.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/05/2014

abyssus abyssum invocat





annibale carracci
 



o meu nome é sampaio – isto ainda não acabou mas sei obrigatoriamente que um dia vou sossegar – um alpendre virado a sul. uma cadeira de baloiço. um livro por escrever e a saudade a causar uma nostalgia-descanso – do outro lado dos olhos. além-terra. o mar: sereno. formoso. robusto. estático. sem nada a ir e a vir – só silêncio – na cadeira o corpo preso a um olhar demorado na fímbria do tempo andado – contemplação – nada volta – costas. ombros. braços. mãos. dedos. finalmente tudo pronto para um adormecer tranquilo. tudo em descanso. e tudo são agora recordações que enterro para sempre na preia-mar – as pernas estendidas seguram na extremidade pés deformados. cobertos por sapatos pretos-baço numa simetria perfeita – os atacadores cruzados em forma de cruz tombam numa laçada forte para sul. como se quisessem apontar com seguridade o caminho reservado a quem adormece em paz – em cada pé um caminho feito. em cada sapato um pé-de-meia escondido para o dia de todos os dias – três ou quatro fotos. a chave da morada onde o meu pai descansa. o anel de duas cores. o abraço guardado de cada um dos meus filhos e os lábios-aroma da mulher da minha vida – os pés de tempos em tempos cruzam-se. descansam um em cima do outro. revessam-se pela mesmice do descanso – sempre foi assim. nunca se deram parados e tantas vezes andavam sem sair do sítio. mas andavam – conhecem-se como ninguém. o caminho de um foi o de outro – do alpendre tudo se apresenta imóvel. o corpo. os olhos. o mar. as gaivotas. os sonhos. a contrição. as desilusões. a esperança  e a promessa imutável de que um dia partiria feliz – mas as promessas também se quebram. cristal – só bóreas continua inalterável. sacode a ira com um último sopro gélido. trespassa-me  a camisa no decrépito solar rompendo a pele num arrepio quebradiço. cristal-prenunciação – o silêncio é agora imperecível num horizonte que se esgota com a permissão dos olhos. mais pequenos a cada lembrança. quase escuros. inofensivos e a energia do ser augura finalmente aprovação para o fim – o que me sobra dos olhos já não aguenta as minhas gaivotas naquele voar descuidado. livre. espontâneo. destemido. guerreiro. agora voam a favor do vento norte sobrevoando o sobrolho em círculos que se tornam mais pequenos a cada volta – sempre amei a liberdade das gaivotas. talvez por nunca ter percebido se é feita só de vento – finalmente na face uma expressão eterna de um sorriso que num vi – por fim livre. fora do corpo –  morte e vida severina
 
*abyssus abyssum invocat - um abismo atrai o outro
* morte e vida severina – joão cabral de melo neto
 

 

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