crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na
cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente
a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e
enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias
mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a
fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro
nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é
quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um
pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma
ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que
é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento
anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre
nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser
certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura.
maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos
fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao
caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não
podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as
deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à
espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma.
pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol
nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu
nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna
incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações.
ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa.
joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos
momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro
de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o
único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um
pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as
letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é
um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te
desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe
escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas
existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é
preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te.
és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por
isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução.
mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de
poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o
relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não
saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele
para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é
simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência.
nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que
é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não
vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e
para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te
ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus
pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a
virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata –
um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas
que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o
esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e
pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da
perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos
surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do
amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que
criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam
de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para
a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que
ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma
viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama.
a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o
melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu
és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta
idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque
o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe – por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade
em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa
história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje
quarenta e quatro anos juntos. três filhos.
três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou
ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que
atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o
universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e
a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós
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