.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

18/03/2023

pai. se fosses vivo farias cem anos








I.

pai. em agosto se fosses vivo farias cem anos. estaríamos todos em festa. em boa verdade. tu sempre foste festa. sempre festejaste a família. os amigos. os teus colaboradores. celebraste a vida com todos aqueles que tiveram a bem-aventurança de privar contigo – a 5 de agosto teremos apenas mais um motivo para te lembrar. brindaremos a tua chegada à vida. e também faremos um brinde especial a todos os nossos antepassados afinal. eles são a razão de continuarmos a existir como família – este ano. seremos todos centenários. porque todos vivemos em ti

 

II.

mas março é para sempre o nosso mês – partiste a 17 de março e escondeste-te de nós a 19. dia do pai – que raio de dia foste tu encontrar para te cobrires de terra – esta semana voltei a sonhar contigo. estavas muito doente. atormentado. os olhos escondidos numa escuridão magoada. com medo. e a face moldada a um sofrimento terrífico. como se fosse esculpido a navalha. e a pele a resistir desesperadamente. a gritar dor. a gritar ajuda. e a alma fundeada nos olhos. a querer imergir. a implorar milagre – tinhas uma mão caída para o chão. a outra chamava por mim. por nós. enquanto os teus pés teimavam em fugir de ti. de nós. como se já soubessem que o tempo das nossas coisas estava a terminar – e tu ali. sentado naquele sofá. marcado a escaras. a sofrer como um herói. o meu super-herói. o nosso. e o relógio de sala também ali. a sofrer contigo. encostado às horas. firme. contando cada segundo. cada respiração bracejada. rodando os ponteiros para o fim da corda numa dor rangida a dignidade – o big ben da nossa casa já não dava horas. dava dor. dava raiva por não haver forma de te fazer anjo antes do coração parar de bater – e as pancadas incertas. como se cada minuto pudesse trazer o fim da tua imortalidade – o ceifeiro à janela. a gozar comigo. a balançar de um lado para o outro. com os olhos incendiados de gozo. em grunhidos lascivos. dizendo: já não falta muito. já não falta muito. já não falta muito – o teu deus abandonou-te – que deus permite o sofrimento de um seu filho? não sei meu pai. não sei nada do teu deus. o que sei é que o enterrei contigo – nesse dia. em que o tempo parou. morrestes os dois. e nunca encontrei perdão para o ressuscitar – meu pai. meu pai. meu pai. sofreste tanta dor. e eu. nós. sem te poder valer – só queria ser mágico. apagar as imagens de sofrimento que gravaste em mim. à navalha também. porque sou carne da tua carne. serei sempre carne da tua carne. serei sempre o teu filho mais novo. o mais traquina. o mais irrequieto. o que mais te zangou – envelheci-te. era demasiado jovem. e tu meu pai. demasiado adulto – que raio de ideia de me trazeres para o pé de ti tão tarde. os meus irmãos tiveram-te forte e jovem. enquanto eu. tive-te sábio e doente – não é justo meu pai. podias ter feito a coisa pela metade. não te tinha tão sábio. mas talvez tivesse visto em ti os braços fortes. ou a esperança – um homem novo caminha com a esperança nos olhos. no futuro – acreditei que iriamos envelhecer juntos – agora. sei que a juventude torna tudo imortal – ser jovem é uma ilusão boa. o problema é que envelhecemos. e tudo o que guardamos se torna frágil. quebradiço – na vida é tudo tão quebradiço e volátil – eu já envelheci meu pai. passaram vinte e cinco anos. e a esperança também envelheceu. ficou frágil. está quase igual à tua – a verdade. é que um dia todos temos que partir para o universo profundo. para nos fazermos pó. para nos juntarmos a mais pó. para encontramos novamente o nosso pó. e viver a eternidade com o que é nossa há séculos e séculos: a família. agora em paz e sem dor – meu pai. neste mundo sofrido que me deste. eu resistirei. e quero que saibas que viverás na minha eternidade – sempre acreditaste que um dia. quando já estivesses muito velhinho. junto com a mamã. irias terminar os teus pequenos afazeres para a tua casa na aldeia. sentavas-te naqueles bancos de ferro e ali ficavas a ver os pássaros de ruy belo nascer nos ramos das árvores – mas não. fiquei eu com os bancos de ferro. e ali me sento. a fingir que és tu. e ali fico a conversar sozinho. como adulto. como filho. como teu filho – eu sei que andas por aí. eu sei meu pai – um pai nunca morre. anda por aí – é então que te dou a mão e peço para me levares a ver a morte do teu senhor nas procissões da semana santa. como se os dois pudéssemos voltar à esperança. voltar aos sorrisos. voltar a sentir-me seguro e imortal a teu lado – mais cedo do que tarde todos temos que partir. o teu senhor partiu pregado a uma cruz. e tu meu pai. pregado em mim. por nunca te poder valer – os teus ossos enrodilharam-se. e a tua memória abalou amarrada a uma das minhas gaivotas. e voou. e voou. e voou. até os dois deixarmos de a ver – ficamos ambos num vazio. sem esperança – um dia. deixaste os olhos fechados de vez. e eu não aguentei. fechei também os meus. ficamos apenas com os corpos pendurados um em frente ao outro. como trapos. como se tivéssemos os dois prontos a evadirmo-nos do mundo. eu com os olhos no chão. com os olhos de rastos. a morrer como tu. a querer morrer como tu. a querer que o mundo acabasse para todos. e ficássemos a vaguear pelo universo. como pó. mais nada do que pó. nada que tivesse peso. nada que me fizesse humano. nada que me fizesse sonhar. nada que me fizesse voltar a sofrer – queria ficar para sempre estrela. e morrer todos os dias. morrer a cada aurora. a cada raio de luz. a cada esperança maldita – e a mamã ali a nosso lado. em agonia. numa dor-amor de cinquenta anos. cansada de te ver morrer aos pouquinhos. em cada volta da terra. perdias sempre mais alguma coisa de ti. esquecias-te sempre mais um pouco de nós – um dia percebemos que já não tinhas mais nada para perder. encutinhaste-te na dor e ali ficaste a remoer contigo – e a lolinha e o zé alberto ali também. sem nada saberem de ti. sem saberem onde te escondeste – bem que procuramos todos. atrás da senhorinha. debaixo da cama. dentro do guarda-joias que compunha a cómoda. nas gavetas da mesinha de cabeceira. procuramos-te em todo lado. e nada. tinhas ido de vez. deixaste-nos a saudade. que guardamos para sempre – queria tanto que pudesses estar ainda perto de mim. queria tanto voltar a ouvir-te. queria tanto voltar a ver-te sorrir. queria ser adulto a teu lado – meu pai. tenho saudades tuas. e também já não estou forte. estou um pouco mais sábio. não como tu. só aprendi a fazer uns poemas e a escrever umas cartas. estou… assim assim. como direi? com a esperança quebradiça – escrevo. não quero que te esqueçam. quero-te vivo. mesmo que continues escondido eu continuarei a segura-te. a pôr-te de pé. a ajeitar o nó da gravata. a vestir-te o casaco. a desenhar-te em papel. e a perguntar porque não me fizeste mais igual a ti – meu pai. meu pai. meu pai. não consigo perdoar a quem nos estragou a velhice. a minha e a tua. a nossa – sabes. nunca mais foi capaz de meter uma moeda naquelas caixinhas de esmolas. onde dormem os santos e todos aqueles que em vida só fizeram bem – tu também só fizeste bem – quando estavas muito doente. fui a casa do teu senhor e entrei. encontrei apenas silêncio e uns quantos homens de deus mudos e quietos. cada um virado para o seu pedaço de céu. o que lhes dava vida era a luz apanhada nos vitrais. coloria-os com generosidade. dava-lhes alma e piedade – à entrada havia uma caixa a pedir esmolas para as missões e outras causas que já não me lembro. enquanto que cada servo de deus. tinha a seus pés uma caixinha de trocas: tu dás-me uma moeda e eu dou-te esperança – creio que deitei moedas em todas. e numa dessas caixas milagrosa meti uma nota. grande para ser notado. e dizia: santo das causas impossíveis – foi uma questão de fé. e pensei: este é dos meus. nunca se dá por vencido – não te queria perder meu pai. nunca tinha perdido nada. a não ser o teu relógio ómega que um dia levei para jogar à bola no campo da feira – ficas a saber que já tenho um igual. e este será para sempre nosso. passará de pai para filho. dei a mesma corda que tu lhe davas. e deixei-o a contar o nosso tempo de saudade – quero que saibas que a nossa família vive naquela corda. e naquela contagem de tempo todas as memórias estão a salvo dos males do esquecimento. os teus netos são agora os guardiões – mas nada. nenhum santo me falou e anjo muito menos. tudo continuou dor e desespero – só o silêncio enchia a casa do teu deus. e todas aquelas imagens a olhar para o infinito. como se me dissessem: nós não podemos fazer nada. quem manda é o chefe. está lá em cima – que raio de chefe tu me arranjaste meu pai. ou tem muito que fazer. ou então. é um daqueles lambisgoias maniento. dos que só dão um presunto a quem lhe der um porco – que se lixe o senhor teu deus – quem faz mal aos meus. faz-me a mim – em agosto farás cem anos. em agosto comemoraremos todos o teu centenário. em agosto juntaremos a família. toda. e falaremos de ti. falaremos muito de ti. principalmente aos teus novos netos e bisnetos – viverás em nós para sempre

 


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