17/10/2025

duas passagens no mesmo ano

 




nunca dei grande importância à passagem de ano. para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido. feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias. para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros. caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade. a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta – dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso. invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente



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