.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

18/03/2021

março é muito mais do que o [um] dia do pai








 

mil novecentos e noventa e oito. dez da manhã. uma voz desconhecida liga do hospital para informar que tinhas subido ao céu – eu sabia que os dias estavam cada vez mais escassos para ti. o teu corpo já sofria há muito tempo. só o coração resistia – choramos. todos – apesar de estranhar a palavra saudade sabia que o melhor para ti era regressares a casa do teu deus. não merecias essas dores medonhas que te roubavam o sossego. nós também não – estou certo que foste bem recebido. eras especial. e não o eras por ser meu pai. mas por seres um ser humano excecional. bondoso. terno. um homem bom – vinte e três anos se passaram meu pai. vinte e três anos contados a magoar. e eu sempre a perguntar porque me encomendaste tão tarde. porque me roubaste tempo a teu lado. porque não me deixaste caminhar ao pé de ti. envelhecíamos os dois devagarinho – sempre fui tão novo a teu lado. nunca me viste crescido. nunca me viste a olhar o teu mundo – andei perdido no meu. nos sonhos da mocidade. a querer fazer coisas que afinal nunca passaram de coisas – tu sabias tanto de ser jovem. talvez pela tua juventude ter sido tão amarga nunca te importaste com a minha. acreditavas estar feliz. deixaste-me crescer da forma que eu imaginava ser a melhor. mas não era. nem para mim. nem para ti – sempre soubeste que o tempo da vida às vezes custa a passar – faz este mês vinte e três anos que me cravaram o março no corpo – foi este mês que me ensinou como a palavra saudade soa de forma diferente quando se perde o pai – aprendi a chorar. a olhar as fotos. a ouvir o bater da porta da rua. os teus passos pelas escadas. o prato na mesa. e aquele conforto tranquilo como olhavas a finitude da vida. como se tivesses agradecido ao mundo por te ter acolhido – e nós todos de volta de ti. eu. a mamã. a lolinha. o zé albertinho. a lurdinhas. os teus netinhos. todos. éramos imensos. era uma casa cheia. uma família de sorrisos. de falas. e de esperança – outra fotoe lá vens tu a descer a rua. sempre aquele passo medido e certo. já tinhas aprendido que o mundo não se faz a correr – sabias tantas coisas – só não guardo as fotos onde tu. já não és tu. és doença. dor e desespero – um pai nunca parte. não importa os anos de luz que perdeste ao meu lado. nem o silêncio onde te escondes. a tua voz nunca se calou. eu ouço-te. ouço-te como se vivesses num canto escorreito de mim. a olhar pelas minhas rachaduras de março – temos tantas saudades. os teus netos ainda se lembram de ti. de os sentares ao teu colo e tem tanto de ti. tanto do que nos ensinaste – às vezes ainda quero acreditar que há um céu para gente boa e outro para gente sem interesse. e nos dias em que me apetece rezar. quando quero acreditar. quando tenho fé. peço a deus que me perdoe todos os meus pecados. e me leve para o teu pé. para o pé da mamã. da zeza. do meu sogro. do tio joão. e mais dois ou três amigos que tenho por aí – mesmo que estejas perdido no reino do teu deus. eu saberei encontrar-te. saberei beijar-te e abraçar – guardo-te em memória com todas as forças que vou obrigando o corpo a manter – março será para sempre o mês em que te vi de olhos cerrados. em que senti os meus lábios gelados no último beijo que te dei – março é o mês da dor. tu morreste em dor. sofreste. foste crucificado a uma doença malvada – levei-te à tua última morada. era dia do pai. que injustiça. enterrar-te no nosso dia. o dia em que mais falta faz ter um pai. e aquele cheiro a terra de tanta gente. de tantos pais e filhos. revolvida sem critério. a pesar escuridão. e o coveiro de pá na mão à tua espera. como se tu não fosses meu pai. a tapar vidas e a deixar a minha descoberta para sempre – precisavas de ir. deixei-te ir. apanhei um punhado de terra e cobri-te. bateu como um trovão. e a minha mão suja para sempre. para sempre meu pai – perdoa-me por ter sido tão jovem – choramos os três. eu. a lolinha e o zé alberto. choramos porque somos a tua multidão na terra que nos destes – mas março será sempre março. e será para sempre o meu mês. é o mês do meu pai. e o mês que me permite ser pai – deixa-me dizer-te: adoro ser pai. como tu – sei que um dia voltaremos a falar. e nem imaginas o que tenho para te contar. quantas aventuras para te mostrar. sei que te vais divertir. sempre te divertiste com as minhas palermices – sabes. a vida passa tão rápido. bem me dizias tu. mas desta vez vamos sentar-nos com tempo. vamos falar até cansar. nenhum dos dois terá que trabalhar. e também não passa na tv nenhum filme do chuck norris – vou-te arranjar o cabelo. endireitar-te a gola do casaco. aconchegar-te a camisa. e olhar-te nos olhos até me cansar. segurar-te as mãos. tocá-las e aproximá-las de mim – passou tanto tempo. tantos dias e noites. e nós com tantas saudades de te ter – um dia vou-te contar tudo que perdeste de nós. tens que saber o que se passou na tua ausência. há tanto para te orgulhares

sabes!!

não te direi mais nada. o resto ficará para esse dia especial. o reencontro – digo-te apenas que tenho saudades tuas. e que te amo ainda mais passados vinte e três anos 




 

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