.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

26/06/2012

à prova de mim




tamara lempicka


arranquei os olhos e guardei-os dentro de uma lata à prova de dor. à prova de som. à prova da luz. à prova de mim – sentei-me de costas para a vida e ali fiquei. a ver-me pelos buracos dos olhos – pousei as mãos em cima dos joelhos. armei os braços. e encostei o pescoço ao peito – ouço agora o coração. não sei se bate depressa ou devagar. não sei. sei apenas que bate – sempre pensei saber tudo sobre o bater do coração. mas enganei-me. perdi-me por partes do corpo que julgava essenciais e afinal não serviam para nada. cresci em dias que corriam. onde fabricava palavras para justificar a vida que desperdiçava – enganava-me com o tamanho dos dias. eles encolhem a cada vez que desperdiçamos um segundo – e o corpo sempre a crescer. só os pés não cresciam e o equilíbrio mais difícil. e o coração a bater. sorte. azar. sorte. azar. sorte. azar. azar – a face a mudar a cada sorriso perdido. junto com gente que também acabei por perder. e a barba a crescer. e a vontade de ser cada vez maior sufocava o sentido de cada coisa no seu lugar – o dezoito passa sempre às meias horas – aos meus olhos veio. pausadamente. o motorista. dono do volante. mas não do destino. e o corpo à espera da velocidade da luz – tudo é tão rápido – toda a vida se faz na partida. nunca na chegada. naquele ir e nunca voltar atrás – e os travões deslaçados. e o pé a acelerar. e as casas a ficar para trás. e gente a vir e eu sempre a ir. e as paragens aos gritos a dizer: sai aqui. sai aqui. e a mão na campainha a pensar: toca. não toca. saio. não saio. e dentro de mim nenhuma voz a dizer: fica. fica. ainda há tanto para viver – o lugar certo das coisas não existia. e todas as estradas vão dar a roma. o céu cheio de estrelas. o mar com gaivotas livres. com asas do tamanho dos meus sonhos. e a liberdade disfarçada de coisa nenhuma e tudo o que faço está bem feito. tudo posso fazer. tudo eu sou. e a força superior ao sansão e o cabelo a chegar às nádegas – e o corpo a correr para a frente. sem medo. sem destino. sem juízo. sem nada. e a vida era feita de gente imortal que comigo corria e gritava: somos eternos 



20/06/2012

sr. antónio



 
antónio lobo antunes


faz já algum tempo comprei o último livro de crónicas do lobo antunes. vinha com um CD onde o próprio autor lê algumas das suas crónicas – quando o ouço. tudo é desarrumação. confusão. agitação – aquela voz rasga-me os tímpanos e o desgosto aparece: não sei escrever – agora também sabem o que ouço nas viagens solitárias. quer dizer. nas viagens que eu e o sr. antónio fazemos. eu carrego no acelerador. e o meu companheiro sempre a travar – não o trato por dr. porque sei que ele prefere ser tratado por sr. antónio – e as histórias gravadas dentro do meu corpo correm com o cd. sintonia. sinfonia. e tudo é orquestra. e tudo é música. e o absurdo sou eu a viajar dentro de uma outra viagem – a viagem é conhecida. uma parte do corpo em alerta. enfrenta as curvas com as mãos no volante. e o ouvido na convicção de que a voz do CD não se calará nunca. e por cada segundo falado. a certeza das tossidelas. das hesitações da voz. das pausas. e até o ruído de fundo das ambulâncias a gritar por socorro – ele é de carne e osso – há milagres que não sei explicar – e é aqui que me agarro à fé que me ensinaram a ter – lourdes. a minha segunda mãe. nome herdado da nossa senhora de lourdes francesa. sempre manteve uma amizade intensa com o divino e seus seguidores – não há anjo ou santo que não saiba que ela vive comigo. não há noite em que. entre um pai nosso e uma avé maria. não caia aos pés de um canonizado um pedido de proteção divina – lá em cima. alguém toma conta de que se passa aqui em baixo. mais cedo ou mais tarde. tudo se paga. os milagres só acontecem aos crentes – quase sou crente – incrivelmente o milagre acontece. cada narrativa regata-me da mediania. e as palavras dentro de mim agitam-se. alteram-se. crescem como se fossem um bailado russo. a lembrar rudolf nureyev – e tudo dentro de mim é divinal – há um novo sentir das palavras. uma nova descoberta. um terraço onde o fim do mundo fica adiado – afinal há outras vidas para além da vida gravada naquela rodela de tecnologia – há um novo sentir das palavras. uma nova descoberta. um terraço onde o fim do mundo fica adiado – e aquela voz serena. mansa. pacata a fazer desarrumação  – afinal há outras vidas para além da vida gravada naquela rodela de tecnologia – afinal ainda não ouvi tudo o que tinha para ouvir – será que alguma vez serei capaz de ouvir tudo? não creio – lobo antunes é como o labirinto de creta. quando entramos dentro do seu texto. a cada instante. somos devorados por um novo minotauro – felizmente lusitano – e. agora. há dentro de mim um homem com raiva de não saber escrever. este silêncio que ouço enquanto o ar desce aos pulmões. é o intervalo das palavras a nascer na boca do sr. antónio.  a trazer à vida dos humanos o conhecimento – ai se eu soubesse apanhar este silêncio escrito pelo antónio? separa a palavra do parágrafo. da vírgula. da interrogação. da exclamação. e o meu corpo a tremer por nada saber escrever – e ele continua a falar. e eu ali. escutando o que nunca tinha escutado. a felicidade presa à dor do belo. e a comoção feita na descoberta de um novo caminho para cada leitura – quando ouço lobo antunes sei que perco uma parte de mim. arrancam-me um pedaço do que sou para me ocupar com um pedaço do que é o antónio. e dentro de mim mora agora o desespero da descoberta: não sei escrever – hoje. quando entrei no automóvel.  mais uma vez não resisti. e lá fui. a ouvir o meu amigo – ele não sabe. nem nunca saberá. que por braga há um corpo preenchido com pedaços das suas palavras

 



13/06/2012

a morrer do mundo



 
pedro américo


como é que um homem deita o corpo a descansar se o descanso já morreu – tudo o que vejo é apatia. tudo o que sinto é desespero. tudo o que faz cor dá negro – tudo está morto antes de estar – e olho. e volto a olhar. e tudo está a desaparecer. até a luz. ainda hoje pela manhã era dia aberto e agora já é noite – quer dizer. ainda não é. mas já se faz anunciar – e rodo para norte o corpo. e depois para sul. sem saber como sossegar – entre mim e o nada  uma flor. desgostosa. desamparada. desprotegida. sem nome – nunca soube o nome de flores. talvez seja um girassol. um jacinto. uma estrelícia. uma papoila. ou uma rosa. mas o que interessa é perceber porque está murcha. a morrer. talvez falta de chuva. não chove dentro das casas. ou então. talvez seja falta de pessoas capazes de trazer a água para casa. não sei. se soubesse talvez pudesse ajudar. mas não sei – sei tão pouco da vida – estou somente capaz de observar as coisas. sinto-me estranho. esquisito. talvez não venha de mim este mal-estar. talvez sejam os outros a fazer de mim um homem sem certeza na vida. sem perceber se estou doente pelo corpo. ou pela cabeça – não sei. creio que estou como sempre estive. sempre fui pálido. com olheiras. lábios gretados. e a cabeça sem saber para que lado tombar. sempre me senti a morto. sempre olhei mais para o passado do que para o futuro – o passado é certo. no futuro há sempre homens a olhar para longe – agora tudo mudou para mim. não há futuro para as pessoas que me cercam. faço-as morrer antes do óbito. e assim. já não há gritos. não há corpos para chorar. e não há flores. porque também estas morreram antes dos corpos. e não há campas abertas porque o coveiro morreu no dia em que lhe roubaram a pá. e não há missas porque o padre morreu antes de deus mandar o seu filho à terra para morrer por gente que não vale coisa nenhuma – também deus já sabia da morte do seu filho mesmo antes de morrer. e cristo também sabia que tinha nascido para morrer numa cruz feita por homens que não dão água às flores – todos querem um pedaço de tempo a qualquer preço. mas ninguém se esforça por o conquistar – e tudo seca quando as nuvens não carregam água. e judas sabia que só a morte do filho do criador daria sentido à sua vida. e a vida está cheia de gente que só aparece quando os corpos falecem – as moedas de judas só entram na narração para criar enredo. morreu para ficar na história. morreu pela ganância. e nunca ressuscitou. e nunca soube o nome de uma flor. e nunca trouxe água na palma da mão. e o mar morto. infestado de sal. não deixa o corpo afundar. e o mal sempre à tona da água. e o homem também – só não sei o que vou fazer ao meu corpo para o fazer descansar. estou numa história que não é minha. não consigo dormir. não consigo guardar as vozes que reconheço. não consigo sossegar. e tudo dentro de mim está cada vez mais distante do mundo dos que ainda não morreram – quando era novo sabia tudo. agora não sei nada. talvez as ideias já tenham morrido – e o mundo anda. e eles mandam o mundo andar como se o pão sobrasse pela falta de bocas. e uns comem. e outros olham. o autocarro dezoito passa sempre às meias horas – aos meus olhos veio. pausadamente. o motorista. dono do volante. mas não do destino. e o corpo à espera da velocidade da luz – a chuva suspensa entre o céu e a terra. os pássaros com asas de cera gritam pelo nome da santíssima trindade. moisés ri-se às gargalhadas. não há terra prometida. nem vida depois da morte. e a igreja morta manda rezar. e o comunismo morto grita. e o capitalismo morto rouba. e as doutrinas na mão de gente que nunca morreu. porque nunca nasceu para a vida das flores. dos pássaros. da chuva. das manhãs feitas de sol. da juventude. dos doentes. da mulher esperança. do pai de mãos ásperas. da justiça. da rua verde. da cerejeira. do cão. do abraço. do olá. do bom dia. da história contada à cabeceira da cama ao filho com medo de um fantasma que se chama papão. da estrela polar. e da lua que cresce e minga com os dias que fazem dos velhos gente sábia e respeitada – nunca se ama o que não tem nome. nunca falece o que não nasceu. nem o que não tem rosto – e a vida era feita de imortalidade que comigo corria e gritava: somos eternos – morro. morro todos os dias – escrevo para continuar a morrer desta dor que nunca soube viver dentro de um corpo que insiste em parecer saudável – um dia morrerá de vez



08/06/2012

de partida




 
joão josé bica





deitado no tempo


                                           pouso os olhos

                                                             numa janela acesa de um mar azul gaivota

distante

           os olhos presos

                          a uma braçada de tempo



                                                                        e a mesa fendida sustém a maça

                                                                                         memória

da terra pisada

                         o grito vermelho do inferno

                                                                    amarra-me às raízes de um pardal que não canta

desamável

                  o silêncio da maça

                                               dentro de um mar que nunca deixou de ser azul



do caixilho

                  o encontro da luz que sai com a luz que entra

                                                eu





descobrindo o belo e o adeus





05/06/2012

abismo interior



   gosha levochkin


sem luz os quadros desaparecem. o relógio de sala deixa de dizer as horas. o espelho torna-se um abismo. e toda a vida é sugada para uma espiral de incerteza – eu deixo de ser eu 



02/06/2012

agonia








as baleias tornaram-se em homens desesperados [1]
.

desemprego não

.
fome não
.
escravidão não
.
tudo agora voltou ao passado
.
o fogão não acende
.
a despensa vazia
.
o cano sem água
.
o fio sem luz
.
eu aqui com o meu prato em equilíbrio
.

 o corpo
.
a lágrima. cai ou não cai
.
e o grito
.
e a raiva
.
este mal-estar
.
agonia
.
está na hora
.
não sei de que hora falo
.
mas está na hora