há uma agitação dentro do corpo. os órgãos imploram liberdade
às palavras – não sei se alguma vez serei capaz de largar as palavras das mãos.
sem perceber o que cada uma de mim leva – tenho medo. tenho muito medo das
palavras – há tanta coisa que desconheço das palavras. são sempre tão
complicadas. difíceis. problemáticas.
com tantos sinónimos. a dizer tanta coisa ao mesmo tempo – as palavras amedrontam-me.
assustam-me. como o vento norte. que anuncia sempre mau tempo e o bater das
portas não para. e vão para lá e vêm para cá. e o corpo perdido. sem saber o
que lhe atravessa a porta – sempre que as palavras partem deixo o olhar fixo à
procura de ouvidos que as queiram colher. como se colhe o centeio da terra que sacia
a fome às bocas – e o medo ergue-se como um novo adamastor. esculpido por palavras
que levam consigo tudo o que é meu. e o corpo em mar navega com terra à vista.
em desassossego. inquieto. receoso afunila a esperança para quem as quer colher:
adota. não adota – há certezas que desaparecem entre a boca e os ouvidos de
quem escuta. e na caverna auditiva o monstro aparta as palavras. boa. má. boa.
má. e tudo é diferente para sempre: deixei partir o que só eu sei dizer e os
outros ficaram a saber o que eu nunca disse – não há lábios íntegros nem
ouvidos puros – e depois. a incerteza que nasceu comigo. tudo é difícil. tudo é
dúvida. tudo é terror. e o dia sempre a puxar para o escuro. e ao longe as nuvens
correm sempre para norte. e as mãos sempre pequenas num corpo a quer crescer mais
que as palavras – não consigo descansar da aflição de saber se o que escrevo é
verdade. a cabeça a dizer sim. as coisas no papel a dizer não – a arte do
pregador é falar. e a do escritor é escrever. e eu não sei nem uma coisa. nem
outra – porque me castiga deus com tanta palavra hesitante – a cabeça teimosa a
dizer que sim com mais força. e acena. e acena. e as lombadas dos livros
viradas para a parede. estou de castigo – um escritor é feito das palavras que
escreve. mas eu escrevo sempre menos do que desejo – e a cabeça continua a
acenar. imagino então que todos são como eu. tolos. feitos de palavras que não
existem em papel. nenhum escritor escreve em papel o que lhe cai nas mãos. aquela
sensação de calor. a falta de ar. o desassossego. os ossos a partir de cansaço.
e as lágrimas a escorrer por dentro e por fora. os olhos perdidos do corpo
lutam por cada página do dicionário. folha para trás. folha para a frente. da boca
um raio parta isto. não há sinónimo para a palavra felicidade sem esta maneira
de dizer as coisas – e o corpo reclama escrita. e escrevo resmas e resmas de
papel para dizer nada. nada que os outros entendam – e a loucura agora tem
nome. atestado por um médico – está louco. já não reage à medicação. não
consegue abandonar a obsessão de que um dia todas as palavras terão sentido
– – façam o favor de internar este pseudoescritor. não
esqueçam: colete de forças e sala branca por tempo interminável. até que faça
outra avaliação do seu estado mental –
sempre
que junto palavras invento-lhes uma nova vida. ricas. poderosas. fortes. elegantes.
viajadas. a falar francês. inglês. bem vestidas. reconhecidas e sempre a
apontar para mim – mentira. tanto quero
dizer. mas no fim do parágrafo resta apenas um ponto final – também eu tenho
que por um ponto final nesta forma de escrever. tenho que largar as palavras
tal e qual como elas me erguem do chão. não posso senti-las de uma forma e
depois entregá-las ao leitor de outra. têm que partir sem erosão. sem
polimento. sem brilho. sem maquilhagem. têm que partir do que sou. do que sinto
em silêncio. quando encostado ao pulmão coloco as pernas em cima do coração.
para facilitar a circulação sanguínea. incham-me os pés e com os pés inchados
as palavras incham também. e fico com os canais lacrimais entupidos. não sei
escrever sem chorar – se as palavras
fossem choro era fácil. uma música. uma voz. e a liberdade era a grândola vila
morena – se as palavras fossem gaivotas era fácil. um dia de sol. um pouco de
vento e a liberdade eram asas – se as palavras fossem peixes era fácil. um
oceano. uma onda. e a liberdade eram barbatanas – se as palavras fossem saudade
era fácil. uma recordação. uma foto na mão. e a liberdade era memória – se as
palavras fossem vento era fácil. uma criança. uma praia e a liberdade era um
papagaio de papel – se as palavras fossem um homem era fácil. um papel. um poema
e a liberdade eram as metáforas – não há liberdade para as palavras que
escrevo. elas são eu. e eu estou preso em cada uma delas – eu sou a prisão das
palavras. as palavras as grades da vida
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