I. o cristo da parede e o silêncio do colégio
nesta
história verdadeira e cruel não sei que idade teria ao certo. talvez uns dez ou
onze anos. algo por aí. estaria no primeiro ano do antigo ciclo [5º ano]. a
pouco mais de um ano de transitar para o liceu sá de miranda – por essa época andava
em estudos no colégio d. diogo de sousa. em internato diurno. tinha aulas de
manhã. almoçava na cantina. e depois seguia para as salas de estudo. onde o
silêncio ecoava como castigo. e os livros zumbiam os mesmos cânticos das sereias
de ulisses: pediam rua. liberdade. amizades verdadeiras – de manhã ainda se
passava com uma perna às costas. vários professores. disciplinas diferentes. e
muitos intervalos para cavaquear – depois do almoço. era uma tortura enfrentar
aqueles “catrapaços” num salão de alunos tristes e combalidos. cabisbaixos.
enterrados na solidão das matérias. escabelados entre contas e histórias de
reis e poetas mortos – nunca me senti muito bem naquele ambiente sepulcral – em
frente. amarrado à parede. o crucifixo com o meu cristo em agonia. com espinhos
cravados na cabeça em dor. por culpa do pôncio pilatos reza a história da
igreja. talvez por isso. a compartilhar o meu sofrimento. também eu carregava
uma coroa de espinhos na cabeça: a matéria para memorizar – éramos ambos vítimas
de homens poderosos. eu do meu pai. que me tinha internado o dia inteiro no
colégio. e cristo de um governador romano – daí aquela frase de que deus é omnipotente.
omnipresente e omnisciente fizesse sentido. não me largava um minuto – algumas
décadas depois desapareceu da minha vida. e das paredes. foi substituído pela
indiferença. não queria saber se existia. ou não. se foi crucificado. se
não – sei que eu. tal como ele. ressuscitei para outro mundo – éramos vigiados
por um homem de confiança da reitoria. um bufo ao estilo de capataz. fazia
quilómetros numa vigia rude e atenta. ao menor ruído lá chegava o ameaço em voz
de quem manda. pode: shhhhhhh. pouco barulho. e quando o burburinho subia de
tom. também o ameaço subia para uma visitinha ao reitor – os seus olhos
percorriam-nos a todos. um a um. e por cada passagem revistava minuciosamente o
que tínhamos em cima da carteira. não fosse escondermos um qualquer almanaque
de banda desenhada da disney – as regras eram para se cumprir sem qualquer tipo
de exceção: cabeça enterrada até ao tampo da carteira. a matéria a um palmo dos
olhos. e mesmo que o corpo vagueasse pelo infinito do mundo. era ali que ficaríamos
até que o sino batesse à retirada
II. o
silêncio da criança e o poder do padre
tudo era
duríssimo. e cruel demais para miúdos de leite – este colégio estava ao nível do
ensino monástico da idade média. com castigos físicos e emocionais implacáveis.
não permitindo nenhuma forma de ligações interpessoais entre alunos e
professores padres – era inexistente a relação de responsabilidade e confiança.
todos os alunos eram tratados com um distanciamento frio. mecânico. sem nenhuma
estratégia metodológica para as diferenças de aprendizagem entre crianças – não
havia preocupação com a miudagem com menor capacidade para adquirir os
conteúdos programáticos – para o colégio da diocese de braga tudo dependia do
tempo de estudo. ou da atenção com que se estava nas aulas – não sabe… estuda
mais – não sabe… presta mais atenção – não sabe… esforça-te mais – hoje. todos
sabemos que as coisas já não se passam assim. há bons alunos que necessitam de
muita ajuda e acompanhamento ao longo do seu percurso escolar – com o
comportamento selvático de certos professores. não tenho dúvidas de que a minha
saúde física e mental foi afetada. e o desenvolvimento biopsicossocial seriamente
comprometido – levei muito tempo a reparar-me. para não falar na dignidade da criança
humana que ficou irremediavelmente ferida – agora vivemos tempos diferentes. podemos
falar de métodos pedagógicos à vontade. naquele tempo. não era assim. ninguém
queria saber das monstruosidades praticadas nas salas de aula – a criança na
escola não tinha direitos. nem legislação que a protegesse. o professor tinha
sempre razão. e a sociedade aceitava estes desvios comportamentais dos educadores
como educação positiva. de preparação para a vida adulta – infelizmente nos
dias de hoje os extremos tocaram-se. o professor não tem qualquer direito. e
está completamente desprotegido em termos de legislação. e os alunos fazem o
que bem entendem – pobres dos alunos do antigamente. pobres dos professores dos
nossos dias – para as crianças o melhor era o silêncio. porque o mais certo era
ouvir que o professor devia ter tido alguma razão para dar a sova. e só se perdiam
as que caíam por fora
III.
as orações do medo e o silêncio da memória - a vara. o pai e o perdão
nos dias
em que tínhamos português. nenhum aluno fazia intervalo. ficávamos todos sentados
nas carteiras a rezar em voz alta. todos. sem exceção. a implorar a deus que o
senhor padre viesse bem-disposto. e não se fizesse acompanhar da sua temida vara
– com os olhos pregados no crucifixo. completamente atemorizados. sem que
conseguíssemos abrir a boca a não ser para suplicar a deus – era assim o
intervalo – acreditem que era muito difícil uma criança ter vontade de
frequentar aquela escola. digo criança porque vivíamos uma época em que a inocência
era real. não havia instituições para nos proteger. não havia TV para denunciar
os abusos dos professores. não havia internet para divulgar o terror que se
passava dentro das instituições de ensino eclesiástico. e muitas vezes. não
havia pai. nem mãe – se o reitor chamasse o pai. e teria que ser um caso muito
grave. o castigo seria em dobro. apanhava-se do pai. diante do reitor. e do
reitor. diante do pai – e ainda ficava com a recomendação para fazer o que
fosse necessário. para o colocar no bom caminho – o importante era fazer dele
um homem – o meu pai não se enquadrava de nenhuma forma neste perfil de homem
rude. insensível e absolutista – agora como pai. sei muito melhor. que a
autoridade de um progenitor é conquistada pela bondade e justiça interior – o
meu pai. para a época. era na verdade especial. era um homem bom – mas mesmo
tendo um pai compreensivo e justo. não tinha o à-vontade que os filhos têm nos
dias de hoje – infelizmente os pais passaram a grandes amigos. a escravos dos
filhos. esquecendo-se completamente que mais importante do que serem amigos é
exercer a sua função paterna – é dessa figura que o filho necessita para
crescer com uma saúde mental sadia. e um dia tornar-se também ele um excelente
pai – chegar a casa. chamar o meu pai. e denunciar os maus tratos a que tinha
sido submetido. não era fácil – tínhamos medo de tudo. o conhecimento dos pais
era muito diminuto. e o respeito inabalável – se levássemos uma carga de
porrada de um professor. por não ter feito bem o trabalho de casa. não vínhamos
para casa com lamentações. ficávamos muito caladinhos e aguentávamos – a
educação era muito rígida e raramente pedagógica – terei que ser justo. também
havia professores que eram ternura pura. verdadeiros educadores. a maior parte
mulheres. o problema estava mais nos homens. pouco dados a sorrisos e afetos.
fruto de uma educação também ela deficiente em proximidade afetiva. mas grave
grave. eram os senhores padres professores – a maior parte deles fora retirada das
suas famílias em tenra idade. vinham na sua grande maioria das zonas mais
recônditas do país. para seminários onde recebiam estudos e educação de homens.
sem nenhum tipo de ambiente familiar. brutalizados por regras rigorosíssimas. e
alguns nem no natal iam a casa por dificuldades financeiras – vivia-se muito
mal naquela época. principalmente as pessoas do campo. sobreviviam com grande
sacrifício. amarrados a um pedaço de terra que pouco lhes dava para fugir à
pobreza e à miséria – grande parte dos seminaristas nunca tinham saído das suas
aldeias. chegar ao seminário era a sua grande viagem. a primeira cidade que
viam. a primeira casa com luz elétrica. com água canalizada. e a primeira cama
só deles. ainda que partilhada numa camarata – os padres. num dia longínquo.
também foram crianças. e também sofreram horrores ao serem arrancados das suas
famílias. o único mundo que compreendiam – os seminários não criavam apenas
ministros do evangelho. mas também inquisidores. determinados a acabar com os cábulas.
com os meninos de bem. com aqueles que aos seus olhos tinham tudo para ter
sucesso e não o aproveitavam – lembro-me perfeitamente dos seus nomes. como
esquecer. mas não os transcreverei para papel. para a imortalidade de um texto.
já faleceram. e se me mantive em silêncio até à construção desta missiva. não
seria um homem de bem se divulgasse agora os seus nomes – passaram muitos anos
e falando por mim. estão todos perdoados
IV. o
verbo que me calou
numa dessas
aulas. o senhor padre. professor da disciplina de português. perguntou-me um verbo
qualquer. para responder tinha que me pôr de pé ao lado da carteira. não fui
capaz de abrir a boca. nem me lembro se o sabia ou não. mas o medo de errar era
tanto que a mente simplesmente paralisava – como não respondi levei o primeiro
estalo. e como continuava a não responder. acabei a percorrer a sala toda ao
som de estalos. até fechar o círculo – não sei quantos estalos apanhei. sei que
foram muitos. mas o que mais me custou foi a humilhação verbal que acompanhava
o estalar das mãos. juntava os mais diversos comentários depreciativos. como:
burro. anormal. menino de bem. e outros insultos sem fim. até não ter mais
adjetivos. e sentir que já não restava mais nada de mim – banhado em lágrimas.
a chorar compulsivamente. dorido. com o rosto marcado. mandou-me sentar. e disse-me
com a maior das crueldades: amanhã tens que saber os verbos todos. se não
souberes levas de novo. e o dobro. e assim será até que os saibas todos na
ponta da língua – naquele dia já não almocei. não jantei. agoniei – logo a
seguir ao jantar disse à minha mãe que não estava bem. tinha frio. possivelmente
estaria a chocar uma gripe – pedi uma botija de água quente e fui para a cama
dizendo que estava mal e que me doía o corpo todo – doía-me muito mais a alma
do que o corpo – deram-me o termómetro. sorrateiramente encostei-o à botija de
água quente até que a febre se transformasse numa preocupação – assim foi.
fiquei a escaldar. metia dó. e os meus pais acreditaram na febre – tomei um
qualquer antipirético. e assim passei a noite doente da alma. em pesadelos. e medo
profundo – creio até que de noite ainda levei mais umas quantas bofetadas nos
sonhos
V. o
dia em que a febre me salvou
pela manhã
voltei a redobrar as queixas. mais febre e mais dores generalizadas. e voltei a
receber o termómetro para comprovar o meu estado febril – como não tinha botija.
a cama permanecia fria. e havia um aquecedor de barras no quarto. liguei-o. deixei-o
incandescer. encostei o termómetro às barras incandescentes. mas calculei mal o
tempo e acabou por se partir nas minhas mãos – pensei que estava entregue ao
diabo do professor. comecei a antecipar os estalos. e a preparar-me para repetir
a volta de humilhação – mas lá consegui enganar a minha mãe com mais queixas e
um mal-estar generalizado. acabando por ter permissão para ficar o dia inteiro
na cama – no entanto. insisti para que os meus pais ligassem ao colégio para
informar o senhor padre da minha doença súbita – foi assim que me safei de
levar mais uma carga de porrada e humilhação – recuperei rapidamente. e o dia acabaria
por ser passado em paz. acreditando que a promessa do senhor padre professor
caísse no esquecimento – de qualquer forma. tinha ganho mais uns dias para
estudar os verbos. ganhava tempo. e esperança
VI. o
dia em que o meu pai enfrentou deus
o problema
é que os meus pais ficaram preocupados e partiram em busca dos cacos do
termómetro nos lençóis. principalmente do mercúrio que era perigoso ao contacto
com a pele – voltas e mais voltas e nada. estava tudo junto ao aquecedor. fui
obrigado a contar o que realmente se passara – felizmente o meu pai tomou o meu
partido. não gostou de saber que o filho tinha apanhado uma sova como ele próprio
nunca fora capaz de dar – acabou tudo numa conversa azeda com o reitor do
colégio. deixando-lhe um recado em jeito de ultimato: proibia. expressamente. o
senhor padre de voltar a tocar-me – mais tarde soube que para além da proibição.
também deixou bem claro que se me voltasse a tocar o partia em dois. foi mesmo
com esta frase. que encerrou a conversa com o reitor – sendo um colégio privado
nem sei como não nos puseram na porta da rua. possivelmente com medo do
escândalo – só tive pena não o ter sabido na altura. teria posto o senhor padre
a dançar o verdadeiro bailinho da madeira – mas na verdade nunca mais me tocou.
o que foi uma mudança significativa na minha saúde mental. mas os meus colegas
continuaram a sofrer torturas consecutivas. principalmente o zé das calças. um
miúdo rural vindo do alto minho. que nunca caiu nas graças do senhor padre – não
estou a exagerar. quando digo tortura. nem ninguém me contou. foi com os meus
olhos que assisti aos meus camaradas de turma a serem varejados até que o
sangue lhes escorresse pelas pernas. cabeças abertas. e muitos rebolões pelo
chão com gemidos abafados de dor. e se o som subia. levavam ainda mais – já nem
conto as bofetadas e varadas ocasionais. isso eram apontamentos para que a
matéria ficasse mais rapidamente memorizada. o pai nosso de cada dia – toda
esta brutalidade. porque crianças não sabiam uma lição qualquer
VII. o amor também precisa do saber da idade
foram dois
anos muito cruéis. senti-me como um prisioneiro de opinião. desterrado para um campo
de concentração e tortura. algo quase idêntica ao tarrafal – foi um período
muito complicado. muitas vezes questionei porque é que o meu pai me tinha colocado
naquele inferno. já que tinha sido um belíssimo aluno na primária – acordar era
muito custoso. pegar nos livros. a cruz que carregava todos os dias – lembro-me
bem de. ao deitar. rezar para que deus me protegesse dos padres. principalmente
do senhor padre de português. e me tirasse daquele colégio medieval – é verdade
que estava habituado a afetos e mimos. não os que se dão hoje aos filhos. que
os abraçamos e beijamos dúzias de vezes ao dia. mas afetos de uma família
tranquila. com o meu pai a respeitar a minha mãe. a dialogar. a falarem sobre trabalho.
isso era diário. vivia numa casa de família – naquele tempo a minha casa era já
especial. a minha mãe era independente e com uma presença forte no seio
familiar. emancipada e senhora do seu valor profissional – faz três anos em
dezembro que a minha mãe faleceu. ainda não consegui escrever nada sobre ela. e
tenho tanto para escrever e contar. foi uma mulher fantástica. a história da
nossa família não se pode contar sem a enaltecer. foi a sua capacidade de
trabalho e de sacrifício que garantiu o nosso equilíbrio familiar. uma mulher obstinada
pela profissão. líder. era ela que. com pulso de ferro. coordenava toda a
produção da empresa e fazia aquela máquina trabalhar – o meu pai amava-a. apesar
do seu lado combativo. e de o obrigar constantemente a regressar à realidade crua
de patrão. com algumas dezenas de colaboradores pouco habituados aos ritmos
diabólicos de uma indústria nova na nossa cidade – mais tarde também eu pude provar
dessa realidade difícil. não era fácil manter a ordem e a disciplina com
funcionários tão pouco preparados. era preciso muito rigor e método no trabalho.
e isso era responsabilidade da minha mãe – naquele tempo era tudo difícil e
pobre. patrões e funcionários lutavam para levar uns tostões para casa – a
minha mãe era o ponto de equilíbrio da balança. e a única capaz de tirar o meu
pai do mundo dos afetos e sonhos. mas ele amava-a. talvez até por esse seu lado
de guerreira – já adulto também eu questionei esse lado afetuoso do meu pai. e
só muitos anos mais tarde. percebi que era ele que estava certo. esse lado era
a sua essência. pedir-lhe que fosse diferente foi um erro. deixaria de ser meu
pai. e eu também deixaria de ser o que sou – maldita juventude. leva-nos a fazer
coisas terríveis – só o entendi muitos anos mais tarde. mas tive de crescer muito.
muito mesmo. para compreender que o amor precisa [também] do saber da idade – o
envelhecimento transformou-me. aos poucos aquilo que era importante deixou de
ser. o que antes via como defeito. é afinal um direito de cada um seguir o
caminho que entende ser o melhor para si. o seu modo de ser – o meu pai fez o
dele e confesso que demorei muito tempo a compreendê-lo – comecei então a
perceber que afinal quem estava errado era eu. ao priorizar o que na verdade
não tinha valor – esse é. talvez. o meu maior arrependimento em relação ao meu
pai – mas sim. éramos uma família de gente boa. o tempo acabou por me mostrar
esse nosso lado. esse lado justo. de valorizar a vida. a família. e o trabalho –
os bens materiais para o meu pai nunca foram uma prioridade – talvez por isso me
custasse tanto a perceber como me tinha abandonado num colégio imundo. sem nenhum
calor humano
VIII.
o colégio. as caldinhas e o pão com marmelada
um dia.
para que todos percebam melhor o que era o colégio d. diogo de sousa. quando
ganhar coragem. quando envelhecer um pouco mais. contarei algumas histórias que
vivi com alguns colegas de turma – confesso que já tentei. mas acabo sempre por
desistir. mesmo passadas quase cinco décadas. a ferida ainda não cicatrizou.
recordar ainda dói – talvez fruto dessa revolta dei comigo a fazer algumas
palermices em casa. que levaram o meu pai a ameaçar-me que me internava no
colégio das caldinhas. em santo tirso – na época. um filho mais velho de um
vizinho foi para esse colégio. em internato completo. só vinha a casa no natal
e na páscoa – estavam lá enclausurados. os mais insurretos dos insurretos. o
que me levava a pensar que se o d. diogo era mau. então esse colégio das
caldinhas seria algo além da minha imaginação. de onde só se saía para o
hospital ou morgue – ganhei coragem e disse ao meu pai que não tentasse. pois
pegaria fogo ao colégio no primeiro dia que lá entrasse. e estou certo de que o
faria. tal era a minha revolta – já em mim se formava uma das minhas marcas de
personalidade: o que se promete tem que ser feito. as consequências resolvem-se
mais tarde. mas a palavra de um homem é sagrada – acredito que o meu pai me
tenha levado a sério. creio que percebeu que falava verdade. e também percebi
que a minha mãe e a lurdes não permitiriam – o que me interrogo é que género de
criança seria eu para levar o meu pai. um homem dócil. bom de nascença. com a
tolerância de santo. a querer mandar-me para um colégio daqueles – não deveria
ser flor que se cheirasse. mas era fruto de uma liberdade excecional. as portas
de casa eram abertas e a rua a minha grande paixão – sei que a vida na época não
foi fácil para os meus pais. trabalharam imenso. e lutavam por cada tostão que ganhavam
com esforço. e muito desse dinheiro servia para pagar colégios caríssimos –
sempre andei nas melhores instituições de ensino da minha cidade: pré-primária
no colégio dublin. um convento de uma ordem religiosa fundada em 1655 – primeira
classe na escola primária do bairro da misericórdia. esta foi a exceção. ensino
público frequentado por alunos de um dos bairros mais problemáticos da cidade:
as palhotas – todos os dias me roubavam o pão com marmelada que levava numa
daquelas sacas de pano bordadas com o meu nome. mas ficava perto de casa. o que
facilitava a vida aos meus pais – por fim. e como perceberam que a minha
integração nunca aconteceu. e a pedido da professora. aconselhou a mudarem-me
de escola – segundo ela. era demasiado frágil para estar no meio de miúdos
oriundos de famílias com graves problemas sociais – mudaram-me então para a gulbenkian.
onde fiz a segunda. terceira e quarta classe. sem nenhum tipo de dificuldade –
frequentada pela elite da cidade de braga. senti-me rei. com as lições de
sobrevivência aprendidas com os rufias das palhotas. os meus amigos eram presas
fáceis. era eu que lhes comia o pão com marmelada. e o dono da bola no recreio –
ouvi muitas vezes a minha mãe dizer que só me queria ver formado e casado –
compreende-se. foi mãe já com mais de quarenta. a minha irmã era treze anos
mais velha. e o meu irmão onze. tinha imenso medo de não conseguir dar um rumo
à minha vida. já que os meus irmãos eram adultos. creio que até já casados. ou quase
– hoje orgulho-me imenso dos pais que tive. foram fantásticos e completamente
dedicados aos filhos. viveram para unir a família – mas naquela época senti-me
muito sozinho. senti-me perdido. condicionou o meu crescimento durante muitos
anos. nunca mais confiei nos homens da igreja – agora que envelheci um bom
bocado olho para a religião com outros olhos. por vezes sou crente. quando
estou menos revoltado com o destino. e descrente. quando me revolto com as
injustiças no mundo – na maior parte das vezes só sou crente para continuar a
acreditar que existe vida depois da morte. e assim reencontrar os meus pais
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