I.
pai. em agosto se fosses vivo farias cem anos. estaríamos todos em
festa. em boa verdade. tu sempre foste festa. sempre festejaste a família. os
amigos. os teus colaboradores. celebraste a vida com todos aqueles que tiveram
a bem-aventurança de privar contigo – a 5 de agosto teremos apenas mais um
motivo para te lembrar. brindaremos a tua chegada à vida. e também faremos um
brinde especial a todos os nossos antepassados afinal. eles são a razão de
continuarmos a existir como família – este ano. seremos todos centenários.
porque todos vivemos em ti
II.
mas março é para sempre o nosso mês – partiste a 17 de março e
escondeste-te de nós a 19. dia do pai – que raio de dia foste tu encontrar para
te cobrires de terra – esta semana voltei a sonhar contigo. estavas muito
doente. atormentado. os olhos escondidos numa escuridão magoada. com medo. e a
face moldada a um sofrimento terrífico. como se tivesse sido esculpido à
navalha. e a pele a resistir desesperadamente. a gritar dor. a gritar ajuda. e
a alma fundeada nos olhos. a querer imergir. a implorar milagre – tinhas uma
mão caída para o chão. a outra chamava por mim. por nós. enquanto os teus pés
teimavam em fugir de ti. de nós. como se já soubessem que o tempo das nossas
coisas estava a terminar – e tu ali. sentado naquele sofá. marcado a escaras. a
sofrer como um herói. o meu super-herói. o nosso. e o relógio de sala também
ali. a sofrer contigo. encostado às horas. firme. contando cada segundo. cada
respiração bracejada. rodando os ponteiros para o fim da corda numa dor rangida
a dignidade – o big ben da nossa casa já não dava horas. dava dor. dava raiva
por não haver forma de te fazer anjo antes do coração parar de bater – e as
pancadas incertas. como se cada minuto pudesse trazer o fim da tua imortalidade
– o ceifeiro à janela. a gozar comigo. a balançar de um lado para o outro. com
os olhos incendiados de gozo. em grunhidos lascivos. dizendo: já não falta
muito. já não falta muito. já não falta muito – o teu deus abandonou-te – que
deus permite o sofrimento de um filho seu? não sei meu pai. não sei nada do teu
deus. o que sei é que o enterrei contigo – nesse dia. em que o tempo parou.
morrestes os dois. e nunca encontrei perdão para o ressuscitar – meu pai. meu
pai. meu pai. sofreste tanta dor. e eu. nós. sem te poder valer – só queria ser
mágico. apagar as imagens de sofrimento que gravaste em mim. à navalha também.
porque sou carne da tua carne. serei sempre carne da tua carne. serei sempre o
teu filho mais novo. o mais traquina. o mais irrequieto. o que mais te zangou –
envelheci-te. era demasiado jovem. e tu meu pai. demasiado adulto – que raio de
ideia de me trazeres para o pé de ti tão tarde. os meus irmãos tiveram-te forte
e jovem. enquanto eu. tive-te sábio e doente – não é justo meu pai. podias ter
feito a coisa pela metade. não te tinha tão sábio. mas talvez tivesse visto em
ti os braços fortes. ou a esperança – um homem novo caminha com a esperança nos
olhos. no futuro – acreditei que iriamos envelhecer juntos – agora. sei que a
juventude torna tudo imortal – ser jovem é uma ilusão boa. o problema é que
envelhecemos. e tudo o que guardamos se torna frágil. quebradiço – na vida é
tudo tão quebradiço e volátil – eu já envelheci meu pai. passaram vinte e cinco
anos. e a esperança também envelheceu. ficou frágil. está quase igual à tua – a
verdade. é que um dia todos temos que partir para o universo profundo. para nos
fazermos pó. para nos juntarmos a mais pó. para encontramos novamente o nosso
pó. e viver a eternidade com o que é nosso há séculos e séculos: a família.
agora em paz e sem dor – meu pai. neste mundo sofrido que me deste. eu
resistirei. e quero que saibas que viverás na minha eternidade – sempre
acreditaste que um dia. quando já estivesses muito velhinho. junto com a mamã.
irias terminar os teus pequenos afazeres para a tua casa na aldeia. sentavas-te
naqueles bancos de ferro e ali ficavas a ver os pássaros de ruy belo nascer nos
ramos das árvores – mas não. fiquei eu com os bancos de ferro. e ali me sento.
a fingir que és tu. e ali fico a conversar sozinho. como filho. como teu filho
– eu sei que andas por aí. eu sei meu pai – um pai nunca morre. anda por aí – é
então que te dou a mão e peço para me levares a ver a morte do teu senhor nas
procissões da semana santa. como se os dois pudéssemos voltar à esperança.
voltar aos sorrisos. voltar a sentir-me seguro e imortal a teu lado – mais cedo
do que tarde todos temos que partir. o teu senhor partiu pregado a uma cruz. e
tu meu pai. pregado em mim. por nunca te ter podido valer – os teus ossos
enrodilharam-se. e a tua memória abalou amarrada a uma das minhas gaivotas. e
voou. e voou. e voou. até os dois deixarmos de a ver – ficamos ambos num vazio.
sem esperança – um dia. deixaste os olhos fechados de vez. e eu não aguentei.
fechei também os meus. ficamos apenas com os corpos pendurados um em frente ao
outro. como trapos. como se tivéssemos os dois prontos a evadirmo-nos do mundo.
eu com os olhos de rastos. a morrer como tu. a querer morrer como tu. a querer
que o mundo acabasse para todos. e ficássemos a vaguear pelo universo. como pó.
mais nada do que pó. nada que tivesse peso. nada que me fizesse humano. nada
que me fizesse sonhar. nada que me fizesse voltar a sofrer – queria ficar para
sempre estrela. e morrer todos os dias. morrer a cada aurora. a cada raio de
luz. a cada esperança maldita – e a mamã ali a nosso lado. em agonia. numa
dor-amor de cinquenta anos. cansada de te ver morrer aos pouquinhos. em cada
volta da terra. perdias sempre mais alguma coisa de ti. esquecias-te sempre
mais um pouco de nós – um dia percebemos que já não tinhas mais nada para
perder. encolheste-te na dor e ali ficaste a remoer contigo – e a lolinha e o
zé alberto ali também. sem nada saberem de ti. sem saberem onde te escondeste –
bem que procuramos todos. atrás da senhorinha. debaixo da cama. dentro do
guarda-joias que compunha a cómoda. nas gavetas da mesinha de cabeceira.
procuramos-te em todo lado. e nada. tinhas ido de vez. deixaste-nos a saudade.
que guardamos para sempre – queria tanto que pudesses estar ainda perto de mim.
queria tanto voltar a ouvir-te. queria tanto voltar a ver-te sorrir. queria ser
adulto a teu lado – meu pai. tenho saudades tuas. e também já não estou forte.
estou um pouco mais sábio. não como tu. só aprendi a fazer uns poemas e a
escrever umas cartas. estou… assim assim. como direi? com a esperança
quebradiça – escrevo. não quero que te esqueçam. quero-te vivo. mesmo que
continues escondido eu continuarei a segura-te. a pôr-te de pé. a ajeitar o nó
da gravata. a vestir-te o casaco. a desenhar-te em papel. e a perguntar porque
não me fizeste mais igual a ti – meu pai. meu pai. meu pai. não consigo perdoar
a quem nos estragou a velhice. a minha e a tua. a nossa – sabes. nunca mais foi
capaz de meter uma moeda naquelas caixinhas de esmolas. onde dormem os santos e
todos aqueles que em vida só fizeram bem – tu também só fizeste bem – quando
estavas muito doente. fui a casa do teu senhor e entrei. encontrei apenas
silêncio e uns quantos homens de deus mudos e quietos. cada um virado para o
seu pedaço de céu. o que lhes dava vida era a luz apanhada nos vitrais.
coloria-os com generosidade. dava-lhes alma e piedade – à entrada havia uma
caixa a pedir esmolas para as missões e outras causas que já não me lembro.
enquanto que cada servo de deus. tinha a seus pés uma caixinha de trocas: tu
dás-me uma moeda e eu dou-te esperança – creio que deitei moedas em todas. e
numa dessas caixas milagrosas meti uma nota. grande para ser notado. e dizia:
santo das causas impossíveis – foi uma questão de fé. e pensei: este é dos
meus. nunca se dá por vencido – não te queria perder meu pai. nunca tinha
perdido nada. a não ser o teu relógio ómega que um dia levei para jogar à bola
no campo da feira – ficas a saber que já tenho um igual. e este será para
sempre nosso. passará de pai para filho. dei a mesma corda que tu lhe davas. e
deixei-o a contar o nosso tempo de saudade – quero que saibas que a nossa
família vive naquela corda. e naquela contagem de tempo todas as memórias estão
a salvo dos males do esquecimento. os teus netos são agora os guardiões – mas
nada. nenhum santo me falou e anjo muito menos. tudo continuou dor e desespero
– só o silêncio enchia a casa do teu deus. e todas aquelas imagens a olhar para
o infinito. como se me dissessem: nós não podemos fazer nada. quem manda é o
chefe. está lá em cima – que raio de chefe tu me arranjaste meu pai. ou tem
muito que fazer. ou então. é um daqueles lambisgoias maniento. dos que só dão
um presunto a quem lhe der um porco – que se lixe o senhor teu deus – quem faz
mal aos meus. faz-me a mim – em agosto farás cem anos. em agosto comemoraremos
todos o teu centenário. em agosto juntaremos a família. toda. e falaremos de
ti. falaremos muito de ti. principalmente aos teus novos netos e bisnetos –
viverás em nós para sempre
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