nota de autor
este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não
procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o
meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o
silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das
gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o
carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por
vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um
dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui
alguém amou o nosso nome antes de desaparecer
nascemos.
e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e
deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi.
um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se
transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos
– um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não
interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um
pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para
flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque
vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta
sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e
delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória.
depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o
pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de
empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a
desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão
de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva
destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que
vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a
vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é
quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de
saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha
mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo
ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez
tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa
bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem
passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário.
caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi
na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o
meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no
que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus
pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da
minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do
espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha
de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à
noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os
batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina
a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando
chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira.
sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça
como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na
fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos.
de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao
relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por
nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não
percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o
que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras
mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que
trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo
calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido
para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de
si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos
acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me
teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações.
garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o
instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas
não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele
que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração
é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para
sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio
também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o
nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem
do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o
valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia.
mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na
distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma
tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é
comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar
é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem
me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que
me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao
esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe
nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer
– por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes
nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no
presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo.
todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma
estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a
partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará
só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo.
para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem
ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o
nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações
– sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser
o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós –
é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as
gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o
renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não
tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem
castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em
risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que
não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são
mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as
dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra
prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e
dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do
sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é
o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir.
é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque
ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das
vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor --
da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um
nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro. carregamo-lo há séculos – falarei dos meus
heróis até que uma voz me chame
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