.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/05/2012

a insustentável ferida dos dias



pablo picasso


uma dor enorme a pagar para quem procura o conforto na verdade dos factos – felicidade – procurar a satisfação terrena é dor. luta. agonia. vómito. insónia. medo. mal-estar generalizado pelo corpo. ressaca. aperto. e os dias sempre a seguir uns atrás dos outros. a dor nunca é habituação. não sara a mente. nem as mãos que querem escrever sossego –  este conforto nunca será escrito em palavras. não tenho arte suficiente para o fazer – e tudo dói. e como dói. e onde dói. e dói em tanto de mim que já sou só desassossego – dói como quando usamos sapatos novos. e na face o sorriso. e o andar torto. e o lábio a contrair. e dentro da cabeça uma vontade enorme de libertar o corpo de dentro daquele aperto. que ao princípio era aflição e agora é desespero – e quem olha somente vê o brilho do sapato. firme nas formas. novo. e o cheiro a couro entranhado nos pés. os atacadores enlaçados com arte. esticados para este e oeste. e o corpo no norte a olhar o sul e tudo feito como se de um embrulho de oferta se tratasse – presente envenenado. não há vida sem liberdade. não há vida para os oprimidos. não há vida na dor. não há vida nos corpos castrados do livre arbítrio – quero morrer em paz – mas tudo por dentro é como é. como sempre foi. e se um dia rio. noutro choro. se um dia faço nascer a esperança. noutro logo a enforco com a laçada de uma corda que não para de pensar – e nunca tenho razão. toda a razão precisa de um homem bobo. e clarice a dizer: “o bobo, por não se ocupar com ambições, tem tempo para ver, ouvir e tocar o mundo. O bobo é capaz de ficar sentado quase sem se mexer por duas horas. Se perguntado por que não faz alguma coisa, responde: "Estou fazendo. Estou pensando. Ser bobo às vezes oferece um mundo de saída porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade”. e os pés inchados. as unhas encravadas. as bolhas nos calcanhares. cada passo maior que um quilómetro. e a dor a crescer até à boca. torcida. e depois os olhos semifechados. e a face a enrodilhar em sofrimento. e o desânimo ali e aqui. e tudo o que era perto é agora impossível de alcançar – tempo – necessitamos de tempo para amaciar os sapatos. e a vida sempre a doer – demora uma vida. e toda a vida é sacrifício. e o meu sapato não se deforma. e o corpo de hoje é igual ao de ontem – o sujeito sou eu – neste corpo. não precisa de complemento direto. o verbo é determinante. forte o suficiente para que só as mãos saibam falar. como se em cada dedo houvesse uma boca com alma e tudo o resto amarrado a um corpo dentro de um sapato



15/05/2012

regresso




antero de quental - lisboa


hoje. o antero de quental. (*) vai de asas abertas - as palavras voarão com destino a lisboa. depois outro destino. e outro. e outro. que mais pode querer um poeta senão que o seu nome seja um nome do mundo - eu só quero chegar a casa. não sou poeta. sou pai e filho. e o meu mundo é este. e acreditem que é enorme




11/05/2012

esta gente sempre tão igual




adolf eberle


esta gente tão fria. tão sem nada. e eu perdido neste modo de vida que não é o meu - gostava de saber se somos mesmo melhores. e se. por via disso. somos assim: quentes. cheios de gestos. onde as palavras nascem debaixo dos dedos. dos olhos. dos lábios. do toque. no vento que fazemos ao imaginar formas de fazer feliz quem nos ouve – gostava de saber – dói estar sozinho nesta dúvida maldita – e eles a dizer que nós somos sol. e eu a olhar para lá deste mar que faz de nós marinheiros em terra. sem porto de mar - hoje jurei que vi uma gaivota. uma cinzenta. amiga. não queria acreditar - percebi. voava sobre um grupo de brasileiros – tenho que partir rapidamente de munique 



09/05/2012

ser português



max scheler - filósofo alemão



não há fado que faça nestes homens grandes e loiros o vento sul a chamar um abraço – esta gente veio do frio. dos dias sem sol. das noites sem luz e nada sabe sobre a palavra saudade – somos nós. com as nossas bocas plantadas numa praia lusitana. o mar é a nossa porta de entrada para quem vier por bem – somos assim. somos abraço. gesto. carinho. somos défice  e dor. somos. quase sempre. assim assim. mas também somos fado cantado por um luís que. sem um olho. via para além de taprobana – somos gente de um país pequeno. mas caminhamos generosos. em bicos de pés. como bailarinas. dançamos e encantamos os dias com o rodar dos corpos. e dizemos: somos nação valente e imortal – vamos recuperar o orgulho lusitano. somos gente boa e corajosa – hoje. sou imensamente português

 

09 de maio de 2012  – munique



04/05/2012

as pedras não têm dor



paul cadden 


e eu aqui penso. aqui. onde o certo e o incerto nascem. onde a dúvida e a certeza gozam dos mesmos privilégios e deveres: o corpo nunca satisfeito – os antigos acreditavam que tudo vinha do coração. eu. sempre racional a esta hora da noite. sei que o vómito vem do próprio cérebro – por isso esta dor de cabeça que me come o corpo por inteiro – não compreendo por que não sou capaz de ignorar esta dor que não deveria ser dor. ser hábito – talvez defeito de ser humano – mas nem todos os seres humanos são humanos – os humanos que conheço têm uma veia que vai do coração à cabeça. a dor. mergulhada em sangue. desagua no cérebro em forma de delta. ramifica-se em canais distorcidos pela força da corrente – nos seus extremos os detritos lutam por um lugar seguro na razão – empírico – o coração com o passar do tempo já não filtra todas as impurezas. cansado? não. apenas defeituoso. sempre foi assim – o coração dói. não há médico que o cure. nem viagem que o distraia. dói porque dói. dói porque bate. dói porque é nele que existo. vivo em dor e em dor idílica escrevo – romântico? estou certo que sim. é no coração que deito os olhos – interrogo-me se conheço a raça humana. e a resposta é que conheço alguns humanos. gosto deles porque a dor lhes dói onde me  dói a minha dor – belo – por último coloco a interrogação em mim e pergunto-me: conheces-te? não. não conheço. porque não conheço todos os humanos. principalmente os humanos-pedra – se me conhecesse. se me conhecesse mesmo bem. seria outro. outro humano. diferente deste que se magoa com dores que não são de magoar. dor-pedra – as pedras não têm dor



clarice lispector - a hora da estrela




clarise lispector

"Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. Que ninguém se engane, só consigo a simplicidade através do meu trabalho. Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-pré-história já havia monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos - sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável."



02/05/2012

necrologia



caravaggio


necrologia – na penúltima página do meu jornal regional. diário do minho. os defuntos anunciam-se sempre pela mão dos seus familiares – a mulher. filhos. noras e demais família têm o doloroso dever de anunciar que este homem da foto. o saudoso. morreu. faleceu. finou-se. foi-se. passou-se ao caralho. deu à soleta dos problemas – é nesta última que me revejo. dar à soleta. pôr-me ao fresco – espero um dia falecer e levar comigo tudo o que me aborrece desta vida terrena – poderei então dizer: apesar da câmara ardente. finalmente uma notícia boa – a ironia. não ter tempo de a saborear  




01/05/2012

1º de maio: dia de tudo e de nada



                                                                 pieter bruegel


1º de maio. dia do trabalhador. das palavras também. e das ideias. e das dores. e da morte. e do riso. e do fogo. e do sol. e da água. e da terra. e do vento que engole gaivotas pelo grito da garganta dos homens perdidos. sem casa. sem trabalho. sem campo. sem mar. sem fábrica. sem pão. sem saúde. sem amigo. sem abraço. sem fraternidade e sem sequer um instante para chorar – e eu aqui. escrevendo como se a minha arte fosse palavra. não é. não é – é raiva pela minha incapacidade de dirigir-me a deus e dizer-lhe que em criança acreditava na sua justiça – hoje. homem. não acredito em nada. nem abril. nem novembro. nem cravo. nem em coisa alguma. morto para a fé – definitivamente descrente. quero que este dia passe rápido. pelo respeito ao meio milhão de desempregados do meu país. por aqueles que esperam e nada encontram – que vai ser dos filhos do nosso mundo?