.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

04/02/2012

il mangiatore di fagioli



annibale carracci - il mangiatore di fagioli


pergunto-me: para onde estará a olhar o homem? não sei. não é possível saber. o artista esqueceu-se de o deixar anotado – era tão fácil. uma nota de rodapé bastava para que este meu dia nunca tivesse acontecido – agora estou aqui. perdido em conjeturas que nunca terão valor académico – sinto-me também um quadro: sem lógica. irracional. sem cores. linhas. contornos. sombras. dobras. estilo. iluminação. sem nada. vazio. perdido no branco da tela ainda virgem –  nunca serei um rococó – sou imaginação e a imaginação não é nada aos olhos do desconhecido – olho. olho e volto a olhar a pintura e não sei o que vejo naqueles olhos negros – sei apenas o que o pintor quis revelar: um homem do povo. chapéu de palha. unhas sujas dentro de mãos rudes. um corpo que sobrevive do que faz – o que teria levado carraci a pintar um homem do povo? o que escondia este homem dentro de si de tão importante que obrigasse um artista a pegar nos pincéis e a dizer: tu viajarás comigo para a eternidade. habitarás os salões das mansões e compartilharás da companhia dos nobres. dos condes. das baronesas. dos príncipes. das rainhas. da arcádia e suas paisagens ideais –  serás para sempre o meu homem. o comedor de feijões – o pão amarrado à mão. preso pela força do pulso como se dissesse: este é meu. trabalhei por ele. tenho direito a ele. todo o homem que trabalha tem direito ao seu pão – toalha branca. camisa branca e a jarra de vinho em tons pastel. rasgada por uns traços finos de quem. um dia. quer ser cor forte – na mesa a fé. o pão diz-me: estou aqui. não se esqueçam de que eu e o vinho fazemos a ceia do senhor – havia esperança no cimo daquela mesa. havia futuro – às vezes gosto de imaginar que este homem é uma fraude. uma invenção do pintor. não é um jornaleiro. não é um trabalhador do campo substituindo a carne por um prato de leguminosas – não. este homem é um amigo veneziano seu. comerciante rico. encomendou-lhe o trabalho apenas para divertimento do seu excêntrico ego – talvez naquele tempo já houvesse uma espécie de carnaval veneziano e o seu amigo gostasse de se vestir como um carrejão das docas – quem sabe. talvez fosse um nobre descendente dos fundadores do condado de bolonha. ganancioso como quase todos os ricos e poderosos. o prazer vinha-lhe dos longos passeios de revista pelas suas terras. terras estas que se perdiam de vista. muito para além do rio pó. e entregues aos cuidados de gente que trabalhava de sol a sol. gente da terra – jornada sempre cansativa. não estava habituado a grandes esforços. parava para almoçar num dos seus muitos caseiros – em frente dele a família que o acolhia observava atentamente o seu amo enquanto comia – a um canto da sala. um casal; da cinta ao solo de terra batida. a certeza de que os campos continuarão a florir. meia dúzia de filhos. alinhados pelo tempo de espera. escutam em silêncio o barulho da boca a sorver os feijões. talvez quentes. talvez frios. digo eu –  só o barulho da lenha. a queimar a panela de ferro negro. competia com o ranger das mãos a rasgar o pão – aquele olhar arrasta de dentro de si um silêncio de medo – dentro daqueles pequenos olhos pretos quero ler: por que estais aí especados a olhar-me se apenas estou a comer a minha comida? gosto de imaginar o encontro dos olhos. os que o artista pintou para me afligir no comedor de feijões. e aqueles que quero alcançar. e que o pintor plantou dentro da minha imaginação – imagino então. sabendo que nada no quadro mudará com a minha imaginação.  mesmo que dentro dos meus olhos veja os olhos de uma família humilde. honrada pelo trabalho. parada no canto da sala. deprecada em clemência silenciosa. enquanto dentro do seu corpo cintilava o orgulho e honra por ter na sua casa o homem mais poderoso da região – gosto de imaginar: o que seria de um escritor sem imaginação? por isso é que quero ainda poder ver a mulher do jornaleiro parada em frente à mesa. olhos no chão. à espera. imóvel. que o seu senhor termine a refeição – ou ainda. uns olhos acabados já no tempo do romantismo. imagino o comedor de feijões. a meter a colher à boca. quando. num súbito bater de asas. um passarinho entra pela porta e. de bicada em bicada. apanha as últimas migalhas de um dia que talvez fosse especial para aquele lar. e o homem. assustado pela aparição do belo. não conseguiu esconder o espanto dos olhos – também eu pinto. não era minha intenção substituir o carracci nesta vontade de dar cor à minha folha de papel – para ser franco. não sei exatamente o que quero imaginar. às vezes quero apenas inventar novas tintas – misturo-as. volto a misturar. e vejo uma nova cor – agora estou a ver a jarra pintada de lilás triste – na minha cabeça. quero apenas criar quadros como no iluminismo. um movimento de ideias capaz de reformular conceitos erradamente predeterminados. os mesmos que trouxeram este mundo até aqui – pintar um jornaleiro na época não era normal. talvez o artista quisesse ser diferente e dar um murro na mesa das elites – ou então. carregado de dívidas. com os impostos em atraso. com o subsídio de férias e de natal cortados e em graves dificuldades económicas. tenha vendido a sua alma ao poder do capital – carracci sabia que este homem. disfarçado de tragédia. era apenas uma manobra de marketing de um dos senhores poderosos da região. quis mostrar que a vida estava má para todos. que era necessário fazer sacrifícios. cortar custos. reduzir despesas. tornar tudo mais competitivo neste mundo que agora começa a ser global – quem sabe. o pobre jornaleiro. aquele que não aparece no quadro. tenha sido despedido. extinção do posto de trabalho – a esperança está naquele naco de luz que o pintor deixou penetrar no tempo daquela gurita pendurada ao ombro do jornaleiro. protegida por uma cruz de quem sabe que a vida é sofrimento – o tempo nada trouxe de novo. para quem trabalha. nada mudou. tudo se repete – para a história fica apenas o pintor e o seu comedor de feijões 



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