o cadáver
acontece – sem palavra. insignificante. inofensivo. imóvel. inocente. indiferente – tudo agora está escuro
– onde não há palavra não há ruído – as mãos deixaram de escrever. estão
cruzadas. a imaginação suspendeu-se. fixou-se num ponto inventado. o verbo é agora
pretérito perfeito misturado com silêncio – no fato preto. a cor de toda a
minha vida – os olhos fechados. não sei a cor da gravata. nem quem a escolheu.
pode ter sido tirada à sorte daquela última gaveta do guarda-vestidos. sei que
o nó é grosso. sufocante. estranho. falta-me o ar. talvez seja das tábuas.
estão tão juntas aos cotovelos – a boca fechada. presa nos lábios. a cola –
colaram-me os lábios. obrigaram-me ao silêncio. agora nunca mais posso dizer:
olá. como estás – sem palavra não sirvo para nada. não sou vento. nem gaivota.
nem desespero. nem lágrima. sem palavras não se fazem lágrimas – será que
alguém teve medo que eu dissesse alguma coisa desagradável. talvez um amigo
amedrontado. sabem que há palavras que matam mais do que a própria morte – passei
a vida a dizer que não sabia falar. mas assim. fechada? com cola? não era
preciso – nunca imaginei que a morte assentasse na falta de palavra – falava
com gestos. sempre foi assim. os braços para trás e para a frente. a correrem
como loucos. os olhos caídos no chão como piões rodavam entre as pernas também
elas desconsoladas por nunca saberem o caminho do corpo. e a boca sempre ali. morta
por dizer o que nunca sabia dizer. só na cabeça as palavras faziam sentido. e
dentro. a língua. as papilas gustativas. sempre a salivar por um verbo de amor
– só com o meu amor os beijos eram
palavras. podia dizer amo-te sem gastar uma única palavra – que faço sem boca?
que faço vestido de preto? que faço ao corpo velho. enrugado. triste. como
sempre foi. perdido. escondido em projetos. em
esboços. viagens – nunca saía de dentro do meu corpo – abram-me a boca. deixem
entrar o ar mesmo que esteja frio. mesmo que nos côncavos olhos já não veja os
lugares onde me sentei a sorrir. aquela rocha voltada para o mar. na póvoa do
varzim. onde pela primeira vez falei com as gaivotas – que dia: o céu cinza. o
mar cinza. as gaivotas cinzas. tudo estava cinza. os pescadores em terra cosiam
as redes em roupa cinza. e as ondas de agosto abafavam o ruído das pessoas no
passeio alegre – e eu ali. com um agosto jovem. sem nada saber de oceanos. só
mais tarde descobri que o mar lava a alma. mas também a afoga – sozinho. nem ninfa.
apenas as gaivotas. voavam-me em círculos sobre mim. como abutres. já sabiam que mais tarde ou mais cedo a boca
seria a minha morte – não é uma questão de falar convosco. aqui já nada me
resta a dizer. mas para onde vou. donde venho. o que fiz. ou o que gostaria de
ter feito – pensando bem também não sei donde venho. nem o que fiz. ou o que
gostaria de ter feito – há tantas coisas em mim que nunca soube escolher. hoje
queria uma coisa. amanhã outra – talvez não precise da boca. talvez tenha dito
tudo que é permitido a um homem preso a um corpo que nunca para de estar quieto
– não sei falar – mesmo com a boca fechada não tenho silêncio dentro de mim.
nunca tive. há sempre barulho. alguém a querer dizer: tu não és tu – se nunca
sou eu. para que serve viver? – não há forma de manter o corpo dentro da cabeça
e rebolar até aos pés dos que me percebem – preciso de silêncio – ser cadáver
em vida é uma complicação sem nome – quero desaparecer sem que ninguém repare
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
26/01/2012
a boca fechada
annibale carracci
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário