arranquei os
olhos e guardei-os dentro de uma lata à prova de dor. à prova de som. à prova
da luz. à prova de mim – sentei-me de costas para a vida e ali fiquei. a ver-me
pelos buracos dos olhos – pousei as mãos em cima dos joelhos. armei os braços.
e encostei o pescoço ao peito – ouço agora o coração. não sei se bate depressa
ou devagar. não sei. sei apenas que bate – sempre pensei saber tudo sobre o
bater do coração. mas enganei-me. perdi-me por partes do corpo que julgava
essenciais e afinal não serviam para nada. cresci em dias que corriam. onde fabricava
palavras para justificar a vida que desperdiçava – enganava-me com o tamanho
dos dias. eles encolhem a cada vez que desperdiçamos um segundo – e o corpo sempre
a crescer. só os pés não cresciam e o equilíbrio mais difícil. e o coração a
bater. sorte. azar. sorte. azar. sorte. azar. azar – a face a mudar a cada
sorriso perdido. junto com gente que também acabei por perder. e a barba a
crescer. e a vontade de ser cada vez maior sufocava o sentido de cada coisa no
seu lugar – o dezoito passa sempre às meias horas – aos meus olhos veio. pausadamente.
o motorista. dono do volante. mas não do destino. e o corpo à espera da
velocidade da luz – tudo é tão rápido – toda a vida se faz na partida. nunca na
chegada. naquele ir e nunca voltar atrás – e os travões deslaçados. e o pé a
acelerar. e as casas a ficar para trás. e gente a vir e eu sempre a ir. e as
paragens aos gritos a dizer: sai aqui. sai aqui. e a mão na campainha a pensar:
toca. não toca. saio. não saio. e dentro de mim nenhuma voz a dizer: fica.
fica. ainda há tanto para viver – o lugar certo das coisas não existia. e todas
as estradas vão dar a roma. o céu cheio de estrelas. o mar com gaivotas livres.
com asas do tamanho dos meus sonhos. e a liberdade disfarçada de coisa nenhuma
e tudo o que faço está bem feito. tudo posso fazer. tudo eu sou. e a força
superior ao sansão e o cabelo a chegar às nádegas – e o corpo a correr para a
frente. sem medo. sem destino. sem juízo. sem nada. e a vida era feita de gente
imortal que comigo corria e gritava: somos eternos
26/06/2012
à prova de mim
20/06/2012
sr. antónio
faz já algum tempo comprei o último livro
de crónicas do lobo antunes. vinha com um CD onde o próprio autor lê algumas
das suas crónicas – quando o ouço. tudo é desarrumação. confusão. agitação – aquela
voz rasga-me os tímpanos e o desgosto aparece: não sei escrever – agora também sabem
o que ouço nas viagens solitárias. quer dizer. nas viagens que eu e o sr.
antónio fazemos. eu carrego no acelerador. e o meu companheiro sempre a travar
– não o trato por dr. porque sei que ele prefere ser tratado por sr. antónio – e
as histórias gravadas dentro do meu corpo correm com o cd. sintonia. sinfonia.
e tudo é orquestra. e tudo é música. e o absurdo sou eu a viajar dentro de uma outra
viagem – a viagem é conhecida. uma parte do corpo em alerta. enfrenta as curvas
com as mãos no volante. e o ouvido na convicção de que a voz do CD não se
calará nunca. e por cada segundo falado. a certeza das tossidelas. das
hesitações da voz. das pausas. e até o ruído de fundo das ambulâncias a gritar
por socorro – ele é de carne e osso – há milagres que não sei explicar – e é
aqui que me agarro à fé que me ensinaram a ter – lourdes. a minha segunda mãe. nome
herdado da nossa senhora de lourdes francesa. sempre manteve uma amizade intensa
com o divino e seus seguidores – não há anjo ou santo que não saiba que ela vive
comigo. não há noite em que. entre um pai nosso e uma avé maria. não caia aos
pés de um canonizado um pedido de proteção divina – lá em cima. alguém toma
conta de que se passa aqui em baixo. mais cedo ou mais tarde. tudo se paga. os
milagres só acontecem aos crentes – quase sou crente – incrivelmente o milagre
acontece. cada narrativa regata-me da mediania. e as palavras dentro de mim agitam-se.
alteram-se. crescem como se fossem um bailado russo. a lembrar rudolf nureyev –
e tudo dentro de mim é divinal – há um novo sentir das palavras. uma nova
descoberta. um terraço onde o fim do mundo fica adiado – afinal há outras vidas
para além da vida gravada naquela rodela de tecnologia – há um novo sentir das
palavras. uma nova descoberta. um terraço onde o fim do mundo fica adiado – e
aquela voz serena. mansa. pacata a fazer desarrumação – afinal há outras vidas para além da vida
gravada naquela rodela de tecnologia – afinal ainda não ouvi tudo o que tinha
para ouvir – será que alguma vez serei capaz de ouvir tudo? não creio – lobo
antunes é como o labirinto de creta. quando entramos dentro do seu texto. a
cada instante. somos devorados por um novo minotauro – felizmente lusitano – e.
agora. há dentro de mim um homem com raiva de não saber escrever. este silêncio
que ouço enquanto o ar desce aos pulmões. é o intervalo das palavras a nascer
na boca do sr. antónio. a trazer à vida
dos humanos o conhecimento – ai se eu soubesse apanhar este silêncio escrito
pelo antónio? separa a palavra do parágrafo. da vírgula. da interrogação. da
exclamação. e o meu corpo a tremer por nada saber escrever – e ele continua a
falar. e eu ali. escutando o que nunca tinha escutado. a felicidade presa à dor
do belo. e a comoção feita na descoberta de um novo caminho para cada leitura –
quando ouço lobo antunes sei que perco uma parte de mim. arrancam-me um pedaço
do que sou para me ocupar com um pedaço do que é o antónio. e dentro de mim mora
agora o desespero da descoberta: não sei escrever – hoje. quando entrei no
automóvel. mais uma vez não resisti. e
lá fui. a ouvir o meu amigo – ele não sabe. nem nunca saberá. que por braga há
um corpo preenchido com pedaços das suas palavras
13/06/2012
a morrer do mundo
como é que um homem deita o corpo a
descansar se o descanso já morreu – tudo o que vejo é apatia. tudo o que sinto
é desespero. tudo o que faz cor dá negro – tudo está morto antes de estar – e
olho. e volto a olhar. e tudo está a desaparecer. até a luz. ainda hoje pela
manhã era dia aberto e agora já é noite – quer dizer. ainda não é. mas já se
faz anunciar – e rodo para norte o corpo. e depois para sul. sem saber como sossegar
– entre mim e o nada uma flor. desgostosa.
desamparada. desprotegida. sem nome – nunca soube o nome de flores. talvez seja
um girassol. um jacinto. uma estrelícia. uma papoila. ou uma rosa. mas o que interessa
é perceber porque está murcha. a morrer. talvez falta de chuva. não chove
dentro das casas. ou então. talvez seja falta de pessoas capazes de trazer a
água para casa. não sei. se soubesse talvez pudesse ajudar. mas não sei – sei
tão pouco da vida – estou somente capaz de observar as coisas. sinto-me
estranho. esquisito. talvez não venha de mim este mal-estar. talvez sejam os
outros a fazer de mim um homem sem certeza na vida. sem perceber se estou
doente pelo corpo. ou pela cabeça – não sei. creio que estou como sempre estive.
sempre fui pálido. com olheiras. lábios gretados. e a cabeça sem saber para que
lado tombar. sempre me senti a morto. sempre olhei mais para o passado do que
para o futuro – o passado é certo. no futuro há sempre homens a olhar para
longe – agora tudo mudou para mim. não há futuro para as pessoas que me cercam.
faço-as morrer antes do óbito. e assim. já não há gritos. não há corpos para
chorar. e não há flores. porque também estas morreram antes dos corpos. e não há
campas abertas porque o coveiro morreu no dia em que lhe roubaram a pá. e não
há missas porque o padre morreu antes de deus mandar o seu filho à terra para morrer
por gente que não vale coisa nenhuma – também deus já sabia da morte do seu
filho mesmo antes de morrer. e cristo também sabia que tinha nascido para morrer
numa cruz feita por homens que não dão água às flores – todos querem um pedaço
de tempo a qualquer preço. mas ninguém se esforça por o conquistar – e tudo
seca quando as nuvens não carregam água. e judas sabia que só a morte do filho
do criador daria sentido à sua vida. e a vida está cheia de gente que só aparece
quando os corpos falecem – as moedas de judas só entram na narração para criar
enredo. morreu para ficar na história. morreu pela ganância. e nunca
ressuscitou. e nunca soube o nome de uma flor. e nunca trouxe água na palma da
mão. e o mar morto. infestado de sal. não deixa o corpo afundar. e o mal sempre
à tona da água. e o homem também – só não sei o que vou fazer ao meu corpo para
o fazer descansar. estou numa história que não é minha. não consigo dormir. não
consigo guardar as vozes que reconheço. não consigo sossegar. e tudo dentro de
mim está cada vez mais distante do mundo dos que ainda não morreram – quando
era novo sabia tudo. agora não sei nada. talvez as ideias já tenham morrido – e
o mundo anda. e eles mandam o mundo andar como se o pão sobrasse pela falta de
bocas. e uns comem. e outros olham. o autocarro dezoito passa sempre às meias horas
– aos meus olhos veio. pausadamente. o motorista. dono
do volante. mas não do destino. e o corpo à espera da velocidade da luz –
a chuva suspensa entre o céu e a terra. os pássaros com asas de cera gritam
pelo nome da santíssima trindade. moisés ri-se às gargalhadas. não há terra
prometida. nem vida depois da morte. e a igreja morta manda rezar. e o
comunismo morto grita. e o capitalismo morto rouba. e as doutrinas na mão de
gente que nunca morreu. porque nunca nasceu para a vida das flores. dos
pássaros. da chuva. das manhãs feitas de sol. da juventude. dos doentes. da
mulher esperança. do pai de mãos ásperas. da justiça. da rua verde. da
cerejeira. do cão. do abraço. do olá. do bom dia. da história contada à
cabeceira da cama ao filho com medo de um fantasma que se chama papão. da
estrela polar. e da lua que cresce e minga com os dias que fazem dos velhos gente
sábia e respeitada – nunca se ama o que não tem nome. nunca falece o que não
nasceu. nem o que não tem rosto – e a vida era feita de imortalidade que comigo
corria e gritava: somos eternos – morro. morro todos os dias – escrevo para continuar
a morrer desta dor que nunca soube viver dentro de um corpo que insiste em
parecer saudável – um dia morrerá de vez
08/06/2012
de partida
deitado no tempo
pouso os olhos
numa janela acesa de um mar azul gaivota
distante
os olhos presos
a uma braçada de tempo
e a mesa fendida sustém a maça
memória
da terra pisada
o grito vermelho do inferno
amarra-me às raízes de um pardal que não canta
desamável
o silêncio da maça
dentro de um mar que nunca deixou de ser azul
do caixilho
o encontro da luz que sai com a luz que entra
eu
descobrindo o belo e o adeus
05/06/2012
abismo interior
sem luz os quadros desaparecem. o relógio de sala
deixa de dizer as horas. o espelho torna-se um abismo. e toda a vida é sugada
para uma espiral de incerteza – eu deixo de ser eu
02/06/2012
agonia
desemprego não