10/11/2025

o porquê das causas

 




 

nota de autor

escrevi este texto como quem volta a uma conversa interrompida. não para refazer o passado. mas para o entender. há memórias que nunca se apagam – ficam à espera de uma voz que as nomeie. “o porquê das causas” nasceu desse impulso: o de falar com o meu pai. mesmo depois de tantos anos de silêncio. é uma tentativa de reconciliar o tempo. de agradecer o que ficou dito e o que não foi possível dizer

 

 o que leva um pai a ter uma conversa com o filho sobre casamento? talvez a irreverência do filho. talvez o amor. ou o medo de o perder – talvez tudo junto numa única fala – escrevo-te. pai. porque a tua memória ainda vive em mim. e agora. que estou mais perto da idade sábia. começo a encontrar o desígnio terreno que me coube. preciso entender o porquê das causas. descobrir nas tuas razões. o caminho que me trouxe até hoje – já não falamos há vinte e sete anos. ouço dizer que é uma vida. para mim é silêncio – e o silêncio tem sempre um princípio. mas nunca saberemos quando acaba. porque dentro de mim guardo um nó de perguntas que não foram feitas – quando fico mais comigo. saco de uma daquelas falas que ficou por dizer e interrogo-te. mas como não me respondes. respondo eu por ti – é a forma de te manter ao pé de mim -- fazes-me falta -- e mesmo que eu vá envelhecendo. tu estás igual – é assim que te guardo. a mastigar. uma nódoa na gravata. e aquele jeito de andar a sorrir – como se a luz que trazias vestisse o corpo – uma daquelas noites em que fico a conversar contigo. lembro-me bem. ali na praça conde de agrolongo. o vento a cortar a fala. e tu. a certa altura. disseste: porque não te casas – tens uma miúda que me parece uma boa menina e é muito bonita – sim. era a maria joão – depois continuaste. precisas de acalmar. teres horas para te deitar. dedicar-te mais à fábrica. tens agora mais responsabilidades – pensa nisso – ouvi-te em silêncio – quando cheguei a casa deitei-me e comecei a digerir a conversa contigo – naquela noite foi um emaranhado de lençóis e pensamentos – confesso que nunca me passaria pela cabeça ter uma conversa sobre casamentos – durante dias as palavras dele ficaram presas em mim. como se procurassem sentido – e sim. tinhas razão – estava na hora de me acertar com as responsabilidades – precisava de deixar de emendar as noites com os dias. acalmar. e de voltar a colocar a família no centro do meu universo – era um miúdo – mas a família sempre me ancorou ao certo – sempre senti que era a seu lado o meu porto seguro – quanto ao casamento. tinhas toda a razão. aquela seria para sempre a mulher da minha vida. passaram quarenta e um anos. e ainda acredito que foi o meu pai que me deu aquele pequenino empurrão que faltava – tenho muitas saudades tuas – ficaram tantas coisas por dizer – a juventude é o nosso melhor tempo de vida. sobretudo para quem nada falta. que era o meu caso. mas trocaria tudo por mais uns anos a seu lado – eu ficaria mais adulto. saberia contar melhor o tempo. e teria mais tempo para te explicar o caminho que fiz – para ti seria igual – eras um ser de luz. e provavelmente ririas de todas as palermices que inventava

 


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