus pais



