rembrandt
dou pelo
nome de sampaio rego – escrevo. é com a escrita que procuro compreender o acerto
perdido – sei que a escrita não muda um vírgula ao passado. sei-o muito bem.
mas preciso de escrever. preciso de me ver em papel. preciso de parar no presente.
renovar-me. absolver-me do pecado. purificar-me – quando escrevo fico preso na
eternidade das palavras – sinto o corpo escuro. preto. não. talvez quase preto.
um preto terylene. sombrio. opaco. débil. como quem vai desmaiar a qualquer instante.
só as palavras brilham no branco. emergem em tinta preta viscosa – preto. gosto
da cor preto. é a cor mais escura de todo o espectro de cores. moldada através
da mistura de três pigmentos primários: vermelho. amarelo e azul – preto pode personificar
apreço. etiqueta. morte. desolação. isolamento. medo. solidão. ausência de cor
ou simplesmente uma forma de estar em vida – quem diria que três cores frondosas
entranharam-me no corpo um preto-silêncio. preto–inseguro. preto-aflição – é
assim o meu preto – escrevo preto. para experimentar a escuridão do meu preto
procuro lugares ausentes do barulho. lugares cansados. lugares distantes da expectativa.
das pessoas. da existência das coisas. das ruas. das sombras. da cama. da
agonia. do pranto. do arrependimento – neste lugar da escrita não há morte. já
se está morto há muito tempo e a vida acontece em flaches sombrios. ácidos
– gosto do preto. gosto do silêncio entranhado no preto. gosto da raiva de língua
preta. gosto do fumo preto no pulmão. gosto dos pássaros pretos. e de gatos
também. trazem azar. quem diria. gosto do preto que se faz mulher e que me
abraça num amor que é ferida e dói. dói a correr. dói à frente do corpo e
dentro ainda mais e o amor magoado cada vez mais preto. mais enegrecido – amo o
preto. nunca aprendi a amar outra cor – o preto é sempre tão aconchegante e eu
tenho sempre tanto frio. estou sempre tão isolado. sozinho – no preto o
silêncio é quase absoluto. raramente falamos. sussurramos. às vezes um desabafo
em voz mais grossa para prova de vida – o silêncio é nosso. vive no preto desde
sempre. nos arredores da vida. no descampado inútil. nas montanhas perdidas.
nas cidades desertas. sem sirenes. sem ambulâncias. sem gente maltratada. sem
cães vadios. sem velhos. sem portas. sem cartas e carteiro. sem nada que faça
contraste com o preto – o preto é a minha companhia. fundimo-nos.
todas as noites ali estamos. namorados eternos. a consumir escuridão. enrolada num
charro de erva a alucinar. a causar pânico. paranoia. terror – a noite demora
sempre mais que o dia. mesmo no solstício de verão – são sempre tão demoradas.
negras. a cobrar sentimento – é única cor que nunca me abandonou. não sei viver
sem a escuridão do preto – gosto do preto. habituei-me a gostar. deram-me à
nascença e por aqui foi ficando. para sempre. acredito – já não conseguiria
viver sem este negrume. sem este contentamento descontente – tenho medo de me
perder numa overdose de contentamento. já não tenho raiva por amar o que é meu
por destino. amo o preto da mesma forma que amo as pernas e as mãos – sem o preto
não tinha pernas. sem o preto não escrevia – à minha volta só perdura o que é
preto. gosto de preto-certeza em oposição a um branco-ilusão – tudo que tenho
como certo é preto – lembro-me de andar vestido de preto. era interminável. o preto
fazia-me maior. mais elegante. mais atraente. mais confiante. mais “look”. mais.
“jet set”. dono da rua e do destino do mundo – com ausência de cor lá partia:
roupa interior preta. meia preta. calça preta. camisa preta. camisola preta.
casaco preto e para cobrir todo o preto uma gabardine preta igual à que keanu
reeves usava no matrix – caía-me que nem uma luva. que classe. como gostava
daquele preto impermeável. não havia mau tempo que lhe roubasse confiança. o
capote tomava conta de mim – acreditava que a gabardine preta me atiraria para
um futuro perfeito – nunca haveria de acontecer – todo eu era preto preto. um
preto alegre [havia alegria no preto. nunca tinha feito luto]. preto-vida. só
os olhos eram castanhos. com o tempo acabaram por escurecer. hoje. com ausência
total de luz. tombaram para o preto – corpo preto. olhos pretos. palavra preta.
vida preta – a cor é uma qualidade da luz. o preto sente-se – a palavra é escrita
a preto porque o preto é uma cor universal. só há noite porque há preto. só há
morte porque há preto. e só há viúvas porque estas se vestem de preto. todo o
sangue pisado fica preto. e o preto a dizer: és sampaio porque és capaz de
provar que a cor das palavras é feita da cor dos olhos de quem as escreve –
quem lê não acrescenta cor. absorve cor – empírico – como sampaio não falo.
tenho medo. o conhecimento mata cada vez mais escritores que gostam do preto: camilo
castelo branco. antero de quental. mário de sá carneiro. trindade coelho.
florbela espanca. o caminho da verdade é um calvário que a ninguém interessa – porque
me hei de dar a quem não compreende esta atração pelo preto? o autor escreve
para si. escreve para fazer amor. e o orgasmo é a palavra que sente. é a frase
que faz sentido numa vida que é apenas dele – viver o preto é vestir luto todos
os dias pelo mesmo cadáver – sou sampaio. não sei se gostaria de ser outro
nome. mas também não interessa. escrevo a preto. preto é inexistência de cor. na
maior parte dos dias é inexistência de luz – escrevo o quanto baste para me
fazer entender. enquanto leitor sinto que o que escrevo é tudo o que posso dar
de mim. a palavra é um filho. um texto é uma família. um livro a perpetuidade.
uma bem-aventurança que não existe para gente que nasce a gostar do preto – se
o céu existisse de verdade seria preto. preto vivo. límpido. soalheiro. carinhoso.
generoso. justo e não haveria uma única palavra escrita – ninguém escreve no
céu que me impingiram nas aulas de religião e moral. nesse céu não há noite.
nem mar. nem chuva. nem lua. nem peixes. nem árvores. nem os pássaros de ruy
belo. há um deus que não me conhece – escrevo. escrevo palavras com a esperança
de perpetuar o nome que uso nos silêncios pretos – escrevo gritos que guardo no
corpo. ouço-os quando quero e quando não quero. no meio das consoantes surdas só
as vogais fechadas dão sentido a uma vida que se esgota a uma só cor. preto preto
– como se odiasse o amor grita: o amor só se faz por amor – aqui estou neste
preto que já não é luto. nem amor. é rotina. onde o prazer não se cansa de marrar
na cabeça de quem carece de escrever-se – escrevo. escrevo o momento – o
escritor é um comunicador silencioso. um hermafrodita grávido de si no tempo – escrevo
porque não desisto de ser feliz. mas mais do que ser feliz. escrevo porque
quero continuar a viver e esta é a única forma de escapar ao preto dos lutos –
tenho medo. o preto devora toda a radiação luminosa – *“mas não me toquem nesse
dor. ela é tudo o que me sobra – um homem com uma dor é muito mais elegante.
caminha assim de lado como se chegando atrasado chegasse mais adiante”
Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando
atrasado
Chegasse mais adiante
*paulo leminski
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