há uma dor enorme a
pagar para quem procura o conforto na verdade dos factos – felicidade –
procurar a satisfação terrena é dor. luta. agonia. vómito. insónia. medo. mal-estar
generalizado pelo corpo. ressaca. aperto. e os dias sempre a seguir uns atrás
dos outros. a dor nunca é habituação. não sara a mente. nem as mãos que querem
escrever sossego – este conforto nunca
será escrito em palavras. não tenho arte suficiente para o fazer – e tudo dói.
e como dói. e onde dói. e dói em tanto de mim que já sou só desassossego – dói
como quando usamos sapatos novos. e na face o sorriso. e o andar torto. e o
lábio a contrair. e dentro da cabeça uma vontade enorme de libertar o corpo de
dentro daquele aperto. que ao princípio era aflição e agora é desespero – e
quem olha somente vê o brilho do sapato. firme nas formas. novo. e o cheiro a
couro entranhado nos pés. os atacadores enlaçados com arte. esticados para este
e oeste. e o corpo no norte a olhar o sul e tudo feito como se de um embrulho
de oferta se tratasse – presente envenenado. não há vida sem liberdade. não há
vida para os oprimidos. não há vida na dor. não há vida nos corpos castrados do
livre arbítrio – quero morrer em paz – mas tudo por dentro é como é. como
sempre foi. e se um dia rio. noutro choro. se um dia faço nascer a esperança. noutro
logo a enforco com a laçada de uma corda que não para de pensar – e nunca tenho
razão. toda a razão precisa de um homem bobo. e clarice a dizer: “o bobo, por
não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é
capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que
não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando. Ser bobo
às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por
meio da esperteza, e o bobo tem originalidade”. e os pés inchados. as unhas
encravadas. as bolhas nos calcanhares. cada passo maior que um quilómetro. e a
dor a crescer até à boca. torcida. e depois os olhos semifechados. e a face a
enrodilhar em sofrimento. e o desânimo ali e aqui. e tudo o que era perto é
agora impossível de alcançar – tempo – necessitamos de tempo para amaciar os
sapatos. e a vida sempre a doer – demora uma vida. e toda a vida é sacrifício.
e o meu sapato não se deforma. e o corpo de hoje é igual ao de ontem – o
sujeito sou eu – neste corpo. não precisa de complemento direto. o verbo é
determinante. forte o suficiente para que só as mãos saibam falar. como se em
cada dedo houvesse uma boca com alma e tudo o resto amarrado a um corpo dentro
de um sapato
27/05/2012
a insustentável ferida dos dias
15/05/2012
regresso
hoje. o
antero de quental. (*) vai de asas abertas - as palavras voarão com destino a
lisboa. depois outro destino. e outro. e outro. que mais pode querer um poeta
senão que o seu nome seja um nome do mundo - eu só quero chegar a casa. não sou
poeta. sou pai e filho. e o meu mundo é este. e acreditem que é enorme
11/05/2012
esta gente sempre tão igual
esta gente tão fria. tão sem nada. e eu perdido neste modo de vida que não é o meu - gostava de saber se somos mesmo melhores. e se. por via disso. somos assim: quentes. cheios de gestos. onde as palavras nascem debaixo dos dedos. dos olhos. dos lábios. do toque. no vento que fazemos ao imaginar formas de fazer feliz quem nos ouve – gostava de saber – dói estar sozinho nesta dúvida maldita – e eles a dizer que nós somos sol. e eu a olhar para lá deste mar que faz de nós marinheiros em terra. sem porto de mar - hoje jurei que vi uma gaivota. uma cinzenta. amiga. não queria acreditar - percebi. voava sobre um grupo de brasileiros – tenho que partir rapidamente de munique
09/05/2012
ser português
não há
fado que faça nestes homens grandes e loiros o vento sul a chamar um abraço –
esta gente veio do frio. dos dias sem sol. das noites sem luz e nada sabe sobre
a palavra saudade – somos nós. com as nossas bocas plantadas numa praia
lusitana. o mar é a nossa porta de entrada para quem vier por bem – somos
assim. somos abraço. gesto. carinho. somos défice e dor. somos. quase sempre. assim assim. mas
também somos fado cantado por um luís que. sem um olho. via para além de
taprobana – somos gente de um país pequeno. mas caminhamos generosos. em bicos
de pés. como bailarinas. dançamos e encantamos os dias com o rodar dos corpos.
e dizemos: somos nação valente e imortal – vamos recuperar o orgulho lusitano.
somos gente boa e corajosa – hoje. sou imensamente português
09 de maio de 2012 – munique
04/05/2012
as pedras não têm dor
e
eu aqui penso. aqui.
onde o certo e o incerto nascem. onde a dúvida e a certeza gozam dos mesmos
privilégios e deveres: o corpo nunca satisfeito – os antigos acreditavam que tudo
vinha do coração. eu. sempre racional a esta hora da noite. sei que o vómito
vem do próprio cérebro – por isso esta dor de cabeça que me come o corpo por
inteiro – não compreendo por que não sou capaz de ignorar esta dor que não
deveria ser dor. ser hábito – talvez defeito de ser humano – mas nem todos os
seres humanos são humanos – os humanos que conheço têm uma veia que vai do
coração à cabeça. a dor. mergulhada em sangue. desagua no cérebro em forma de
delta. ramifica-se em canais distorcidos pela força da corrente – nos seus extremos
os detritos lutam por um lugar seguro na razão – empírico – o coração com o
passar do tempo já não filtra todas as impurezas. cansado? não. apenas defeituoso.
sempre foi assim – o coração dói. não há médico que o cure. nem viagem que o
distraia. dói porque dói. dói porque bate. dói porque é nele que existo. vivo
em dor e em dor idílica escrevo – romântico? estou certo que sim. é no coração
que deito os olhos – interrogo-me se conheço a raça humana. e a resposta é que
conheço alguns humanos. gosto deles porque a dor lhes dói onde me dói a minha dor – belo – por último coloco a
interrogação em mim e pergunto-me: conheces-te? não. não conheço. porque não
conheço todos os humanos. principalmente os humanos-pedra – se me conhecesse.
se me conhecesse mesmo bem. seria outro. outro humano. diferente deste que se
magoa com dores que não são de magoar. dor-pedra – as pedras não têm dor
clarice lispector - a hora da estrela
02/05/2012
necrologia
necrologia – na penúltima página do meu
jornal regional. diário do minho. os defuntos anunciam-se sempre pela mão dos
seus familiares – a mulher. filhos. noras e demais família têm o doloroso dever
de anunciar que este homem da foto. o saudoso. morreu. faleceu. finou-se.
foi-se. passou-se ao caralho. deu à soleta dos problemas – é nesta última que
me revejo. dar à soleta. pôr-me ao fresco – espero um dia falecer e levar
comigo tudo o que me aborrece desta vida terrena – poderei então dizer: apesar
da câmara ardente. finalmente uma notícia boa – a ironia. não ter tempo de a
saborear
01/05/2012
1º de maio: dia de tudo e de nada
1º
de maio. dia do
trabalhador. das palavras também. e das ideias. e das dores. e da morte. e do
riso. e do fogo. e do sol. e da água. e da terra. e do vento que engole
gaivotas pelo grito da garganta dos homens perdidos. sem casa. sem trabalho.
sem campo. sem mar. sem fábrica. sem pão. sem saúde. sem amigo. sem abraço. sem
fraternidade e sem sequer um instante para chorar – e eu aqui. escrevendo como
se a minha arte fosse palavra. não é. não é – é raiva pela minha incapacidade de
dirigir-me a deus e dizer-lhe que em criança acreditava na sua justiça – hoje.
homem. não acredito em nada. nem abril. nem novembro. nem cravo. nem em coisa alguma.
morto para a fé – definitivamente descrente. quero que este dia passe rápido. pelo
respeito ao meio milhão de desempregados do meu país. por aqueles que esperam e
nada encontram – que vai ser dos filhos do nosso mundo?