quando um filho nasce os pais descobrem de imediato o lugar
onde um dia vão morrer
19/03/2024
dia do pai
16/03/2024
alzheimer
nunca controlei a boca
nem a alma
nem a dor
nem a ira do pensamento
mas se um dia me perder
se o nome destapar
se a memória lascar
se do amor deslembrar
se trocar o dia e a noite
o bem e o mal
abracem-me
segredem-me o vosso nome
não me deixem partir sozinho
[para os meus filhos]
mais um
dezassete. mais um março. mais um ano – já passaram vinte e seis anos que o
vosso avô partiu sozinho. envolto no branco silencioso do hospital. sem que
ninguém pudesse acompanhá-lo no adeus. sem que uma mão o guiasse ao céu – ano
após ano. e sem que a saudade desvaneça.
esse dia recomeça incessantemente em mim. é uma chaga que nunca fechará
– viverá enquanto eu viver já que nenhuma absolvição acalmará o meu pesar –
faltou uma última palavra em sua casa. nossa – um último beijo. nosso – e um
até sempre. nosso – tínhamos ficado em paz. todos nós
12/03/2024
por ser o que sou - II
II. o paradoxo de olbers
“*há sempre um grande arco
ao fundo dos meus olhos... a cada passo a minha alma é outra cruz” – que posso
então esperar de mim agora que o arco do tempo está a achatar e a cruz que
carrego a pesar? construí-me em dúvidas. e com elas produzi medo. ausência e
silêncio – será que a origem das dúvidas reside numa racionalidade que lhes é
exclusiva e autônoma? será que com a idade as dúvidas tendem a tornar-se mais
complexas? será que com a idade preferimos não ter dúvidas e encontramos
respostas na religião. no ateísmo. ou no universo? não sei. como não sei uma
imensidão de coisas. mas acredito que com o envelhecimento precisamos cada vez
mais de nos conquistar definitivamente. de nos conhecermos com coerência. de
nos amar incondicionalmente – envelhecemos. e começamos então a catar as
dúvidas morfológicas e anatómicas. estas com prioridade. e uma a uma. com
cuidados de cirurgião. dissecamo-nos. expomo-nos. libertamo-nos da vergonha.
mostramos o que somos. nada mais do que o que somos – tal como antigamente as
mães catavam piolhos nas cabeças dos seus filhos e os exterminavam unha contra
unha. também eu cato as minhas dúvidas. mas não as extermino. aprisiono-as.
acorrento-as ao que me sobra de lucidez. injeto-lhes aceitação.
suportação. e também conformação. afinal
são as minhas dúvidas. geradas e criadas em mim – nietzche dizia que devemos
ter o caos dentro de nós para dar à luz uma estrela dançante. eu já sou um
caos. mas no lugar das estrelas tenho as dúvidas a dançar sobre mim – as
dúvidas sufocam-me. desesperam-me. magoam-me. mas estou cada vez mais certo de
que não seria o que sou sem elas. sem o seu caos. sem a sua energia
interrogativa. e também sem a crueldade com que me levam à desesperação para me
encontrar com o que sou hoje – só não tenho a convicção de que alguma vez
levarei todas as minhas dúvidas à certeza. velejo águas sem fronteiras.
aflitas. angustiadas. bem sei que sempre foi assim. e o que nasce em dúvida.
tarde ou nunca será certeza – nesta forma maldosa de viver. inventada por mim
para que a ausência se faça o mais tarde possível. vivo a verdade que sou a
cada noite. e quando o sol range. e a mentira regressa. percebo pelo tino que
me resta que nada em mim é certo. viver o que não sou é um castigo só
compensado pelas dúvidas que alimentam a noite – sem dúvidas seria um monstro.
um vegetal. um ser inanimado. uma pedra pendurada num penhasco à espera de uma
rabanada de vento – tal como olbers. também eu quero acreditar que se a minha
mente fosse estática e repetitiva. nunca teria conseguido construir-me assim
como sou. talvez se me aplique o mesmo princípio do seu paradoxo – as minhas
noites são escuras. frias. solitárias. imersas em dúvidas. em dor. e o corpo de
um lado para o outro. da cama para o tártaro. e do tártaro para dentro do que
não quero ser. e o corpo inchado de coisas inúteis. enorme. como se tivesse
prenho de umas quantas vidas. quase todas dispensáveis. quase todas sem valor
de mercado – o meu corpo é um género de placa prensada de vidas e dúvidas. e
também pela minha parca sabedoria. cheio de incertezas e medos. sempre a
procurar um fim. e elas a nascer sem ordem e saber. e eu a perguntar: porquê?
são minhas por quê? talvez a resposta seja são minhas porque são. ou talvez
porque me fazem expulsar o que não sou. para tentar ser o que quero ser – *“o
homem é a única criatura que se recusa a ser o que é” e este eu. quase
invisível. e que habita dentro da ausência. medo e silêncio. não precisaria
mais do que um caderno de linhas para se tornar parte das coisas reais – nestas
noites embrulhadas em dúvidas e mistérios. a única companhia que suporto é o
conhecimento que não tenho. o de mim também. e que me faz procurar nas
incertezas o que sou. porque sou. ou o que poderia ter sido se… e mais se… e
mais se… e mais se… mesmo sabendo que o se será sempre uma equação com
resultado infinito e variável – mas mesmo este resultado imperfeito. está
sujeito a vários tipos de contaminação: se crescermos em família ou com amigos.
se estarmos sós ou acompanhados. se é noite ou dia. se temos fé ou descrença.
se temos dúvidas ou certezas. se vivemos na terra ou na lua. a invisibilidade
que sou. e que acredito ser genuína. é a minha impressão digital. o meu nome. a
antimatéria reconhecida por todos que me rodeiam – sendo invisível não existo.
resisto no meio de quem é visível – quero acreditar agora. com o meu calendário
em quarto minguante. que sou o que posso ser. e nunca serei mais do que isto
que escrevo. e também sei que serei muito menos para os que me leem – mas depois.
obstinado. procuro soluções. e mergulho nas dúvidas. às vezes como se fossem um
chá quente reconfortante. outras. fico em nada. desintegro-me molecularmente. e
crio um novo paradoxo: e se a minha invisibilidade fosse de tal forma gigante.
do tamanho do universo. não fosse finita. nem estática. e todo o conhecimento
que sei existir em mim. sendo pouco. mais as dúvidas. sendo muitas. porque não
há saber sem dúvidas. fosse uma fonte limpa de produção de energia. sendo a
invisibilidade o seu combustível. reproduzida assexuadamente. sem necessidade
direta da minha inteligência. sendo assim capaz de produzir os seus próprios
interesses. os seus próprios desafios. os seus próprios medos. as suas dúvidas.
isto é: eu. tal como sou – a minha invisibilidade é a minha força. mas **“o meu
pensamento sou eu: é por isso que não consigo parar” – construí o meu universo
escuro. que mais não é do que o meu quarto de pânico. e que tal como uma
ventoinha eólica apenas precisa de vento para produzir a sua energia: eu
preciso de invisibilidade para resistir ao que sou – e eu. invisível. que nada
produzo para além de energia interrogativa. a respirar contradição dolorosa.
morro para adormecer. morro para que o vento não chegue à eólica. e quando o
tártaro me regurgita. acordo para viver – é esta energia. esta força invisível.
que aceito como minha por ser feita do meu pensamento. que me faz nascer
renovado com a luz. e morrer com o escuro. e enquanto não faleço de vez.
resisto a todas dúvidas com mais dúvidas – nenhum homem. mesmo feito de nada.
pode descansar se não tiver um interruptor para as suas assombrações. uma mão
que se despeça da mente e nos faça falecer em calmaria. porque enquanto está
falecido não quer saber se o sol nasce ou não. se o pecado existe. ou não. se a
estrada é certa. ou não. se o amor por mim é verdadeiro. ou apenas a ferramenta
para me manter vivo – olbers fabricou um paradoxo para o universo. eu fabriquei
um paradoxo para mim: porque quero viver se é a morte que me ilumina os dias?
bem. não tenho certeza. talvez porque é no conhecimento da mortalidade que
encontramos clareza sobre a vida – a morte é apenas o nada imortalizado.
continuar vivo é sempre uma opção. a não ser que fosse tetraplégico. ninguém
nos proíbe que nos atiremos de um himalaia.
ou que sufoquemos com um nó de amor. ou nos enrodilhemos num oceano. é
sempre menos custoso falecer do que viver – sempre que o sol desaparece unge-me
saudade. e tal como um samurai se prepara para a batalha. também eu me dobro
sobre a terra que me suporta e honro os pais da minha luminosidade. e mesmo que
esta honra não lhes traga glória. e não sabendo eu se a alma é eterna depois de
perder o corpo. enquanto resisto às dúvidas terrenas. acredito que o nome que me
deram traz consigo um sentido – mas confesso. gostava de saber que dúvidas são
estas que me levam ao nada. pois mesmo que o amor me sobre em cada pegada. e o
desejo de caminhar se prenda às pernas. e o destino a soma de todos os passos.
sei que sou o que vivo na terra das vontades. e que me faz ser o que sou às
vezes não sendo. e mesmo que um dia me falte a estrada. mesmo que a curva seja
eterna. é o meu nome que perdurará em cada pegada que inventei – descobri no
escuro das minhas noites a luz que me ilumina a vida – procuro a minha verdade.
o que presta e o que não presta em mim. tal como nos pede miguel torga no seu
poema. quantos seremos
Quantos
seremos?
Não
sei quantos seremos, mas que importa?!
Um
só que fosse, e já valia a pena.
Aqui,
no mundo, alguém que se condena
A
não ser conivente
Na
farsa do presente
Posta
em cena!
Não
podemos mudar a hora da chegada,
Nem
talvez a mais certa,
A da
partida.
Mas
podemos fazer a descoberta
Do
que presta
E
não presta
Nesta
vida.
E o
que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta
comédia desumana
E
triste,
Que
cobre de soturna maldição
A
própria indignação
Que
lhe resiste.
*mário de sá-carneiro
** albert camus
***jean-paul sartre
09/03/2024
por ser o que sou - I
I - insignificante
às vezes sinto que já
faleci. fecho os olhos e as dúvidas iluminam um corpo já quase sem vida. e a
mente infinita e elástica a explodir de medo – por cada fantasma uma razão para
não querer abrir os olhos. por cada dor a certeza de que ainda estou vivo – a
luz natural desaparece. as lâmpadas tomam o seu lugar. iluminam o que está ao
seu alcance. e resisto. nada mais posso fazer. estou demasiado fragmentado para
brigar com o escuro – conto as estrelas. uma a uma. e por fim. e por desespero.
deito-mo… fecho os olhos… e faleço para tudo o que me faz viver. e a cada
amanhecer ressuscito para tudo o que me faz morrer – no escuro sinto-me sempre
tão insignificante. sem nenhum castelo para guardar. sem nenhuma cadeira para
me sentar. sem nenhuma certeza para as dúvidas que me subtraem a noite – pé
ante pé. adentro a caverna das impossibilidades. tudo é confusão. medo. terror
e morte desonrosa – mesmo assim. sobrevivo quando fecho os olhos… e morro
quando os abro – a vida é um desafio. às vezes indecente. às vezes injusta. às
vezes imoral. às vezes quase mortal. às vezes apenas com um pequeníssimo
estímulo para adiarmos para amanhã o que já não suportamos hoje – é o destino
que nos calhou em sorte. ou por mérito. ou por demérito. e um dia. sem mais
adiamentos. finamos por um mandamento interior que não podemos desrespeitar. é
como um impulso elétrico. um punhal que nos espetam de certezas. uma oração que
nos perdoa de todos os excessos e pecados. e tudo o que era dúvida é agora uma
oferta num embrulho irrecusável: paz para sempre – e enquanto esperamos por
esse mandamento. por aqui ficamos. a respirar devagarinho para que ninguém nos
ouça. a viver aos pouquinhos. a resistir porque o seu contrário é covardia. a
soletrar o nosso nome baixinho. a marcar dias no calendário para assegurar que
fazemos parte do mundo sensível – é quando tomamos o silêncio como o último
amigo. tudo o que for dito no desespero da noite pode tornar-se letal com o
nascer do dia – adiamos as dúvidas. as promessas. as orações. o vento às
gaivotas. adiamos tudo até que o corpo não possa mais dizer: quero falecer –
quando acordo. mesmo insignificante. mesmo a valer nada. dou como certo a
chegada de mais uma noite. mais uma ameaça ao siso. e sofro. e a dúvida é se o
meu padecimento é resultado da minha essência. ou das escolhas que realizei por
vontade – não sei. como poderia saber? mas para cada desafio diurno terei o que
sempre tive. audácia e esperança. talvez por ser insignificante. e não caber em
mim mais nada – e para cada himalaia apenas um passo para a frente. e a certeza
de que dor besta só me vencerá se o cume não alcançar – se não fosse
insignificante não haveria himalaias. as montanhas existem para pessoas como
eu: pensam. escrevem. desenham. pintam. traçam bissetrizes até ao princípio do
mundo. remexem o passado para nada mudar. e no topo da minha capela sistina.
uma cabeça tão miserável que confúcio nunca me teria aceitado para seu aluno –
resta-me resistir. pensar para existir. pensar para não falecer – a minha noite
está em oposição à infinitude da mente. é como se o medo abstrato. filosófico.
ou metafísico se tornasse real. como se tomasse o corpo e o mergulhasse em
ácido. e o medo do amanhã. que é meu por direito próprio. me corroesse os ossos
e me desfizesse em prantos – insignificantes. bem sei – que mais poderia ser do
que prantos insignificantes? creio que nada – escondo-me na escuridão. preciso
e amo as noites. à noite ninguém me vê. ninguém sabe quem sou. ou o que faço. à
noite sereno-me. procuro-me. procuro também as dúvidas. e para cada uma. outras
mil a trabalharem em mim. todas impassáveis. todas a fazer dor. a fazer terror.
e a única certeza dentro desta devastação. são dúvidas a parirem mais dúvidas.
e por fim. descarnado. desesperado. depauperado de qualquer riqueza emocional.
apenas uma certeza: amanhã tudo será pior? e eu. falecido ou não. com dor ou
sem. com perdão ou sem. caio definitivamente no meu abismo. e faleço por uma
vontade que não pode ser contrariada. como se tomasse uma espécie de cicuta invisível
que me faz falecer no escuro. e depois. com o nascer do dia. ressuscito para
poder morrer novamente – mas no dia em que morrer de vez. e viajar para outro
espaço sem dor e medo. sei que o mundo acordará exatamente igual. nenhuma
estrela no céu confiscará o meu nome. nenhuma luz na terra alumiará a minha
falta – já não tenho mais prantos. nenhum dote que me permita comprar uma
vírgula para mudar a história. terei que viver com dúvidas. e com a minha
preciosa insignificância. assumir o que sou. mesmo não sendo nada – a vida é um
voo para morte. é como se me tivesse atirado de um arranha céus há mais de 50
anos e andasse estes anos todos à procura de um local para cair – não se morre
com o impacto. morre-se com a vontade de chegar ao solo. porque a morte física
é apenas ausência e silêncio – escrevo. escrevo sentimentos confusos. incluindo
amor. morte. felicidade. alegria. tristeza. medo. raiva. incompreensão. e para
cada um deles um palavrão: que se foda – quando um homem falece. nada do que
fez tem valor se não durar mais do que um minuto. eu não deixarei nada que
valha mais do que um minuto – quando um homem falece nada do que fez tem valor
se as bocas não falarem de dor. eu não deixarei nenhuma obra em razão da dor –
quando um homem falece. nada do que fez tem valor se o sol não fizer sombra. eu
cresci envolto em nuvens – mas o que posso fazer se desistir não for solução?
mesmo que o vento me cegue o caminho. é na vontade de desistir que me nomearei
cavaleiro. e darei [comigo] o primeiro passo para a frente. mesmo que o meu
nada tema medrar. mesmo que o meu nada peça para não sofrer. pois estou certo.
que um dia. alguém me há de explicar o que sou. e porquê sou – quem caminha
sozinho vai mais rápido. mas quem caminha acompanhado. vai com certeza mais
longe. clarice lispector – eu vou com certeza chegar mais longe. caminho
comigo. e com todos os eus que carrego de nascença. e somos tantos. a falar. a
dar opiniões. a dizer vai por acolá. para logo outro dizer. é melhor por ali.
mas que posso fazer se todos são importantes. e de todos fiz caminho – confesso
que não sei. já me habituei a não os questionar. não quero compreendê-los. o
que quero mesmo é chegar mais longe. porque há coisas que não queremos saber.
às vezes ser. e ter também. mesmo que seja um dom divino. ou escolha do
universo. o melhor mesmo é continuar insignificante. vestir-me de louco. e viver
pendurado numa janela. quem sabe um dia ganho asas e passo a viver nas árvores.
na natureza. na minha natureza – quando um ser insignificante falece os sinos
não dobram. nem choram. nem gritam. acenam. e dizem sorrindo: já vais tarde.
finalmente noites sem dúvidas – estou certo que mais tarde. ou mais cedo.
aprenderei a contar os meus eus. a catalogá-los. e pedir-lhes que me nomeiem.
eu. sampaio rego. fiel depositário. e único herdeiro das suas vulnerabilidades.
dores. desgraças e insignificâncias – nós. queremos muito acreditar que é
possível ir mais longe – e termino esta primeira parte com um poema de
agostinho da silva. in “poemas”
SONHO
Teria
passado a vida
atormentado
e sozinho
se
os sonhos me não viessem
mostrar
qual é o caminho
umas
vezes são de noite
outras
em pleno de sol
com
relâmpagos saltados
ou
vagar de caracol
quem
os manda não sei eu
se o
nada que é tudo à vida
ou
se eu os finjo a mim mesmo
para
ser sem que decida.