.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/01/2012

a boca fechada



 annibale carracci


o cadáver acontece – sem palavra. insignificante. inofensivo. imóvel.  inocente. indiferente – tudo agora está escuro – onde não há palavra não há ruído – as mãos deixaram de escrever. estão cruzadas. a imaginação suspendeu-se. fixou-se num ponto inventado. o verbo é agora pretérito perfeito misturado com silêncio – no fato preto. a cor de toda a minha vida – os olhos fechados. não sei a cor da gravata. nem quem a escolheu. pode ter sido tirada à sorte daquela última gaveta do guarda-vestidos. sei que o nó é grosso. sufocante. estranho. falta-me o ar. talvez seja das tábuas. estão tão juntas aos cotovelos – a boca fechada. presa nos lábios. a cola – colaram-me os lábios. obrigaram-me ao silêncio. agora nunca mais posso dizer: olá. como estás – sem palavra não sirvo para nada. não sou vento. nem gaivota. nem desespero. nem lágrima. sem palavras não se fazem lágrimas – será que alguém teve medo que eu dissesse alguma coisa desagradável. talvez um amigo amedrontado. sabem que há palavras que matam mais do que a própria morte – passei a vida a dizer que não sabia falar. mas assim. fechada? com cola? não era preciso – nunca imaginei que a morte assentasse na falta de palavra – falava com gestos. sempre foi assim. os braços para trás e para a frente. a correrem como loucos. os olhos caídos no chão como piões rodavam entre as pernas também elas desconsoladas por nunca saberem o caminho do corpo. e a boca sempre ali. morta por dizer o que nunca sabia dizer. só na cabeça as palavras faziam sentido. e dentro. a língua. as papilas gustativas. sempre a salivar por um verbo de amor –  só com o meu amor os beijos eram palavras. podia dizer amo-te sem gastar uma única palavra – que faço sem boca? que faço vestido de preto? que faço ao corpo velho. enrugado. triste. como sempre foi. perdido. escondido em projetos. em esboços. viagens – nunca saía de dentro do meu corpo – abram-me a boca. deixem entrar o ar mesmo que esteja frio. mesmo que nos côncavos olhos já não veja os lugares onde me sentei a sorrir. aquela rocha voltada para o mar. na póvoa do varzim. onde pela primeira vez falei com as gaivotas – que dia: o céu cinza. o mar cinza. as gaivotas cinzas. tudo estava cinza. os pescadores em terra cosiam as redes em roupa cinza. e as ondas de agosto abafavam o ruído das pessoas no passeio alegre – e eu ali. com um agosto jovem. sem nada saber de oceanos. só mais tarde descobri que o mar lava a alma. mas também a afoga – sozinho. nem ninfa. apenas as gaivotas. voavam-me em círculos sobre mim. como abutres.  já sabiam que mais tarde ou mais cedo a boca seria a minha morte – não é uma questão de falar convosco. aqui já nada me resta a dizer. mas para onde vou. donde venho. o que fiz. ou o que gostaria de ter feito – pensando bem também não sei donde venho. nem o que fiz. ou o que gostaria de ter feito – há tantas coisas em mim que nunca soube escolher. hoje queria uma coisa. amanhã outra – talvez não precise da boca. talvez tenha dito tudo que é permitido a um homem preso a um corpo que nunca para de estar quieto – não sei falar – mesmo com a boca fechada não tenho silêncio dentro de mim. nunca tive. há sempre barulho. alguém a querer dizer: tu não és tu – se nunca sou eu. para que serve viver? – não há forma de manter o corpo dentro da cabeça e rebolar até aos pés dos que me percebem – preciso de silêncio – ser cadáver em vida é uma complicação sem nome – quero desaparecer sem que ninguém repare




20/01/2012

então até já



van gogh


tempo moderno. no homem a máquina e na máquina o homem – os antepassados não compreenderiam. eu. também passado. ou quase. compreendo porque ouço vozes a dizer: está tudo bem. correu tudo bem. a pedra foi dinamitada – raios de pedra. implodiu dentro de mim. onde moram outros eus: a família. os amigos. os abraços. os cumprimentos. e aqueles que transformam um simples bom dia numa viagem ao tempo dos bisavós – antigamente. bom dia era unicamente educação – pum. momentaneamente deitamos as mãos aos ouvidos. a implosão é sempre uma explosão para os tímpanos – ouvi dizer que os ouvidos estão presos ao coração por lágrimas que ainda não foram choradas – mas não. o barulho era enganador. traumas do que ouvimos noutras vidas – aqui. é festa. é garrafa de dom pérignon. explodiu de alegria enquanto do céu caiam mil confeitos. mil  cores. há quem diga que são lágrimas secas. outros. com mais fé. dizem que são sorrisos de quem o espera no passeio da foz – ainda há mar para ver. e um rim finalmente em descanso

 


19/01/2012

vasco graça moura - nó cego. o regresso



                                                                    vasco graça moura



nó cego, o regresso

(...)
 

XVII

como meter o mundo
num poema? traduzir-lhe
a áspera realidade, a doçura
intranquila?


como meter o trabalho
dos homens, os seus dias,
nessas escassas linhas,
seus ócios, seus espelhos,


seus desvarios, suas
catástrofes de amor?
como meter a morte
nas palavras?


só que uma coisa bela
é para sempre uma alegria inquieta.

(...)



11/01/2012

o senhor do pulmão único



théodore géricault



o mar traz no cimo das ondas gaivotas enlouquecidas. até aquela cinzenta que vive dentro do meu único pulmão. a única capaz de transformar o caos em confiança – este pulmão comprei-o a um fidalgo que vagueia dentro de mim – foi com ele que percebi um sofrimento em mim que nunca iria compreender – é um homem distinto. alto. elegante. usa cartola. luvas de pelica e um lenço branco. delicadamente recortado. que escapa do bolso do casaco negro de caxemira. combina com a camisa branca. engomada e de seda pura. na extremidade das mangas uns botões de punho em ouro com caveiras encastradas. no dedo anelar. um anel idêntico. enorme. com a mesma caveira em alto relevo. sela as cartas confidenciais com o lacre da sua própria vida. que se consome a cada palavra escrita – nunca percebi para quem escreve. talvez para um familiar perdido em algum canto remoto de mim e que ainda desconheça – caminha preso à bengala que marca os passos. sempre exatos. ritmados. como se seguisse uma partitura invisível. talvez marcha militar. nem depressa. nem devagar. as pernas andam apenas porque andam. move-se apenas para nunca estar parado. talvez não goste de nenhuma parte do corpo que lhe dá guarida. ou então. precisa de movimento para manter as costas direitas. sempre perpendiculares ao sentido de tudo que me passa pela cabeça. como os pêndulos dos relógios. que oscilam em paredes vazias. marcando um tempo que avança mesmo sem ponteiros – os sapatos. ah. os sapatos de atacadores brilham. não sei se são novos ou apenas bem engraxados. mas brilham. brilham como nada mais em mim brilha. como os olhos dos meus amigos. como as mãos que me cumprimentam. brilham como os castiçais que seguram velas insistentes em alumiar o que já se apagou. brilham como as palavras escritas nas paredes em que me encosto para descansar os pés que me suportam – este cavalheiro. importante. continuo a pensar eu. anda sempre de um lado para o outro. um dia aqui. outro ali. sempre sugando o ar. indiferente. que lhe invade a boca em gritos – este “gentlemen”. creio que deve ser de descendência britânica. nunca se atrasa. àquela hora ali está. batendo ritmadamente a sua bengala num órgão qualquer – agora percebo que a dor não me pertence. nem a vida – um dia faço algo que o desagrade. e zás. pancada final – acredito que é para isso que vive dentro do meu único pulmão – até que um dia. impaciente. simplesmente diz: acabou-se o tempo