15/11/2025

as gerações são assassinas das gerações anteriores

 





nota de autor

este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui alguém amou o nosso nome antes de desaparecer

 

nascemos. e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi. um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos – um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória. depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário. caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira. sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos. de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações. garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia. mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer – por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo. todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo. para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações – sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós – é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir. é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor -- da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro.  carregamo-lo há séculos – falarei dos meus heróis até que uma voz me chame


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