.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/05/2014

mário quintana - viver


mário quintana

 
Viver

Quem nunca quis morrer
Não sabe o que é viver
Não sabe que viver é abrir uma janela
E pássaros pássaros sairão por ela
E hipocampos fosforescentes
Medusas translúcidas
Radiadas
Estrelas-do-mar... Ah,
Viver é sair de repente
Do fundo do mar
E voar...
e voar...
cada vez para mais alto
Como depois de se morrer!


28/05/2014

abyssus abyssum invocat



annibale carracci
 

o meu nome é sampaio – esta vida que me consome ainda não acabou. mas sei. inevitavelmente. que um dia vou sossegar – um alpendre virado a sul. uma cadeira de baloiço. um livro por escrever. e a saudade a provocar uma nostalgia-descanso – do outro lado dos olhos. além-terra. o mar: sereno. formoso. robusto. estático. sem nada a ir e a vir – só silêncio – na cadeira o corpo preso a um olhar demorado na fímbria do tempo andado – contemplação – nada volta – costas. ombros. braços. mãos. dedos. finalmente tudo pronto para um adormecer tranquilo. tudo em descanso. e tudo são agora recordações que enterro para sempre na preia-mar – as pernas estendidas sustentam. na extremidade. pés deformados. cobertos por sapatos pretos-baço numa simetria perfeita – os atacadores cruzados em forma de cruz tombam numa laçada firme para sul. como se apontassem com certeza o caminho reservado a quem adormece em paz – em cada pé um caminho feito. em cada sapato. um pé-de-meia guardado para o dia de todos os dias – três ou quatro fotos. a chave da morada onde o meu pai descansa. o anel de duas cores. o abraço guardado de cada um dos meus filhos. e o aroma dos lábios da mulher da minha vida – os pés. de tempos em tempos. cruzam-se. descansam um sobre o outro. revezam-se na monotonia do descanso – sempre foi assim. nunca se deram parados e tantas vezes andaram sem sair do sítio. mas andaram – conhecem-se como ninguém. o caminho de um foi o de outro – do alpendre tudo se apresenta imóvel. o corpo. os olhos. o mar. as gaivotas. os sonhos. a contrição. as desilusões. a esperança. e a promessa antiga de que um dia partiria feliz – mas as promessas quebram-se. cristal – só bóreas continua inalterável. sacode a ira num último sopro gélido. trespassa-me a camisa no solar decrépito. rompendo a pele num arrepio quebradiço. cristal-prenunciação – o silêncio é agora imperecível num horizonte que se esgota com a permissão dos olhos. diminuídos a cada lembrança. quase escuros. inofensivos. e a energia do ser anuncia. enfim. a aceitação do fim – o que me resta dos olhos já não sustenta as minhas gaivotas naquele voar descuidado. livre. espontâneo. destemido. guerreiro. agora voam a favor do vento norte sobrevoando o sobrolho em círculos que se tornam mais pequenos a cada volta – sempre amei a liberdade das gaivotas. talvez por nunca ter compreendido se é feita só de vento – finalmente. no rosto. uma expressão eterna de um sorriso que nunca vi – por fim. livre. fora do corpo – morte e vida severina


*abyssus abyssum invocat - um abismo atrai o outro
* morte e vida severina – joão cabral de melo neto
 

27/05/2014

morte e vida severina


joão cabral de melo neto
 
 

Morte e Vida severina


O retirante explica ao leitor quem é e a que vai


— O meu nome é Severino,
 não tenho outro de pia.
 Como há muitos Severinos,
 que é santo de romaria,
 deram então de me chamar
 Severino de Maria;
 como há muitos Severinos
 com mães chamadas Maria,
 fiquei sendo o da Maria
 do finado Zacarias.
 
 
 Mas isso ainda diz pouco:
 há muitos na freguesia,
 por causa de um coronel
 que se chamou Zacarias
 e que foi o mais antigo
 senhor desta sesmaria.
 
 
 Como então dizer quem falo
 ora a Vossas Senhorias?
 Vejamos: é o Severino
 da Maria do Zacarias,
 lá da serra da Costela,
 limites da Paraíba.

 
 Mas isso ainda diz pouco:
 se ao menos mais cinco havia
 com nome de Severino
 filhos de tantas Marias
 mulheres de outros tantos,
 já finados, Zacarias,
 vivendo na mesma serra
 magra e ossuda em que eu vivia.
 
 
 Somos muitos Severinos
 iguais em tudo na vida:
 na mesma cabeça grande
 que a custo é que se equilibra,
 no mesmo ventre crescido
 sobre as mesmas pernas finas
 e iguais também porque o sangue,
 que usamos tem pouca tinta.
 
 
 E se somos Severinos
 iguais em tudo na vida,
 morremos de morte igual,
 mesma morte severina:
 que é a morte de que se morre
 de velhice antes dos trinta,
 de emboscada antes dos vinte
 de fome um pouco por dia
 (de fraqueza e de doença
 é que a morte severina
 ataca em qualquer idade,
 e até gente não nascida).
 
 
 Somos muitos Severinos
 iguais em tudo e na sina:
 a de abrandar estas pedras
 suando-se muito em cima,
 a de tentar despertar
 terra sempre mais extinta,
 
 
 A de querer arrancar
 alguns roçado da cinza.
 Mas, para que me conheçam
 melhor Vossas Senhorias
 e melhor possam seguir
 a história de minha vida,
 passo a ser o Severino
 que em vossa presença emigra.

 



23/05/2014

correspondência violada - III



imagem google
   

escrever é esta coisa bonita de juntar palavras para oferecer aos outros.

depois. bem… depois

é necessário que quem as lê faça destas um abrigo para se proteger da solidão. um lenço para aparar uma lágrima que hesita em cair. temendo perder-se para sempre. ou então. ou talvez. uma brisa leve numa tarde de calor tropical – é assim que fazemos. nós. tu daí. e eu daqui – pelo meio este mar imenso. com marés indomáveis por uma lua que insiste em não cair. empurrando de um lado para o outro tudo o que ainda somos capazes de sentir – hoje. estou eu aí. e aqui. com palavras que são puro afeto

 

correio privado com a minha amiga vânia - abril de 2012


de vulgari eloquentia - paulo henriques britto




paulo henriques britto
 


De Vulgari eloquentia  
 
       
A realidade é coisa delicada,
de se pegar com as pontas dos dedos.
Um gesto mais brutal, e pronto: o nada.
A qualquer hora pode advir o fim.
O mais terrível de todos os medos.

Mas, felizmente, não é bem assim.
Há uma saída - falar, falar muito.
São as palavras que suportam o mundo,
não os ombros. Sem o "porquê", o "sim",

todos os ombros afundavam juntos.
Basta uma boca aberta (ou um rabisco
num papel) para salvar o universo.
Portanto, meus amigos, eu insisto:
falem sem parar. Mesmo sem assunto.
  



17/05/2014

eu. e o meu pai benfiquista



 
 

o meu pai era do benfica. um bom benfiquista por sinal. logo. um bom chefe de família – como muitos milhões de benfiquistas. tenho a certeza. de que também ele se tornou simpatizante do glorioso por conta das vitórias extraordinárias na década de sessenta – habituei-me em casa a ouvir relatos minuciosos sobre o prestígio do benfica no mundo. e da sua figura mais emblemática. eusébio da silva ferreira – fruto desse amor do meu pai pelo glorioso. e do meu amor pelo meu pai. também eu me tornei benfiquista – não um benfiquista ferrenho. fanático. doente. apenas mais um benfiquista. despretensioso que gosta de ver vencer o seu clube com seriedade – para mim a vitória não tem que acontecer a qualquer preço. e os meios usados para a alcançar devem obrigatoriamente provir do mérito desportivo dos seus atletas dentro do campo – ganhar. nos meus ensinamentos de vida. só é importante quando o talento está associado à honestidade – recuso-me a ver o futebol de uma só cor.  limitado a uma região ou a um bilhete de identidade – nasci em braga. mas sou de outro emblema que não o da cidade que me viu nascer – sou do benfica. que por sinal. é de lisboa – há quem vista a camisola do sporting. da académica. do belenenses. outros ainda de clubes mais distantes. do real madrid. do milan. do liverpool. há adeptos em todas as partes do mundo. não encontro nenhuma razão ética ou moral para não se ser do clube que o coração determina. por mais distante que morem as raízes dessa coletividade – enquanto a moral se fundamenta na submissão aos costumes e hábitos praticados num determinado local. a ética. opostamente. procura assentar as ações morais unicamente na razão – as questões éticas raramente são simples. mas a questão principal é preservar a nossa integridade pessoal. fazendo respeitar as nossas opções de escolha sem nunca deixar de respeitar quem pensa de forma diferente – e assim sou benfica dos pés à cabeça – o mais espantoso é que cada um tem a sua razão-história para gostar do clube A. ou B. e nenhuma dessas razões-história é mais ou menos válida do que uma outra qualquer – no meu caso. gosto do benfica porque o meu pai gostava. e porque o meu coração me obrigou – não encontro razão mais bonita para se ser benfiquista: obrigado meu pai – mas para lá dos clubes. no que me diz respeito. gosto do meu país como um todo. sem divisões. sem fronteiras regionais. sem bairrismos doentios. sem pontos cardeais. sem chauvinismo. sem montanhas. rios. florestas. searas. falésias. ou outra qualquer forma impeditiva de nos podermos ver. tocar e olhar olhos nos olhos – somos todos iguais. todos queremos que os nossos clubes vençam – neste mundo desportivo. onde a paixão clubística faz muitas vezes o homem perder a razão e o bom senso. esquecendo-se que o desporto [profissional também] tem como primeira função aproximar as pessoas. as cidades. os povos. mas principalmente. fazer com que as desigualdades pareçam menos desiguais – o desporto é a maior força pacífica de agregação do ser humano. atenua as diferenças e torna-as menos díspares num mundo cada vez mais global e egoísta – fundamental para a criança. para o seu desenvolvimento. o desporto harmoniza o seu comportamento. incitando a sua capacidade de concentração. desportivismo. companheirismo. amizade. autoconfiança. espírito de equipa. e solidariedade. sendo estas vermelhas. pretas. mestiças. amarelas. e outras que. sem cor definida. seguem quem lhes diz que muitas cores juntas fazem um arco-íris – sinto-me um pouco de todo este meu país. colorido. e em todos os cantos me sinto em casa – não divido o meu país em cores de camisolas dos que dão chutos a bolas. e muito menos pela retórica retrógrada de uns quantos senhores grosseiros que. por nada saberem das coisas do coração. magoam os que sonham um dia poder ver a sua cor ganhar – sou do benfica porque sou do meu pai – como diz o ditado. filho és. pai serás – os antigos sempre souberam o que diziam. vejamos como tinham razão – tenho três filhos todos eles benfiquistas. confesso que talvez fruto da sua juventude. às vezes são um pouco aguerridos demais para meu gosto. mas mesmo assim. bons rapazes. tal como o pai. não gostam de festejar as vitórias humilhando os vencidos – sempre que alguém ganha há outro que perde. para uns estarem felizes outros estão tristes. é assim o desporto de alta competição. ou uma peladinha entre amigos. infelizmente não podem ganhar todos – rapidamente entenderam que é mais difícil saber ganhar do que saber perder – mas toda esta conversa. esta minha crónica. para dizer o seguinte: há por aqui [facebook] muita “boa” gente. minha “conhecida” do mundo virtual e não virtual. que constantemente coloca imagens e comentários depreciativos em relação ao meu benfica – ora muito bem. eu até posso compreender que uns quantos parvalhões. de um qualquer clube. sejam eles do norte ou sul. coloquem aqui um chorrilho de disparates de mau gosto – o problema é que parvalhão não tem morada fixa. assim sendo. não posso fazer nada contra esta praga de imbecis. mas mesmo que pudesse teria as minhas dúvidas em fazê-lo – no meu entender. enquanto andam ocupados no facebook não fazem dispartes na vida real. como: lançar very-lights. assaltar estações de serviço. vandalizar viaturas. ou atacar à pedrada viaturas nas autoestradas. entre muitas outras parvoíces que a juventude já tem desculpa – o facebook é bom para este tipo de gente. permite-lhes largar as frustrações pessoais. traumas de infância. raiva. ódio. e linguagem violenta num espaço onde para além dos danos da alma mais nenhuma mal acontece – o que não quer dizer que uma palavra não seja capaz de ferir mais que um estalo. pode. e fere. mas nada posso fazer a não ser evitar o segundo estalo. já diz o ditado: à primeira qualquer um cai. à segunda só cai quem quer – mas também não é grave. já percebi que esta gentinha não tem o relógio a bater certo. diria que o desenvolvimento do cérebro é inversamente proporcional ao crescimento do corpo. alfinetes de alinhavar costuras – esta malta não sabe usar o facebook para criar-manter amizades. não sabe. não tem condições de saber. e quero acreditar que mesmo que tivessem a oportunidade de aprender continuariam a não querer – estes anormais precisam do facebook para libertar a raiva e ódio acumulados ao longo da vida inútil que construíram – já os outros. que amavelmente se dizem meus amigos. parceiros diários de um espaço pessoal e “íntimo”. para esses a minha tolerância é agora zero – não voltarei a permitir que continuem a invadir diariamente o meu lugar de reflexão. diálogo e partilha de “amigos” e que. por um qualquer motivo. nobre quero acreditar. aceitaram coabitar o mesmo espaço cibernético. com amizade adicionada e mantida livremente. e que por doença. ou mal-estar. publiquem diariamente mensagens obscenas contra o meu clube de coração – quase que arriscaria a dizer que para esta gentinha nada mais existe no mundo para fazer do que magoar quem não é do seu clube – criaturas! há tanto para falar – meu deus. quanto vale um médico que acaba de salvar uma vida com a arte que aprendeu com tanto esforço e dedicação. treinando afincadamente todos os dias. dia e noite. procurando a cada dia ser melhor do que ontem. e deste modo evitar sobre o risco da vida o triunfo da morte – quanto vale uma auxiliar de idosos que todos os dias tem que virar o corpo de acamados para não deixar as escaras ganharem à vida o luto de gente que não se cansa de lutar por mais um dia de vida. correndo para trás e para a frente. sem descanso. atacando a solidão de quem já quase tudo perdeu. e defendendo com unhas e dentes o que resto daquelas almas cansadas e doridas – quanto vale um professor do primeiro ciclo. que como um treinador de futebol. ano após ano. vai aceitando as crianças como se fossem suas. de todas as cores e credos. altas ou baixas. bonitas ou feias. ricas ou pobres. e lhes ensina todas as letras de um mundo global. para que um dia possam escrever a sua história como adultos felizes – está a chegar a hora de dizer basta a este tipo de personalidade que todos os dias invade o meu talento de tolerância para ter o ignóbil prazer de magoar e humilhar quem não é da sua cor – apesar de ser complemente contra a censura. não me resta outra solução a não ser o seu bloqueio na minha lista de amigos. não posso continuar a permitir que os meus filhos me interroguem que tipo de amigos partilham a minha intimidade – eles não compreendem. e eu também não – como foi possível deixar esta gente entrar nas nossas vidas? não sei – eu moro a sul da galiza e a norte do algarve – da minha janela vejo o mundo redondo. azul. com mar. sol. sal e gaivotas – engraçado. vejo um mar azul e não um mar vermelho – será assim tão difícil perceber que a amizade só se constrói com respeito e tolerância? para mim. em primeiro lugar. estão as pessoas. e só depois o clube do coração – viva o glorioso. viva o benfica – o campeão voltou e amanhã há mais uma taça para ganhar




13/05/2014

nicolau maquiavel


nicolau maquiavel


 
"Porque a todos é concedido ver, mas a poucos é dado perceber. Todos veem o que tu aparentas ser, poucos percebem aquilo que tu és"



12/05/2014

deambulações noturnas I


adelina aida carrion


medo

se as mãos não tremessem. talvez o medo nunca soubesse da minha existência existo – quem sabe. as palavras nasceriam mais íntegras aos olhos de quem as lê

 

papel laminado

o papel guarda a intenção. as mãos. guardam eternamente o homem

 

escriba translúcido 

escriba que cava uma cova. cava um cemitério



10/05/2014

ao mar tornará


edvard-munch-melancolia
 
 

gosto de ver o mar. gosto de me sentar de frente para o mar. às vezes também de lado – quando estou de lado. dedico um olho ao mar e outro à terra e interrogo-me: como seria a terra sem mar? seria uma terra sem peixes. sem estrelas-do-mar. sem búzios. sem barcos. sem iodo. sem sal – de seguida. pergunto-me: o que seria do mar sem terra? seria um mar sem marés. sem dunas. sem gramíneas. sem varinas. sem gaivotas. sem crianças a erguer castelinhos de areia – não consigo imaginar o que seria de um. sem o outro. onde esfriava o sol ao fim do dia sem mar? como nascia o sol aos pulinhos se não houvesse montanhas? há sol porque há mar e terra. e eu só existo porque a terra me aceita nesta posição. com o  queixo nos joelhos. os braços apertados ao peito. a olhar o mar num silêncio feito de um vai e vem de água que também é memória – ali fico. imóvel. a olhar o movimento da maré. e tudo que é mundo vem para cá. para logo de seguida o mundo todo partir para lá. e as gaivotas voam por cima dos meus sonhos num ir e vir igual às marés – como gosto de gaivotas. não me canso de as ver. fico sempre com a ideia de que são elas que guardam o mar. sempre tão elegantes. tão livres. tão cheias de vento. tão donas de si. gostava de ser assim – nunca lhes vi um traço de medo nos olhos. nem mesmo quando o vento norte está furioso – no corpo um silêncio total. e tudo que é sonho luta com braços que já não chegam para tapar os olhos – desaparecem aos poucos os sonhos e tudo é igual ao último suspiro dos afogados. tudo na cabeça. tudo tão real. tão certo. tão fácil de alcançar. e afinal ali vão eles. para lá. enrolados em espuma e sargaço morto. e tudo o que era certo cada vez mais para lá da rebentação. mais longe. e os olhos deixam cair o silêncio na areia. talvez vergonha. talvez cansaço. talvez o corpo seja mais humano do que eu imaginava. e o que era confiança agora é incerteza. talvez tenha chegado a hora certa para desistir e partir – não tenho medo da morte. nunca tive – a certeza do mundo foi minha no passado – amargura salgada – aqui estou a ver o fim de um horizonte que não vou alcançar. a dor a dizer que estou vivo. arranho-me. rasgo-me. lanço contra o corpo o que tenho para sobreviver. e tudo por dentro arde. e os gritos abafados não saem para não estragar o silêncio do mar que traz para terra tudo o que não presta – ali estou eu. em pedaços que não sei contar. nem juntar. nem compreender. espalhado pelo areal. a servir de alimento aos caranguejos que se nutrem de sonhos mortos – o que o mar leva vivo traz morto – nenhum sonho sobrevive a tanto mar – o mais certo é já estarem afogados. ou talvez quem sabe. agarrados a uma cavaca de madeira a resistir às tempestades feitas a norte – é preciso evitar a morte de quem sonha – o que seria do mundo sem sonhadores? não sei. não sei mesmo. e também não sei imaginar – bem gostava de saber algumas coisas que me fazem falta para continuar a sonhar. mas não sei. cada vez sei menos – quem sabe foram engolidos por uma orca assassina. ou levados para o fundo do mar por um polvo gigante que. de tão enorme e pesado. só consegue vir à superfície uma vez na vida – se assim é. não vale a pena ter esperança. já estive à superfície uma vez. era criança e o meu pai segurava-me pelo queixo. enquanto me dizia para mexer as mãos e os pés em ritmo acertado com a respiração. mas eu teimava em fazer à minha maneira – não adiantou. quando me tirou a mão não me aguentei. afundei – nunca fui capaz de ficar de barriga para o ar em cima da água. boiar. fingir que era barco à vela. a bolinar a vento bom. a sentir o céu a correr atrás das nuvens. e o grito do marujo-vigia a sair com raiva dos pulmões: terra à vista. terra à vista – mas não. nunca avistei as terras quentes do sul. nunca me aguentei muito tempo a boiar. a água tapou-me os olhos. e logo de seguida a boca. talvez não quisesse que eu visse a sorte. e muito menos falasse. sempre tive o coração ao pé da boca – raio de feitio. nunca abdiquei de dizer o que pensava mesmo quando o silêncio é bom senso – e eu ali sentado no areal. encutinhado. enroscado em mim. a parecer mais pequeno do que sou. e os olhos parados naquela imensidão de água – ali estou. só. sentado. delimitado por um pedaço de terra. ora seco. ora molhado – esta coisa das marés fascina-me – faz silêncio em tudo que é lado. na terra e no mar. dentro de mim também. tudo é feito de silêncio. o coração bate em silêncio. o sangue corre em silêncio. os ouvidos ouvem em silêncio. os cabelos ondulam em silêncio. até a brisa norte corre para sul num silêncio capaz de arrepiar o corpo – o movimento do meu mar faz um silêncio que me abraça com força – ali fico eu a olhar o que me resta do mundo – o que nasce no mar. ao mar tornará. lágrima 



09/05/2014

florbela espanca




“O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais, há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesmo compreendo, pois estou longe de ser uma pessimista; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que se não sente bem onde está, que tem saudades... sei lá de quê!”

08/05/2014

correspondência violada - II


imagem google
 
 

e agora

como resolvo estar vivo se é na morte das palavras que encontramos as mãos com que escrevemos

como faço para estar vivo se é  na tristeza da perda que as minhas gaivotas voam

diz-me

diz-me

se morrer é esta coisa de dizer coisas sem sentido

se morrer é abraçar as tuas palavras como se fossem tiradas de dentro de mim

se morrer é gritar pelas cores que enxergo no que escreves

e eu cada vez mais negro

-

encosto-me

encosto-me numa marquesa que já foi rainha

e escrevo

nunca fui nada

penso.

quero pensar nesta garganta que já não faz barulho

e o vazio é enorme

vai daqui até dentro do meu dedo indicador

-

onde está a aguardente

quero queimar a voz

as palavras têm que nascer roucas

como o coração

rouco de gritar por socorro

e eu só

morto sem saber

 

só tu aí me ouves




correio privado com a minha querida amiga vânia - abril de 2012


04/05/2014

ilusão



ron mueck
  

1.

as longas-metragens cinematográficas quase sempre terminam com o artista a resgatar a amada do tirano malfeitor – é o triunfo do bem sobre o mal – um abraço. um beijo forte nos lábios. e os corpos fundem-se num só para sempre – a plateia em pé cauciona com palmas a felicidade eterna: muitos filhos e só a morte os separará – the end – o mundo da ilusão acabou – o momento é real. os corpos tomam a verticalidade. o conhecimento apruma-se. ergue-se. olha em frente e segue para o mundo inteligível – guardam-se apressadamente os lenços encharcados de sentimento. a condição representa a verdade da ocasião. mas as ideias querem-se enxutas – caminha-se – há de novo razão dentro dos corpos. a felicidade não é eterna. a realidade esculpe-se em microssegundos. alguns fatais – entrar no filme certo da vida requer habilidade. conhecimento. inteligência. e porque não uma pitada de sorte – sempre ouvi dizer que a sorte dá trabalho para caraças. a ventura não nasce para todos. não – é fundamental ter ao nosso lado os atores certos para um filme único. sem ensaios. sem cortes. sem ponto. sem holofotes. sem molière a marcar as pancadas. sem merda. nada do que é feito tem volta atrás – uma arte complicada. ajustável a uma única fórmula matemática de resultado quase sempre incerto e com uma variável aplicada à velocidade com que nos adaptamos ao imprevisto – o homem das cavernas evoluiu. adaptou-se. e agora o fogo é instantâneo: a fricção das pedras substituída pela lixa e o fósforo – atrito. faísca. e a explosão acontece. o calor-luz aparece para dar racionalidade aos corpos. nas paredes as sombras são agora verdades dobradas – para o bem ou para o mal – é indiferente para este mundo aligeirado saber que a verdade permanece em todos os espermatozoides – ninguém quer saber quem é o dono do bem. se é o mal que alimenta a esperança – o homem da vida real esqueceu que só a partilha justa produz harmonia – andamos todos enganados

 

2.

não esqueças de te portar bem. não mintas. não faças asneiras. não contraries os teus pais. respeita os mais velhos. reza sempre ao deitar. e vai à igreja receber o senhor para ficares protegido dos demónios e das más tentações

– as recomendações para a felicidade plena continuam

faz os deveres da escola para um dia seres um homem importante. não queiras ser como o teu pai. mata-se a trabalhar e nunca tem nada. “põe os olhos no miguelinho”. agora que é “doutor”. já não lhe faltam companhias – o futuro está nas tuas mãos. faz-te um senhor para não teres que andar a contar os tostões – receita para uma felicidade eterna. como no cinema: um artista doutor. fama. espectadores-clientes e a vida a sorrir – caminha-se – a esta gente ninguém lhes disse que a vida também pode ser um filme onde as nossas verdades se apagam com o acender das luzes – embuste. esperança armadilhada para os pais e para os filhos – pai uma vez. pai para sempre – mataram a fome com livros cheios de saber comprados com trabalho de sol a sol.  e nas mãos a aspereza do sofrer em alegria. nos olhos a vaidade de ver os filhos crescerem com sapatos que nunca tiveram. na boca a felicidade feita de carne da minha carne

 – Só há felicidade se não exigirmos nada do amanhã e aceitarmos do hoje. com gratidão. o que nos trouxer – a hora mágica chega sempre – hermann hesse

havia fé até nos nobres da literatura – a hora mágica vai chegar – a idade vai passando com alegria nos corpos doridos de tudo. fé – talvez haja outro mundo melhor para quem sofre por amor – os filhos são sempre tão imensos para um mundo tão apertado – o tempo passa – finalmente vão poder descansar. sentarem-se numa sala de cinema. e em paz. saborearem com prazer um filme da sua juventude. uma daquelas velhas películas do western americano. onde mais uma vez o bem derrota o mal num duelo marcado para o pôr do sol – frente a frente. desta vez. o artista apesar de estar ferido vence a ganância. saca da pistola com balas feitas de sacrifício. e num gesto relâmpago. o mais rápido de sempre em filmes de cowboys. crava uma bala-estaca de tudo que há de bom no corpo do capitalismo selvagem – o mundo dos que amam incondicionalmente ganhou mais uma vez no grande ecrã – finalmente justiça

 

3.

na parede uma luz delicada indica em forma de seta a saída: exit – a geometria perfeita do espaço perde a estética – plateia vazia. primeiro balcão vazio. segundo balcão vazio. frisas vazias. tela vazia. e o que era gáudio é agora um aglomerado de cadeiras perdidas num vazio cheio de nada – de uma cadeira para outra. difere apenas um número e uma letra de um abecedário que nunca servirá para dizer o que quer que seja – o ímpar e o par trespassados por uma passadeira vermelha. cor de sangue sujo. puída por um vir de imaginário-esperança e um ir de nostalgia-desgraça – há agora um silêncio que não sei escrever. talvez um silêncio-espera. como se a gravidade terminasse e o barulho permanecesse parado no ar. numa cena de amor. talvez num beijo do clark gable na marilyn monroe. ou então. quem sabe. o aparecimento inesperado do homem-aranha pendurado nas teias da vida – tudo é uma teia. a vida é uma teia – isso é que era. um herói de carne e osso. a falar a mesma linguagem dos mortais. com as mesmas mágoas. com os mesmos malabarismos de equilíbrio. deixa cair das mãos fios de seda pura que não servem para nada – encantamento. ilusão. magia – há quanto tempo não temos um herói. viriato o mais antigo. d. joão II nos descobrimentos. camões por ter perdido um olho para um povo que já quase não existe. e o tempo a passar sem nada. só reis. e um dia uma república que nunca trouxe fraternidade. igualdade e liberdade. não trouxe nada. o herói da modernidade é o túmulo do soldado desconhecido. somos todos nós – há um silêncio-espera que parece não ter fim

[nem sei bem se este silêncio-espera pode ser escrito – talvez esteja a ficar irracional – espero que me compreendam]


4.

novas aparições de humanos só na próxima sessão – tudo que é vida vai nos corredores – os corpos movem-se num caminhar pré-morte. buscam a luz para apagar dos olhos o testemunho da consciência afetiva – resistem os fracos. e com escassas provas de humanidade: nariz fungoso. olhos inchados e a face tomada por feições amenas de mortalidade – todas estas provas num tribunal não serviriam de nada. qualquer juiz medíocre diria que se tratava apenas de uma constipação. uma alergia ao pó fabricado por multidões a correr apressadamente para a indiferença: exit – a consciência afetiva não sobrevive com a chegada dos corpos à rua – finalmente todos na vida real – só a morte é igual para todos – como escreve lobo antunes: a arte é longa. a vida breve – tal como a vida também o belo do cinema não é eterno 




 

 




01/05/2014

vladimir vladimirovich nabokov vs sampaio rego



vladimir vladimirovich nabokov


citou vladimir nabokov: “penso como um génio, escrevo como um vulgar homem de letras e falo como um idiota”

cita sampaio rego:  “penso quando posso. escrevo o que posso e falo como um idiota mesmo quando não devo” 

quem diria que tinha tanto em comum com o camarada vladimir

moral da história: és o que és – por muito que tentes ser outro. acabas sempre em ti