mil novecentos
e noventa e oito. dez da manhã. uma voz desconhecida liga do hospital a dizer
que tinhas subido ao céu – eu sabia que os dias estavam cada vez mais escassos
para ti. o teu corpo já sofria há muito tempo. só o coração resistia – chorámos.
todos – apesar de estranhar a palavra saudade sabia que o melhor para ti era
regressares à casa do teu deus. não merecias essas dores medonhas que te
roubavam o sossego. nós também não – estou certo que foste bem recebido. eras
especial. e não o eras por ser meu pai. mas por seres um ser humano excecional.
bondoso. terno. um homem bom – vinte e três anos se passaram meu pai. vinte e
três anos contados a doer por dentro. e eu sempre a perguntar porque me encomendaste
tão tarde. porque me roubaste tempo a teu lado. porque não me deixaste caminhar
ao pé de ti. envelhecíamos os dois devagarinho – sempre fui tão novo a teu
lado. nunca me viste crescido. nunca me viste a olhar o teu mundo – andei perdido
no meu. nos sonhos da mocidade. a querer fazer coisas que afinal nunca passaram
de nada – tu sabias o que era ser jovem. talvez por teres tido uma juventude tão
amarga. nunca te importaste com a minha. acreditavas estar feliz. deixaste-me
crescer da forma que eu imaginava ser a melhor. mas não era. nem para mim. nem
para ti – sempre soubeste que o tempo da vida às vezes custa a passar – faz este
mês vinte e três anos que me cravaram março no corpo – foi este mês que me ensinou
como a palavra saudade muda quando se perde o pai – aprendi a chorar. a olhar fotografias.
a ouvir o bater da porta de casa. os teus passos pelas escadas. o prato na mesa.
e aquele conforto tranquilo como olhavas a finitude da vida. como se tivesses agradecido
ao mundo por te acolher – e nós todos de volta de ti. eu. a mamã. a lolinha. o
zé albertinho. a lurdinhas. os teus netinhos. todos. éramos imensos. era uma
casa cheia. uma família de sorrisos. de falas. e de esperança – outra foto… e
lá vens tu. a descer a rua. sempre com aquele passo medido e certo. já tinhas
aprendido que o mundo não se faz a correr – sabias tantas coisas – só não guardo
as fotos onde tu. já não és tu. és doença. dor e desespero – um pai nunca
parte. não interessam os anos de luz que perdeste ao meu lado. nem o silêncio
onde te escondes. a tua voz nunca se calou. eu ouço-te. ouço-te como se vivesses
num canto escorreito de mim. a olhar pelas minhas cicatrizes de março – temos
tantas saudades. os teus netos ainda se lembram de ti. de os sentares ao teu
colo… e têm tanto de ti. tanto do que nos ensinaste – às vezes ainda quero
acreditar que há um céu para gente boa e outro para gente sem interesse. e nos
dias em que me apetece rezar. quando quero acreditar. quando tenho fé. peço a
deus que me perdoe os meus pecados. e me leve para o teu pé. para o pé da mamã.
da zeza. do meu sogro. do tio joão. e de mais dois ou três amigos que tenho por
aí – mesmo que estejas perdido no reino do teu deus. eu saberei encontrar-te.
saberei beijar-te e abraçar – guardo-te na memória com todas as forças que vou obrigando
o corpo a manter – março será para sempre o mês em que te vi de olhos cerrados.
em que senti os meus lábios gelados no último beijo que te dei – março é o mês
da dor. tu morreste em dor. sofreste. foste crucificado a uma doença malvada –
levei-te à tua última morada. era dia do pai. que injustiça. enterrar-te no
nosso dia. o dia em que mais falta faz ter um pai. e aquele cheiro a terra de
tanta gente. de tantos pais e filhos. revolvida sem critério. a pesar a escuridão.
e o coveiro de pá na mão à tua espera. como se tu não fosses meu pai. a tapar
vidas. e a deixar a minha exposta para sempre – precisavas de ir. deixei-te ir.
apanhei um punhado de terra e cobri-te. bateu como um trovão. e a minha mão
suja para sempre. para sempre. meu pai – perdoa-me por ter sido tão jovem – choramos
os três. eu. a lolinha. e o zé alberto. choramos porque somos a tua multidão na
terra que nos destes – mas março será sempre março. e será para sempre o meu
mês. o mês do meu pai. o mês que me permite ser pai – deixa-me dizer-te: adoro
ser pai. como tu – sei que um dia voltaremos a falar. e nem imaginas o que
tenho para te contar. quantas aventuras tenho para te mostrar. sei que te vais
divertir como sempre te divertiste com as minhas palermices – sabes. a vida passa
tão rápido. bem me dizias tu. mas desta vez vamos sentar-nos com tempo. vamos
falar até cansar. nenhum dos dois terá que trabalhar. e também não estará a dar
nenhum filme do chuck norris – vou-te arranjar o cabelo. endireitar-te a gola do
casaco. aconchegar-te a camisa. e olhar-te nos olhos até me cansar. segurar-te
as mãos. tocá-las e aproximá-las de mim – passou tanto tempo. tantos dias e
noites. e nós com tanta falta de ti – um dia vou-te contar tudo o que perdeste
de nós. tens que saber o que se passou na tua ausência. há tanto para te
orgulhares
sabes…!! 
não te direi mais nada. o
resto ficará para esse dia especial. o reencontro – digo-te apenas que tenho
saudades tuas. e que te amo ainda mais. passados vinte e três anos 

 
 
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