21/10/2025

passagem de ano com os meus pais – memórias de uma 4L

 




tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois… uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer: estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava – contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor. todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se – entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços. desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais – e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos. saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um instante que o tempo rouba sem pedir licença


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