esta é a última crónica de cinco passagens de ano que me ficaram em memória – à medida que envelhecemos. cresce em nós a necessidade de guardar em papel o que tivemos de melhor e de pior durante o nosso crescimento como pessoas – essa necessidade é. agora tenho a certeza. a presença da finitude no nosso acordar –deixamos de fazer projetos a longo prazo – agora. tudo é para o dia em que vivemos – escrever estas crónicas foi a forma que encontrei de doar aos meus descendentes o que eu e a maria joão vivemos: um mapa onde um dia se poderão rever. e assim perceber melhor o que nos liga. independentemente do tempo e das vivências pessoais
quando somos jovens. todas as festas acendem os
dias por dentro. nós já somos alegres pela ausência de passado. e quando não há
passado. não há pecado. por isso. nada bate uma overdose de gargalhadas. uma
mão cheia de palermices. e uma constelação de sonhos na palma da mão. prontos a
partir ao ritmo de um mundo que ainda nos era estranho – quando a leveza dos
anos nos faz acreditar que já somos homens feitos. especiais não pelo que
fizemos. mas pela certeza do que ainda vamos alcançar. a vida torna-se numa correria
tonta. corremos em todas as direções e raramente chegamos a algum lugar -- foi
o que me aconteceu -- eu era um miúdo cheio de sonhos – quem não os tem aos
dezoito anos – sempre que olhava para as mãos. pensava: o que vós não podereis
fazer? e a resposta era sempre a mesma. nada – deixei a luz do dia pela sombra
da noite. frequentava o regime noturno – nas salas uns quantos como eu.
deslumbrados da vida. sonhávamos que o dia morria no anoitecer. fechava os
olhos e nada ficava para o dia seguinte – como estava enganado. como era tolo.
mas também era um rapaz encantado. porque só os bons rapazes é que acreditam
num mundo sem lamentos. com uma borracha capaz de apagar o que há de menos bom
– eu despertava sem culpa. sem sombra. com a inocência dos que ainda não sabem
o que perderam – depois. havia aqueles que na altura eram para mim velhos. e
pensava: o que fazem aqui. com mais três quartos da vida gasta – para que
precisam eles de conhecimento? hoje sei que um homem apenas pode morrer com o
que sabe. nunca com o que possui – sempre amei os meus amigos. sempre os achei
mais inteligentes. mais bonitos. mais íntegros. mais capazes de adivinhar o
futuro – eu não sabia nada do futuro. para trás eu não existia – e quanto mais
me apagava do rasto. mais o pouco de mim brilhava – e era tão pouco – os olhos
castanhos a cair para a incerteza. o cabelo virado a norte. os braços presos
aos bolsos. e as pernas a correr sem destino. só o coração batia. compassado.
como se marchasse numa parada militar – hoje era dia de mexer no calendário.
ano novo. estávamos em mil novecentos e oitenta. e eu com dezoito anos feitos –
bem sei. numa urgência. mas era adulto – tinha tirado a carta de condução. que
naquele tempo era quase um mestrado em tráfego rodoviário – e um carro capaz de
chegar a moscovo -- nem que fosse ao empurrão -- pela noite. eu e mais dois
amigos. o tiago e o quim. vagueámos pela cidade de braga numa toyota hiace de
três lugares. e com o aproximar da meia noite. parámos o carro onde diariamente
parávamos a vida – na praça do comércio – e fizemos a contagem decrescente para
a entrada no ano novo – com a última badalada abrimos uma garrafa de espumante.
e celebrámos o ano novo como se estivéssemos na times square. e a bola de
cristal a cair devagar sobre nós – e por incrível que pareça. desceu mesmo
dentro da hiace – jurámos amizade para sempre. e rimos de todos os disparates
que inventámos para o futuro – seríamos ricos. famosos. e ilustres cidadãos do
mundo – talvez até com direito a um mount rushmore. e as nossas faces talhadas
na pedra – por baixo. a inscrição: “os melhores amigos na melhor passagem de
ano de todo o universo” – aqui cozinharam-se os sonhos mais idiotas. mas também
os mais belos do mundo 
P.S. falei acerca desta passagem de ano com o meu amigo tiago. que me garantiu que foi a sua melhor passagem de sempre – confirma-se assim como a juventude pode criar as mais belas imagens. aquelas que acabam por ser as fundações de um entardecer sereno
 
 
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