não há génios. nada me dizem as palavras
quando de costas para a realidade – todo aquele que trabalha à procura da
palavra mais que perfeita. sofre – escrevo acoberto de paredes brancas. tudo é
branco. tudo menos a abertura da janela dos olhos – entre o olhar e a luz uma
maçã enorme. vermelha e imóvel brilha no tampo da mesa – na parede o reflexo
distorce a verdade – sombra – duas realidades. dois tamanhos para um só objeto –
na janela o caixilho quadrado guarda um mundo que se quer azul oceano. encoberto
por um tule feito em ponto cruz. um círculo sem princípio nem fim. transparente
– tudo o que é mar é brilho. tudo menos os barcos à vela pousados num horizonte
que a cor dos olhos desconhece – presas ao caixilho quadrado as gaivotas voam
em círculo – às mãos o trabalho. aos olhos a contemplação. ao coração o
sentimento – como artesão. de sol a sol. procuro nas palavras o fabrico do belo.
faço-o num silêncio aflito que por ser só meu ninguém sabe que existe – há
neste escrever “uma felicidade irrecusável nua e inteira”
*dedicado
a sophia mello breyner
nota
de autor:
sofhia
mello breyner aquando do seu discurso de 11 de julho de 1964. na sociedade
portuguesa de escritores. na entrega do grande prémio de poesia à sua obra
livro sexto:
“A
coisa mais antiga de que me lembro é dum quarto em frente do mar dentro do qual
estava, poisada em cima duma mesa, uma maçã enorme e vermelha. Do brilho do mar
e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira. Não
era nada de fantástico, não era nada de imaginário: era a própria presença do
real que eu descobria. Mais tarde a obra de outros artistas veio confirmar a
objetividade do meu próprio olhar. Em Homero reconheci essa felicidade nua e
inteira, esse esplendor da presença das coisas. Eu também a reconheci, intensa,
atenta e acesa na pintura de Amadeu de Souza Cardoso. Dizer que a obra de arte
faz parte da cultura é uma coisa um pouco escolar e artificial. A obra de arte
faz parte do real e é destino, realização, salvação e vida.”
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