prólogo
este
é um ciclo de cinco passagens de ano que vivi – tive muitas. estas são as que
guardei na memória porque de alguma forma se tornaram mais marcantes – viajar
no tempo é sempre especial. às vezes são viagens para sorrir. noutras o sorriso
não chega. apesar disso é um retalho da vida mesmo que amargurado – ainda
assim. porque amo a minha família. os meus filhos. escrever a minha vida é a
única forma que encontrei para que eles saibam mais de mim. de nós – ainda não
sei como escrever o amor que sinto por eles. mas sei quanto me deram para ser o
homem que sou hoje – sem eles nada seria – com eles sei que um dia serei
estrela. e quando olharem o céu. encontrarão sempre uma que me chame – e
depois. a minha companheira. por mais que escreva. e escrevo muito. nenhuma
palavra é forte. gentil. ou sábia bastante para a dignificar – o mais
importante. e é isso que tento. é levar aos meus filhos a medida do amor e do
sacrifício com que ela viveu as suas vidas – já são gratos. mas a idade ainda
não lhes revela o seu inteiro valor – espero que o tempo. como me aconteceu.
lhes traga a sabedoria para reconhecer que nada na nossa vida seria igual sem
ela – por fim. e nunca é demais dizê-lo. o prazer de partilhar estas viagens
com quem me segue nesta jornada diária de escrever – sempre que escrevo.
imortalizo-me
1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio
passagem
de ano 2016 – só nós os dois. eu e a maria joão. sozinhos. encrostados no sofá.
à décima-segunda badalada engolimos doze bagos de sobrevivência. cada um mais
amargo que o anterior – abrimos a garrafa de espumante. a rolha foi um tiro.
atravessou-nos o medo e a dor – desejámos um ao outro um ano-novo feliz.
cumprimos o protocolo das multidões – dentro de nós não havia nem uma centelha
de luz. estávamos moribundos. o escuro moldou-nos – amarrámo-nos a chorar e
fizemos prova de existência com as lágrimas – ficámos presos num tempo que já
não contava tempo – se por um lado ouvíamos o lacrimar profundo. por outro os
corpos apertavam-se num desespero nobre. honroso. porque dentro de nós não
havia um único arrependimento. teríamos feito tudo igual. eu escolheria a mesma
família. a mesma mulher. os mesmos filhos. a mesma vontade de fazer tudo certo
– o sofrimento era mais forte que a solução – a aflição esticava cada segundo
até virar horas – olhar para o céu não era recurso. só tinha as mãos para pedir
perdão. no fundo de mim o breu absoluto. negro. a cheirar a morte. nem um único
pirilampo a acender-me – se tivesse apenas um. talvez a sua luz exígua me
fizesse acreditar que era um farol – morrer era fechar os olhos. eu fechava-os
até desaparecer. deixava de me ver. escondia-me na parte mais distante de mim e
do mundo – as feridas dilacerantes. o grito pintado nas searas. e o ventinho do
inferno a perguntar-me se ainda queria continuar com a mutilação – no meu interior já pouco espaço havia para a
redenção. nem um único lugar que não estivesse em carne viva. nenhum vestígio
de esperança. tinha ingerido todo o ácido da vida. corroía-me ao microssegundo.
na minha cabeça o sussurro ecoava – perdoa-me – eu tinha obrigação de ser mais.
tinha jurado que para o bem e para o mal eu estaria presente. mas as pernas
fugiram. os braços caíram. a boca envergonhou-se. e os olhos cavaram escuro. e
eu moribundo. sem que uma única palavra me salvasse. me desse um recomeço. me
trouxesse de volta a dignidade – que mais precisa um homem na hora da morte
senão dignidade e honra? nada mais – e a cabeça a estilhaçar-se. e o tormento a
rasgar-me em pedaços que nunca mais se juntariam – na caverna que sou uma única
vontade: desaparecer. mergulhar no tártaro corrosivo e tornar-me labareda para
sempre. incendiar-me com o horror das palavras que me mordiam a mente. uma
régua de fogo a deslizar em mim por culpas imerecidas – que deus me suportaria?
nenhum – talvez o diabo – e nem esse eu carregava. eu era o próprio inferno. o
dono das labaredas. o senhor das trevas – quando acabámos de chorar disse: este
ano tudo vai ser diferente. vai correr tudo bem – sempre renasci das cinzas. e
a dilaceração foi a única fonte de energia que me fez aguentar a sorte maldita
– resta-me apenas o destino como companhia. por mais estradas que escolha. vive
em mim a chaga aberta. e ela sabe sempre o momento certo para fazer de mim um
sobrevivente. ela. os meus pais. a minha companheira. e os meus filhos – são o
fogo que me consome. a cinza de onde renasço
música de rodrigo leão no poema minha cabeça estremece de
herberto helder
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