nunca dei grande importância à passagem de ano.
para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem
do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o
calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem
sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma
que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta
para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as
matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada
terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e
por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda
de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem
fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira
renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e
encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido.
feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre
necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim
esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em
silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de
esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob
o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de
alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano
de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias.
para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em
alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta
para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior
constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do
ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada
se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos
eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a
passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda
seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre
por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio
calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas
vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de
bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um
pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já
em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos
recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros.
caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo
tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a
certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas
foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e
uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de
bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano
novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas
permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade.
a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e
genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta –
dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de
que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito
mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso.
invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira
passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a
tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois
seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente
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