tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira
vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a
família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois…
uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big
bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma
passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a
jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti
com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um
vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda
deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à
henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer:
estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu
mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial
era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já
não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos
todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as
noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava –
contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para
um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha
preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era
também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu
ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse
emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do
meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um
grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que
morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já
damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras
coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor.
todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a
certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que
importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas
horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos
campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou
a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga
amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por
detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo
ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o
tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se –
entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo
para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite
correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a
bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à
meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um
instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os
decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços.
desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo
mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de
espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano
anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram
os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo
passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho
saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais –
e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos.
saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no
hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de
nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me
compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um
instante que o tempo rouba sem pedir licença
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