pergunto-me:
para onde estará a olhar
o homem? não sei. não é possível saber. o artista esqueceu-se de o deixar
anotado – era tão fácil. uma nota de rodapé bastava para que este meu dia nunca
tivesse acontecido – agora estou aqui. perdido em conjeturas que nunca terão valor
académico – sinto-me também um quadro: sem lógica. irracional. sem cores.
linhas. contornos. sombras. dobras. estilo. iluminação. sem nada. vazio.
perdido no branco da tela ainda virgem –
nunca serei um rococó – sou imaginação e a imaginação não é nada aos
olhos do desconhecido – olho. olho e volto a olhar a pintura e não sei o que
vejo naqueles olhos negros – sei apenas o que o pintor quis revelar: um homem
do povo. chapéu de palha. unhas sujas dentro de mãos rudes. um corpo que
sobrevive do que faz – o que teria levado carraci a pintar um homem do povo? o
que escondia este homem dentro de si de tão importante que obrigasse um artista
a pegar nos pincéis e a dizer: tu viajarás comigo para a eternidade. habitarás
os salões das mansões e compartilharás da companhia dos nobres. dos condes. das
baronesas. dos príncipes. das rainhas. da arcádia e suas paisagens ideais
– serás para sempre o meu homem. o
comedor de feijões – o pão amarrado à mão. preso pela força do pulso como se
dissesse: este é meu. trabalhei por ele. tenho direito a ele. todo o homem que
trabalha tem direito ao seu pão – toalha branca. camisa branca e a jarra de
vinho em tons pastel. rasgada por uns traços finos de quem. um dia. quer ser
cor forte – na mesa a fé. o pão diz-me: estou aqui. não se esqueçam de que eu e
o vinho fazemos a ceia do senhor – havia esperança no cimo daquela mesa. havia
futuro – às vezes gosto de imaginar que este homem é uma fraude. uma invenção
do pintor. não é um jornaleiro. não é um trabalhador do campo substituindo a
carne por um prato de leguminosas – não. este homem é um amigo veneziano seu.
comerciante rico. encomendou-lhe o trabalho apenas para divertimento do seu
excêntrico ego – talvez naquele tempo já houvesse uma espécie de carnaval
veneziano e o seu amigo gostasse de se vestir como um carrejão das docas – quem
sabe. talvez fosse um nobre descendente dos fundadores do condado de bolonha.
ganancioso como quase todos os ricos e poderosos. o prazer vinha-lhe dos longos
passeios de revista pelas suas terras. terras estas que se perdiam de vista.
muito para além do rio pó. e entregues aos cuidados de gente que trabalhava de
sol a sol. gente da terra – jornada sempre cansativa. não estava habituado a
grandes esforços. parava para almoçar num dos seus muitos caseiros – em frente
dele a família que o acolhia observava atentamente o seu amo enquanto comia – a
um canto da sala. um casal; da cinta ao solo de terra batida. a certeza de que
os campos continuarão a florir. meia dúzia de filhos. alinhados pelo tempo de
espera. escutam em silêncio o barulho da boca a sorver os feijões. talvez
quentes. talvez frios. digo eu – só o
barulho da lenha. a queimar a panela de ferro negro. competia com o ranger das
mãos a rasgar o pão – aquele olhar arrasta de dentro de si um silêncio de medo
– dentro daqueles pequenos olhos pretos quero ler: por que estais aí especados
a olhar-me se apenas estou a comer a minha comida? gosto de imaginar o encontro
dos olhos. os que o artista pintou para me afligir no comedor de feijões. e
aqueles que quero alcançar. e que o pintor plantou dentro da minha imaginação –
imagino então. sabendo que nada no quadro mudará com a minha imaginação. mesmo que dentro dos meus olhos veja os olhos
de uma família humilde. honrada pelo trabalho. parada no canto da sala.
deprecada em clemência silenciosa. enquanto dentro do seu corpo cintilava o
orgulho e honra por ter na sua casa o homem mais poderoso da região – gosto de
imaginar: o que seria de um escritor sem imaginação? por isso é que quero ainda
poder ver a mulher do jornaleiro parada em frente à mesa. olhos no chão. à
espera. imóvel. que o seu senhor termine a refeição – ou ainda. uns olhos acabados
já no tempo do romantismo. imagino o comedor de feijões. a meter a colher à
boca. quando. num súbito bater de asas. um passarinho entra pela porta e. de
bicada em bicada. apanha as últimas migalhas de um dia que talvez fosse
especial para aquele lar. e o homem. assustado pela aparição do belo. não
conseguiu esconder o espanto dos olhos – também eu pinto. não era minha
intenção substituir o carracci nesta vontade de dar cor à minha folha de papel
– para ser franco. não sei exatamente o que quero imaginar. às vezes quero
apenas inventar novas tintas – misturo-as. volto a misturar. e vejo uma nova
cor – agora estou a ver a jarra pintada de lilás triste – na minha cabeça.
quero apenas criar quadros como no iluminismo. um movimento de ideias capaz de
reformular conceitos erradamente predeterminados. os mesmos que trouxeram este
mundo até aqui – pintar um jornaleiro na época não era normal. talvez o artista
quisesse ser diferente e dar um murro na mesa das elites – ou então. carregado
de dívidas. com os impostos em atraso. com o subsídio de férias e de natal
cortados e em graves dificuldades económicas. tenha vendido a sua alma ao poder
do capital – carracci sabia que este homem. disfarçado de tragédia. era apenas
uma manobra de marketing de um dos senhores poderosos da região. quis mostrar
que a vida estava má para todos. que era necessário fazer sacrifícios. cortar
custos. reduzir despesas. tornar tudo mais competitivo neste mundo que agora
começa a ser global – quem sabe. o pobre jornaleiro. aquele que não aparece no
quadro. tenha sido despedido. extinção do posto de trabalho – a esperança está
naquele naco de luz que o pintor deixou penetrar no tempo daquela gurita
pendurada ao ombro do jornaleiro. protegida por uma cruz de quem sabe que a
vida é sofrimento – o tempo nada trouxe de novo. para quem trabalha. nada
mudou. tudo se repete – para a história fica apenas o pintor e o seu comedor de
feijões
.................................................................................não tirem o vento às gaivotas
04/02/2012
il mangiatore di fagioli
annibale carracci - il mangiatore di fagioli
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