03/10/2025

amor: o altar onde o sol nunca se despede



crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura. maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma. pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações. ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa. joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te. és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução. mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência. nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata – um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama. a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje

 

quarenta e quatro anos juntos. três filhos. três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós


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