.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/03/2021

eu. o meu pai e o abajur






foto de família


 

I.

a entrada dos filhos na idade do armário. expressão que caracteriza o início de uma nova etapa de crescimento. a puberdade ou adolescência. quase sempre traz consigo períodos de grande crispação. tanto a nível escolar como familiar – a instabilidade. a impulsividade. as alterações de humor. as novas amizades. aliadas a novas e exigentes responsabilidades escolares. transformam o dia a dia dos pais num verdadeiro inferno – para os jovens irreverentes. estas dores de crescimento indecifráveis pela imaturidade. aliada a uma vontade desenfreada de crescer rapidamente. só se revelam desastrosas alguns anos mais tarde – já adultos. com o saber amadurecido. a consciência entra em convulsões e as imbecilidades centrifugadas transformam-se em remorsos. nos casos mais graves em vergonha – começam então as interrogações: como foi possível ser tão imbecil – às vezes não há resposta. é-se imbecil. ponto final – valha-nos a compreensão dos adultos. que tendo passado pelas mesmas mutações. encontram na tenra idade a justificação para todas as idiotices: ainda é uma criança. só tem corpo – pois bem. eu era um desses adolescentes imbecis. com uma cubicagem de armazenamento elevadíssima de imbecilidade – assim cresci atazanando a cabeça aos meus progenitores. não havia dia nenhum que não aprontasse alguma – acredito mesmo que os meus pais. em momentos de alguma crispação e desespero. se tenham arrependido daquela noite de amor – acabei por ter sorte. pois algumas dessas tontarias. que ainda não escrevi. poderiam ter tido consequências bem complicadas – mas lá cresci. com empurrão daqui e dali. lá fui ganhando corpo e tino. felizmente. nada de muito grave me envergonha – não me meti em ervas. mas tive alguns amigos que se desgraçaram com esse vício maldito e acabaram perdidos no mundo das drogas pesadas – para compensar. meti-me no cigarro. e para mal dos meus pulmões andei longos anos a contribuir para o sustento da tabaqueira – claro que tive milhentas peripécias que podiam ter corrido mal. mas por todas passei entre os pingos da chuva. às vezes por sorte. outras. porque por mais malandro que fosse. sempre coloquei a família em primeiro lugar – este valor da família. acompanhou-me sempre. a família é o meu sustento. e a grande aventura da minha vida – hoje. sinto e sei que os meus filhos beberam essa poção mágica dos meus pais. também para eles a família é o seu alimento. e eu e a mãe a sua grande aventura – confesso que fomos muito rígidos com a sua educação. às vezes até um bocadinho excessivos. felizmente tudo correu bem e valeu a pena – o provérbio português filho és. pai serás. não vingou comigo. os meus filhos não seguiram o meu caminho – às vezes interrogo-me: que freio imerge na alma de um catraio para que. nos desafios da incerteza. acione o travão de emergência e evite o passo fatal para o submundo – sem ter certezas. porque não as há. a única resposta que encontro é a família: a bondade e a benevolência do meu pai. e a firmeza e competência da minha mãe – os dois eram a antítese um do outro. mas ao mesmo tempo a fórmula perfeita para um casal que. partilhava tudo. família e trabalho. e mesmo assim cumpriram o prometido perante deus: chegaram às bodas de ouro e só a morte os separou – o meu pai um excelente vendedor. sorridente. com uma facilidade enorme de comunicação e. principalmente. um homem de consensos. bom. sempre preocupado com os seus funcionários. a revindicar aumentos para seus vencimentos. entendia. e bem. que o que ganhavam não era digno. nem o suficiente para honrar a família – a minha mãe era o oposto. menos sorridente. com mão de ferro. sempre a gerir os excessos de generosidade do meu pai. sempre preocupada com o dia de amanhã – dirigia a produção da empresa não como patroa. mas como operária. competentíssima e implacável com os seus subordinados – foi esta simbiose que me fez optar sempre por eles. pela sua capacidade de entrega ao mundo das responsabilidades – agora posso confessar. já que não tenho na minha companhia os meus pais. em criança. tinha mais orgulho no trabalho de operária fabril da minha mãe. do que propriamente nas viagens comerciais do meu pai – cresci dentro de uma fábrica. com cheiro às colas e pele. e não me lembro de ver a minha mãe sem que estivesse sacrificada ao trabalho. de pé ou amarrada a uma máquina de costuraera uma mulher dos diabos. uma operária dos diabos. fazia de tudo naquela empresa. quando faltava uma colaboradora era sempre ela quem a substituía – fruto da canseira dos meus pais acabei a crescer sozinho e independente – pelos meus dez anos era completamente autónomo. desde que tenho memória que sempre decidi o que queria ou não fazer. sempre vivi em liberdade absoluta. todo o meu percurso de vida foi. exclusivamente. da minha responsabilidade – assim fui crescendo entre estados de espírito de alegria extasiante e momentos de solidão extrema – aprendi rapidamente a conquistar a noite. habituei-me a não dormir e a sentir o silêncio como o meu melhor amigo – passei a ler tudo o que me era possível – a banda desenhada o meu primeiro entretimento. depois os cinco. livros para crianças de mistério e aventuras de enid blyton – entusiasmado com a leitura entrei diretamente nos clássicos da literatura portuguesa onde fruí a minha grande paixão: júlio dínis – lia compulsivamente. não conseguia parar de ler e de sonhar. ganhei as minhas primeiras noites de amor platónico. onde a honra. a verdade. e o amor triunfavam sempre – uma família inglesa. morgadinha dos canaviais. e os fidalgos da casa mourisca. acompanharam-me até aos dias de hoje. não os voltei a ler. mas estou certo que se o fizesse. voltaria a sentir a mesma paixão. incrustaram-se na alma. morrerei com aquele mundo idílico. que nunca encontrei em mais lado nenhum – foi o júlio o meu grande educador. bebi dele todo o romantismo da vida. do triunfo do bem sobre o mal. da honra. do carácter. foi com os seus livros que aprendi a chorar – quando o dia rompia era outro miúdo. com as mágoas curadas pela solidão da leitura. pelo silêncio. e pela noite – estava pronto a correr todos os riscos do mundo. era um rapaz-homem novo. com autoestima. destemido para a vida e para os sonhos – um miúdo com total liberdade. independente. e uma vontade enorme de fazer amigos e coisas o mais rapidamente possível – aprendi então a sorrir mesmo que a alma me ardesse. e muitas vezes ardia. quase sempre – entre pouco estudo. bola. tabaco e amigos. estes. o maior vício. a vida corria sem ter fim – era o maior da cantareira – viver com poucas regras era a minha adrenalina – o 25 de abril ainda me trouxe mais o que já tinha em abundância: liberdade – hoje sei que fui das muitas crianças vítimas da revolução. não o digo para me desculpar de nada. mas por ser verdade. foi um período completamente louco e intensíssimo de emoções e experiências revolucionárias. até mesmo os adultos se perderam com aqueles novos e excêntricos tempos de mudança radical da nossa sociedade – viver a revolução de abril jovem foi uma experimentação única e fantástica. não posso dizer que não a trocaria por nada deste mundo. mas quase. hoje percebo que com mais um pedacinho de juízo poderia ter tido as duas coisas –

 

II.

no meio de tanta tontaria e liberdade. apenas uma única vez fui levado de gancho para a esquadra da polícia – confesso-vos que foi uma grande experiência. e também uma grande lição para o resto da vida – estava a jogar flippers numa casa de jogo. que por sinal pertencia ao sporting clube de braga. quando uma rusga policial entrou de rompante pela casa adentro – de bastões e com mau aspeto. espalharam-se pelo salão de jogos num abrir e fechar de olhos. nem tempo tive para dizer ai – quando me apercebi tinha um PSP ao meu pé a mandar-me parar a jogatina – pediram-me o bilhete de identidade. e depois de meter as mãos em todos os bolsos uma dúzia de vezes. fui obrigado a dizer que não o tinha comigo – como não tinha identificação o remédio foi entrar na ramona e seguir para a esquadra para provar quem realmente era eu. e o que fazia – foi uma viagem que teve tanto de terrífica como de paródia – para os meus comparsas era uma alegria viajar às custas da PSP. parecia mais uma viagem de finalistas do liceu – aquelas máquinas deixavam-me completamente perdidinho de amores. só sonhava em carregar nos botõezinhos. fazer a bola girar. sentir o galope da pontuação. e os bónus a cair como orgasmos – foi o momento da vida em que acreditava ser possível fazer carreira a jogar flippers. na máquina dos dragões eu era o ronaldo lá do sítio. carregava o quadro de bónus até não aceitar mais. e recebia dinheiro de quem quisesse partilhar a máquina comigo – o problema foi que o responsável rapidamente se apercebeu de que estava a fazer mealheiro. e num ápice substituiu os dragões por uma outra mais tecnológica – lá se acabou o rendimento. passei também a meter a moedinha – mas como estava a dizer. fui levado para a ramona. estacionada em frente à porta do vício. em pleno centro da cidade – à porta uma multidão de curiosos excitadíssimos começou a ganhar volume. o acontecimento era raro para a época. o 25 de abril tinha tirado as polícias da rua e a gandulagem sentia que podia fazer o que queria – a multidão adensou-se e. rapidamente. comecei a perceber que a minha tranquilidade familiar poderia acabar. o meu pai era muito conhecido na cidade. e como as notícias más correm sempre mais depressa do que as boas. comecei a temer que viesse a saber do que me estava a acontecer. não lhe passava pela cabeça que o filho andava em casas de jogo

- ó senhor lopes. acabei de ver o seu filho engavetado pela PSP numa casa de jogo

felizmente que naquele tempo não havia CMTV. mas mesmo assim não me livrei de ouvir uns quantos impropérios pouco abonatórios: vai trabalhar malandro. drogado. vadio. ladrões. ponham-nos a trabalhar. metam-nos dentro das grades e mais umas quantas dissertações sobre a honra da minha mãe. coitada. tão inocente como o meu pai –entrei para a carrinha. enterrei-me no último banco com a cabeça entre as pernas. a vergonha escorria-me pelos olhos. só queria sair dali o mais depressa possível – aos poucos a lotação foi esgotando. passado pouquíssimo tempo estava à pinha de artistas do jogo. fomos obrigados a dividir os bancos para cabermos todos numa fornada – quando ganhei coragem para erguer a cabeça apercebi-me que tinha a meu lado uma equipa de astros. meliantes com curso superior e já com artigos científicos publicados no cadastro da PSP. mas lá chegamos à esquadra – meteram-nos todos numa sala enormíssima. com umas quantas secretárias equipadas com máquinas de escrever. e agentes altamente treinados para a dactilografia: um dedo em cada tecla. e cinco minutos para descobrir cada letra – enquanto esperava pela vez para ser identificado e provar que era mesmo bom rapaz. portador de um DNA de bom comportamento e cadastro limpo. os mais mafiosos prostraram-se em frente aos polícias numa algazarra desaforida – queriam ser os primeiros a prestar declarações. todos argumentavam estar com pressa. todos estavam de passagem. entraram só para procurar um amigo. e todos tinham que regressar rapidamente para os seus negócios – pela aragem acredito que a maior parte seriam amigos do alheio. gente com habilidade para fanar – o engraçado é que só dei conta dos artistas na esquadra. na sala de jogo pareciam todos betinhos – a cabeça só vê o que realmente quer ver –eu. meio atarantado. com medo e acanhado. acabei por me instalar a um canto. encutinhado. caladinho que nem um fuso. não queria chamar a atenção dos bófias. tinha uma réstia de esperança de que se esquecessem de mim. ou aparecesse um amigo do meu pai e me safasse daquela humilhação – o tempo passou rapidamente. estive sempre entretido com a inquisição dos senhores agentes aos meus parceiros de infortúnio. deu para confirmar que estava muito bem acompanhado. era tudo malta com rasgo para a vida noturna – a maior parte deles com largo cadastro. alguns já com tempo de prisão. casos em tribunal. e outras ninharias em registo – lembro-me de um comparsa. vivia num bairro abaixo da minha casa. que tinha sido preso por roubar gasolina com um isqueiro. teve azar. aquela gasolina era de incendiar. lá se foi a viatura – era malta com mãozinhas já agraciadas com várias estrelas michelin. desde roubo de carros. assaltos. tráfico de droga. brigas violentas. havia de tudo naquele convívio de amigos – lá chegou a minha vez. o PSP apesar de carrancudo era educado – comecei a responder ao inquérito: filiação. idade. morada. o que estava a fazer dentro do estabelecimento. e mais uma quantas questões para perceber se era. ou não. aprendiz de meliante – demorou mais um pouco de que os meus camaradas porque tiveram que abrir ficha. era a minha primeira vez. acredito que ainda conste nos arquivos. mas em meu abono um passado irrepreensível – depois de explicar bem quem era o meu pai. tudo se tornou mais fácil. naquele tempo os agentes estavam habituados a passar pela fábrica dos meus pais. gostavam de artigos de pele e também de umas borlas. coisa que o meu pai fazia sempre com muito gosto. em seguida ouvia um recado da minha mãe – em boa verdade eu era um bom rapaz. um bocado acelerado. mas com um bom íntimo – tinha presença assídua na igreja. frequentava a congregação católica. ajudava à missa do carmo. fazia o peditório dominical na eucaristia das onze e trinta. e o mais importante. era filho de uma boa família cristã – esta minha passagem pela igreja dará outra bela história. mas tem que ser bem contada para não me envergonhar. corro o risco de perder a honra familiar – acabou tudo bem. voltei para a minha vida. o meu pai só muito mais tarde soube da minha visita à esquadra. felizmente que foi pela minha boca – mas adiante. a história principal não mete polícia. nem gringos. nem jogo. nem más companhias. a trama principal é a magia. diria. um grande feito de ilusionismo

 

III.

teria os meus doze. treze anos. já bem vividos. já tinha dado o meu primeiro beijo. fumava. e olhava para a sombra com desdém. nunca me tive em muita boa conta. mas não sei porque carga de água. ou de asneira. dou por mim desesperado a fugir do meu pai a sete pés – já não me lembro o que armei. mas devo ter feito algo de muito grave na fábrica. a solução. foi bater com as pernas no rabo e esconder-me em casa – devo ter ultrapassado todos os limites. o meu amado pai não era de grandes correrias. era mais de esperar por me apanhar a jeito. e então sim. fazia-me crescer as orelhas. e rematava sempre a conversa com a ameaça de que na próxima a coisa não ficaria só pelas orelhas – a ladainha do costume. acabei por me habituar. e depois de fazer as minhas contas de cabeça. percebi rapidamente que a prova dos nove dava sempre resto zero – as traquinices compensavam largamente os puxões de orelha. e também nunca me apercebi que crescessem mais por levar uns esticões – mas o certo é que naquele dia a coisa era séria. mesmo muito séria. o meu pai aparece-me pelo retrovisor em alta aceleração. de cabeça completamente perdida. a bracejar. e pensei cá para mim: vamos ter problemas. desta vez a coisa não se vai ficar pelas orelhas. prepara o corpinho que vai haver tortura – entrei em casa em modo supersónico. subi os degraus tipo speedy gonzález. três em cada passada. e aflitíssimo procurei um bunker para me esconder – deparou-se-me um problema. onde me esconder? comecei a andar de um lado para o outro. completamente em pânico. nenhum lugar me parecia suficiente seguro apesar do meu pai vir cego. ele conhecia os cantos à casa também como eu – vou para um lado. depois para o outro. desesperado. todos os locais me pareciam maus. e para dar textura à iminente tragédia. a lurdes não estava em casa para me acudir – o meu pai bate a porta de casa. ouço os passos agoniados pela escada a cima. a fusão da matéria estava iminente. e como estava sem soluções para me eclipsar. encostei-me a um candeeiro com a cabeça enfiada num abajur vermelho escuro – era uma daquelas peças africanas em pau preto que o meu pai tinha trazido das províncias ultramarinas. numa das suas viagens de negócios – este abajur ornamentava um canto de um pequeno aposento. tinha a seu lado um pequeno móvel lacado. qualquer coisa d. luís ou d. maria. a minha mãe tinha a mania dos estilos. onde se podia ver uma coleção completa da história de portugal. e uma outra de lendas. já naquele tempo ficava bem uma casa de família ter uma estante com livros. dava aquele ar de malta culta – era um tipo de escritório. ou sala de estudo. montado especialmente para mim. os meus pais acreditavam que uma escrivaninha ajudava a estudar. mas nunca foi usada para esse fim. era demasiado inteligente para perder tempo com essas mesquinhices. a bola tinha uma relação de amizade fortíssima comigo. e o resto do tempo era usado em cultura geral. os meus amigos mais velhos eram inteligentíssimos – a arquitetura da casa remontava aos anos cinquenta. quartos para a frente. a meio um corredor enorme dividia a casa em duas partes. e logo no começo do corredor dois quartos ligados: o dito escritório. e já no seu interior uma outra porta que dava para o quarto de passar a ferro. este com uma claraboia que permitia ter luz natural o dia todo – esta claridade fusca. fez com que o meu pai não acendesse a luz do aposento. nunca ninguém acendia aquela luz. nem eu para estudar. talvez por isso é que ia sempre às escuras para os testes – era um quarto giro porque se ficava com a sensação de que a luz era divina. filtrada por uns vidros baços. fazia emergir um género de “microclima” luminoso. um entardecer no bosque. com os raios de luz a perderem força na imensidão da vegetação. com várias sombras e reflexos. um género de luz e contraluz – e eu ali. estático. quase sem respirar. em pensamento a prece ao meu deus. rogando-lhe que aceitasse o meu arrependimento e me perdoasse todos os pecados. jurando que se me salvasse do enxerto de porrada me tornaria seu discípulo para sempre – como a aflição era tanta ainda acrescentei mais um santo ao peditório. s. judas tadeu. o santo das causas impossíveis. ainda hoje mantenho uma relação próxima com este servo de deus – o meu pai passava de um lado para outro. sempre a rezar-me os améns. a bufar. a prometer-me o inferno. completamente desvairado. mais parecia um vendaval tal era a velocidade como corrupiava pela casa – passa umas quantas vezes por mim em direção ao quarto de passar a ferro. e por cada passagem as ofertas de porrada triplicavam. e eu hirto. com o coração hibernado. em orações contínuas. a prometer tudo o que podia. que não era grande coisa. mas felizmente naquele dia acabou por ser suficiente – debaixo do abajur só lhe via os pés desgovernados. em derrapagem. a chiar nas curvas. percebi pela furiosidade com que rodava que só o cansaço me poderia safar de ficar com o corpo marcado. diria mais. ficar com a carne desossada – o meu pai tinha feito quase a maratona. correu a casa todo não sei quantas vezes. escorrichou tudo que era lugar – por graça do senhor e do meu santo a minha profecia bateu certa. acabou por desistir pelo esgotamento físico. sem. contudo. deixar um aviso em voz engrossada:

- ao jantar acerto contas contigo – tu só vais ver o que te espera

quando ouço bater a porta da rua deixo-me escorregar pelas pernas abaixo. também estava esgotado. e ali fiquei sentado. a ouvir o coração a lastimar-se de medo. amparado pelo meu salvador: o abajour – tinha ficado sem peta de sangue. boca seca. com as pernas em espasmos. tremiam que deus a dava. tal como se estivesse a ter um ataque de epilepsia – mas era jovem. com a vida toda pela frente. rapidamente me recompus e pensei: isto é coisa de mestre. coisa de luís de matos. na época ainda não havia luís de matos. mas faz de conta. havia harry houndi. fiz-me desaparecer num abajur africano – estava maravilhado comigo – passei rapidamente de uma situação de hospitalização anunciada. para uma euforia parva. e disse cá com os botões: vais ter que divulgar esta façanha. isto dá uma história fantástica. mais importante do que a viagem marítima do bartolomeu dias. passar o cabo da boa esperança é coisa de meninos – transformei o meu pai em adamastor e construí uma narrativa. uma epopeia para cantar os meus feitos pra lá de taprobana – se depressa pensei. mais depressa fui pelo meu mundo cantar a minha glória – o meu pai levou um gozo geral da família. e quando chegou a casa para jantar. já não teve coragem de acertar contas. isto apesar da cara de poucos amigos. e de nunca me enfrentar com os olhos – era o melhor pai do mundo. aquele coração não guardava mal nenhum mais de cinco minutos. e por mais que quisesse parecer zangado. não sabia mentir – tenho a certeza de que bem lá no seu íntimo divertiu-se tanto como eu. acredito que deve ter ficado orgulhoso com o meu improviso. e pensado: este rapaz vai longe

 

IV.

os anos passaram. e nunca mais encontrei um abajur que me escondesse das asneiras que fui inventando pela vida – acabei por crescer sempre a correr atrás do que fui fazendo de menos bem. e rapidamente percebi que o melhor seria não me esconder de coisa nenhuma – desde então nunca mais parei de correr pelo mundo. e ainda não parei

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p.s. – já depois de escrever este pedaço de história da minha vida. a minha irmã confidenciou-me que ainda se lembra bem desta façanha. só não consegue precisar que tipo de disparate fiz para irritar tanto o nosso pai – no entanto. veio em meu socorro. percebeu que pela furiosidade do pai lopes a coisa podia ficar muito feia – coisa de irmã mais velha  



 

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