13/10/2025

a primeira passagem de ano sem o meu pai

 




o meu pai morreu no dia 17 de março de 1998. foi sepultado no dia 19. dia do pai – o dia dele e o meu – nesse dia percebi que um homem só se torna adulto depois do pai sucumbir à luz – a nossa vida a seu lado é como estar no topo de uma montanha. virados de frente para o ocaso – crescemos com o nascer do sol – não o vemos. mas sabemos que existe. está ali. sentimos a emissão da sua luz. e sempre que há luz há segurança. os medos recuam para o escuro. e a coragem para viver é apenas claridade – um dia levantamos a cabeça e vemos aquela esfera de luz sobre nós. admirámo-lo. e perguntamos: como é possível emitir luz? de onde veio esta presença luminosa? não temos ainda resposta. mas não importa. o importante é aquecer-nos. viver. iluminar com certezas o caminho que percorremos – vamos envelhecendo. mesmo sem dar por isso. e acabamos a perceber que o sol perdeu força. já não aquece como antes. nem ilumina o que escondemos. somos jovens e julgamo-nos senhores de toda a luz do universo. tornamo-nos mais exigentes com os outros. e menos connosco. vulgarizamos a virtude. pedimos à honra que se modere. ridicularizamo-la. e seguimos em frente como se a luz nascesse apenas de dentro de nós – egocentrismo. e todos os planetas orbitam à volta de nós – e continuámos a envelhecer. e cada dia é um ano de corrida. e sem que o relógio nos alerte. num ápice. quando estamos a olhar o horizonte. que agora é cada vez mais perto. às vezes é já ali. percebemos que a todo o momento o sol vai pôr-se. e o escuro permanecerá em nós sempre. olhámos em volta e tudo não passa de suposições – será que vou conseguir ser como ele? será que o meu feitio é igual ao dele? será que vou envelhecer como ele? e no meio das interrogações o sol desaparece. apenas uns raios de luz perdidos aceitam lutar com o escuro – mas o escuro vence. instala-se em nós para sempre. e nunca mais sentimos o sol nascer pelas costas. já não aquece. no seu lugar chega a saudade. já não ilumina. clareia o dia para sobrevivermos – o mundo tornou-se num lugar estranho e por mais anos que passem nunca compreendemos a sua perda – nasci e cresci com ele. como é possível perdê-lo? não é – é como aqueles que são amputados de uma perna. podem ter uma muleta. prótese. até correr ao pé coxinho. mas há noite. quando a tristeza desce. é a sua falta que persiste. às vezes até dói o que já não existe. como aos amputados. que sentem a dor da perna ausente – na passagem de ano de 1998. todos sabíamos que nunca seria igual às anteriores. à décima segunda badalada. sobrou em mim um beijo. e a certeza de que nunca mais nada seria igual – o natal nunca mais se repetirá  – podemos falar dele. recordá-lo. contar os seus feitos. até dizer-mos que temos muito dele. que o seu neto também tem muito de si. mas ao deitar a dor fantasma volta. e magoa – ele não está mais entre nós. e eu nunca serei como ele. nunca serei o seu exemplo – nunca serei como ele porque para o ser teria que fazer o certo no momento certo. e eu não fiz. eu não me construí a partir do todo. escolhi as partes que me davam jeito. e só mais tarde é que percebi que sou como um lego. e para me construir precisava das peças todas – não as tinha. ninguém consegue pôr uma laranjeira a dar laranjas no mês de agosto – naquele ano. enquanto esperava pela passagem de ano viajei para dentro do meu pai. instalei-me nele. e em silêncio. sentei-me na minha montanha de emoções e deixei que o sol me voltasse a aquecer – as saudades fizeram de mim um novo homem. e jurei que nunca mais deixaria de falar dele aos netos. dizer-lhes que os miúdos inteligentes não são aqueles que tiram as melhores notas. mas os que fazem o que está certo no momento certo. não daqui a uma hora. um mês. ou um ano. o que está certo só tem um momento: é aquele momento – depois. são apenas remendos. e o que está roto não volta a ser novo

 

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