“o médico pergunto:
- o que sente?
e eu respondi:
“o médico pergunto:
- o que sente?
e eu respondi:
estava eu.
mais uma vez. a ouvir a narrativa angustiante de um médico italiano a trabalhar
no combate à cobid19 – à porta do seu hospital. ainda protegido com bata e
luvas. e com as marcas da máscara de proteção vincadas no rosto. confessava em aflição.
que se sentia à beira do colapso. e que não sabia quanto tempo mais iria
aguentar. estava arrasado e destroçado. e pedia desculpa por não conseguir
valer a todos aqueles que precisavam dos seus cuidados – por último. num relato
agonizante e já em lágrimas. dizia que para além de tentar salvar o maior
número de infetados. ainda era forçado a assumir o papel de deus. era também obrigado
a escolher quem vivia e quem morria porque não havia ventiladores que chegassem
para todos – sentia-se completamente exausto e reconhecia que estava a ser quase
impossível lidar com a pressão. o hospital estava num caos. escasseava tudo. desde
material de proteção. a camas. enfermeiros. médicos. medicamentos. estavam simplesmente
a fazer o que era possível – já não ia a casa há mais de uma semana. repousava como
conseguia numa qualquer arrecadação improvisada porque as camas não chegavam
para os doentes e. logo que recuperava alguma energia. voltava ao trabalho até
que a exaustão o obrigasse a parar novamente – era assim a sua vida nos últimos
dias – lembrei-me então dos jogadores profissionais de futebol e da exigência
da UEFA que com uma lei obrigava a que houvesse 72 horas de descanso entre os
jogos – e porque a memória às vezes ignora a seletividade. também preserva o
ridículo. lembrei-me daqueles programas desportivos que de domingo a domingo invadiam
as televisões com discursos de ódio e maledicência – num desses programas. debatia-se
em tom acalorado como se fosse assunto relevante. que a meio da semana realizar-se-ia
um jogo para a liga dos campeões de grande importância e desgaste – diziam
então. esses ditos senhores que em tempos passado jogaram também em campos de
futebol. o que nos leva a presumir que sabem do que falam. são. digamos. os
autoproclamados doutores do futebol – asseguram estes novos doutores do share. que
estes jogos. transmitidos para todo o mundo. são também cruciais para a
afirmação de portugal como uma grande potencia mundial no futebol. e no desporto
em geral – e acrescentavam. por esta razão. espera-se uma grande exibição e uma
vitória expressiva. tudo pelo bem do futebol nacional – o problema é que logo
no fim desse jogo de afirmação dos clubes portugueses e de portugal no mundo. e
cumprindo escrupulosamente o prazo da UEFA para recuperação física dos atletas.
este podia não ser suficiente para a recuperação total dos jogadores. pois ao
cansaço do jogo acrescentava-se o desgaste psicológico e da viagem – tal como
no mundo antigo os deuses moravam no olimpo. no mundo atual os deuses jogam nos
campos de futebol. com mordomias impensáveis para a maioria dos mortais: médicos.
preparadores físicos. massagistas. softwares de treino. viagens com transportes
especiais. hotéis de cinco estrelas. alimentação especialmente cuidada com a
inclusão de cozinheiros especializados em alimentação saudável para atletas de
alta competição. e para que não me alongue em detalhes sobre cuidados com os
superatletas. ordenados escandalosamente inflacionados que nos envergonham e nos
levam a questionar como foi possível permitirmos que isto acontecesse com pessoas
que. em boa verdade. apenas criam um espetáculo de entretenimento. tal e qual
como o circo. o teatro. a música. e outras tantas formas que nos ajudam a
esquecer aquilo que o homem criou para se aborrecer – como foi possível
deixarmos que isto acontecesse quando tanta gente no mundo morre à fome –
desculpem. mas vou tentar não entrar por este caminho de acerto de contas com o
passado. sei que este momento exige outro tipo de reflexão – o que sei é que neste
momento há milhares de pessoas. das mais variadas profissões. que continuam a
arriscar as suas vidas para que nós possamos estar em casa com medo – sim. estar
com medo e pensar no medo é um luxo que nem todos se podem permitir – voltando
à minha memória. pois bem. quando as coisas correm mal a resposta é muito fácil.
os deuses do futebol estavam cansados. o jogo a meio da semana arrasou a equipa.
estavam sem forças e conforme o tempo se esgotava percebia-se perfeitamente que
a força e o discernimento já não correspondiam à vontade – e agora senhores da
bola. quando o futebol regressar. será com o mesmo descaramento. e depois do
que viram de desgaste nos nossos profissionais de saúde. digam-nos sem aquela
arrogância de que o futebol é o desporto rei e do povo. se vão continuar a dizer que os pobres homens
estavam cansados e a pressão é muito grande? às vezes. na minha loucura de
humano. interrogo-me se estas coisas não acontecem para colocar tudo novamente
no seu lugar – o que projeta a grandeza de um país no mundo é em boa verdade o
seu serviço nacional de saúde e os seus profissionais – é reconfortante saber
que essa gente anónima existe – este nosso país é verdadeiramente grandioso - obrigado
quinze dias em casa. quinze dias sem abraçar e esta quarentena a enlouquecer-me – quinze dias de trinta. quinze dias que podem ser sessenta. e quem sabe até mais. tempo que já nem sabemos contar – o que vai ser de nós. o que vai ser da minha casa. o que vai ser das outras casas – uma mesa. dez cadeiras. dez pratos e eu a pôr a mesa para quem nunca chega – o que fez esta geração de errado? o que há em mim de errado? não sei – e mesmo que soubesse. o que poderia eu fazer em tantos cantos do mundo – sei que vou continuar a pôr a mesa: dez copos. dez talheres. dez guardanapos e os pratos a voar como anjos – como será o mundo em cada prato? em cada casa se da minha janela apenas vejo desespero – tu. tu não consegues esconder como o céu está desinteressado. deixaste-nos à nossa sorte. e esse bicho negro a encher-nos de terror. a roubar a dignidade a quem parte. a arrancá-los da vida. num silêncio impossível de suportar. de dor. sem que ninguém segure a mão. sem um beijo. sem uma lágrima presente. sem uma oração lida. sem que nada possa enganar o sofrimento. dizer adeus. pedir perdão – um dia fecho tudo à minha volta. a janela também – estou intrigado com a calmaria de algumas gaivotas na tempestade. porque não tendes medo. sendo feitas do mesmo barro? – “entrego aos cientistas a esperança de calmaria – será a nossa torre de babel? porque se esconde o sol atrás da sombra da lua? talvez castigo. talvez ablução. talvez uma outra oportunidade para alcançar o belo – estávamos todos cegos – e agora que orações tenho eu que rezar para que o mundo volte a sorrir? tenho a certeza de que. se um dia os pratos não voarem. será pelo mesmo motivo que algumas aves com asas permanecem no chão – há coisas que não nasceram para voar – desígnios? quem quer acreditar nisso? o que mudou no meu infinito? porque raio puseram esta coisa pegajosa à minha frente se o que quero é simplesmente caminhar. viver o que me falta viver. sonhar o que falta sonhar. juntar a família numa mesa daqui até itália. que passe por espanha. por moçambique. pelo canadá. pela austrália. pela índia. quero eliminar paradoxos. ligar o mundo num abraço – mas uma coisa é certa. no aperto conhecem-se os amigos… quem haveria de dizer que os meus [nossos] estão escondidos nos hospitais. e que raio de amigos corajosos tenho eu [temos nós] – que inveja terão outros – será que os merecemos? as ruas continuam com automóveis parvos para lá e para cá. como se o mundo fosse um semáforo que só se respeita quando convém – e eu amarrado à mesa a olhar para os pratos. se houvesse ao menos uma corrente de ar para os fazer voar mais uma vez. um milagre – nem uma palavra me faz abrir a boca. o medo colou-se à luz – há um abismo silencioso dentro de mim – olho e nada. e nada me faz pegar na mão e entrar pela garganta abaixo. porque tudo o que magoa está bem lá no fundo. no fundo do que sou. é lá que moro comigo e com o medo. com todos os que estão a sofrer – o mundo num passo que não corre – e nada está parado. está tudo assim assim. assim mal. nem frio. nem sol. nem chuva. só medo e desespero – não consigo desviar os olhos do amanhã – temos que resistir
sou-te assim:
de dia anjo amigo
de noite casanova
amor gizado em olhares.
nas palavras soletradas em desejo
desperta o ladino
deito-te em braços que te enrolam
luxúrias escritas em deleite
teias de gemidos tecidos
por quem sempre te desejou.
da loucura dos carinhos
nasceram os nossos pomares
germinam agora vida com brilho
aromas de primavera
sol nos nossos olhos.
já de madrugada
adormeces em sonhos de princesa
mulher volúpia.
ao acordar és sempre mais bela
vestes-te de mãe
e nos sorrisos
dizes:
a noite espera-nos
bem penteado, perfumado
lustrou o sapato, fez a barba
alinhavou nos lábios o juízo final
a cortina serviu uma fatia da noite
por todo céu
foi abril...
alinhado em fila como estrelas.
desfez o sorriso no espelho
o verbo conduzia
a sombra obedecia um tanto rouca.
(e) como um doce com sal
manteve o ar distante
dividindo os analistas.
saiu como a melhor página de um livro
pensou como um poeta:
'o tempo é louco, diminui tudo'
melhor deixar o tempo
exatamente como imagino:
roendo as unhas
reajustado pela inflação
com o nome dela disparado no coração
repousado no sofá.
pois o sofá... não vai acabar.
tenho no peito tatuada uma gaivota
e o mundo
num abraço que não consigo dar
feliz dia do pai
in ensaio sobre a matéria absurda das coisas
nota: este texto foi confeccionado antes de 17 de março
de 2019. ainda o meu agnosticismo não tinha sofrido com o abalo da morte
da minha cunhada maria josé – a sua partida abriu um novo ciclo de incertezas
sobre a minha fé. fez-me voltar a questionar deus e aceitar uma nova
cruzada de dúvidas – sei que ter fé é também ter dúvidas – confesso que ainda não
estou totalmente certo de nada. mas estou recetivo a uma nova reconquista
evangélica – saiba o senhor tocar-me – preciso de voltar a acreditar no que não
vejo – o homem é feito de mudanças e eu estou disponível para mudar –
quero acreditar na ressurreição da alma. na sua imortalidade. na certeza
de que “para deus não haverá impossíveis para todas as suas promessas.”
– a minha cunhada pisa agora o caminho da glória. vive uma nova existência
no plano celestial – sinto falta de falar com ela – um dia. quando a minha
alma estiver mais forte. explicarei como a partida da zeza me arrancou
do abismo – “na natureza nada se cria. se perde. tudo se
transforma” – a minha cunhada zeza transformou-se no meu último anjo
senhor. estou
preocupado contigo e comigo – não é nada de especial. mas já lá vão mais
de vinte e um anos [vinte e dois] desde que levaste o meu pai para junto de ti
– deixa-me dizer-te: não sei se sabes que o meu pai. todas as
noites. te entregava uma oração com o sinal da cruz – creio que não
sabes mesmo. em boa verdade. acho que já não sabes nada do mundo.
cresceu depressa demais para ti – mas não te inquietes. já passou
demasiado tempo para me voltar a aborrecer contigo – o que queria que me
dissesses. se não fosse muito incómodo para ti. é se o meu pai
está bem. se ainda está ao pé de ti. se o tens protegido.
guardado de outros males – é o mínimo que deves fazer por aqueles que te são
fiéis. ele escolheu-te. quis-te a seu lado. acreditava em
ti. na tua proteção e na tua amizade – se a família não se escolhe.
os amigos é sempre uma escolha nossa – o meu pai achava-te amigo. achava-te
de confiança – sempre respeitei as suas escolhas. era teu devoto e rezava
para que tu. no dia do juízo final. o acolhesses a teu lado –
queria vida eterna – espero sinceramente que não o tenhas desiludido – já comigo
não tens com que te preocupar. escusas de me guardar lugar. fui
purificado com a tua água. mas morrerei seco e em pecado – perdi toda a
confiança em ti. nas tuas rezas. nas tuas leis e nos teus
discípulos na terra – não te perdoo o que lhe fizeste. melhor. o
que nos fizeste – a dor que lhe infligiste foi também a nossa dor – as boas famílias
cristãs são assim. sofrem e riem juntas – nós éramos uma família.
uma comunidade familiar de fé. de esperança. caridade e afetos – as
nossas orações quotidianas deveriam reforçar a tua bondade. a tua atenção.
o teu perdão e a tua misericórdia – o meu pai amou-te.
amou a sua esposa. os seus filhos. o seu semelhante. o meu
pai cumpriu os teus mandamentos e. quando errou. como homem concebido
do barro de adão. teve a humildade de te pedir perdão pelas suas
fraquezas. de se ajoelhar e apelar à tua infinita misericórdia – e tu
que fizeste? uma família cristã é evangelizadora e missionária. o que tu
fizeste foi acabar com a minha fé. terminaste com a evangelização da
minha descendência – fechei-te a porta. a ti e à tua religião – eu sei
que tinhas de levar o meu pai como fazes com todos os outros. mas não
ficaste satisfeito só em levá-lo. tiveste que lhe roubar a alma.
as memórias. e a derradeira oportunidade de lhe falar pela última vez – eu
sabia que o ia perder. mas não em silêncio – um filho nunca é adulto enquanto o
seu pai viver – eu não queria ser adulto. queria ser dono do tempo e caminhar
pelo meu tempo calmamente – queria falar-lhe de nós. falar-lhe de mim.
do meu mundo. daquilo em que acreditava – os jovens acreditam em
cada coisa mais tola – confesso que o que queria mesmo era o seu perdão – era
demasiado jovem para a sua sabedoria – queria dizer-lhe que gostaria de ter
nascido mais cedo. de o ter tido mais tempo a meu lado. queria
ser mais velho só para ele ser mais novo – um homem velho é sempre mais sábio –
na juventude o coração perde-se em tudo e em nada. quase sempre sem critério
nem valores. nunca percebi que metade de mim era dele – e eu sem saber
que os corpos desaparecem enquanto a existência nos distrai com ruas e projetos
que nunca chegarão a lado nenhum – os beijos que não lhe dei multiplicaram-se
com a saudade e são agora uma inquietação permanente – que saudades tenho de ti
meu pai – se eu te pudesse explicar a minha vida. explicar o tempo que
gastei por aí. tenho a certeza de que me irias compreender. e me
dirias que a terra prometida não existe para quem quer fazer coisas – dirias
que ambição são sonhos que se podem realizar. dirias que é bom sonhar e
ser jovem – tu sempre gostaste da juventude – vinte e um anos [vinte e
dois] e as noites ainda escurecem com o teu nome – quando partiste ainda não
era capaz de perceber como o tempo passa a correr. só quando
envelhecemos compreendemos que o amanhã é quase sempre tardio para quem não faz
o que deve fazer – há um momento certo para tudo – sabes deus!! o meu pai era
um homem fantástico – nunca compreendi muito bem esse teu gesto miserável.
essa canalhice. esse roubo ignóbil. calculista e maquiavélico.
o meu pai era um homem bom. de quem toda a gente gostava. e não merecia
morrer sem que pudesse levar um sorriso de quem o amava – desculpa senhor.
mas para ti o perdão ainda é um sentimento que renego – mas deixa-me dizer-te.
com o envelhecimento acabei por amolecer. já não sinto aquela sensação
de raiva e rancor. aquele mau estar quando ouço o teu nome. há
dias em que não sinto mesmo nada. só não te quero por perto. não
te quero dar a outra face – nunca percebi por que razão um homem magoado tem de
o fazer – que se lixe. és o que és. e eu sou o que sou. e
não faço questão nem de mudar. nem de esquecer – o que me intriga.
é que desde que abandonei a tua casa. logo após cobrir o meu pai com
terra sagrada. nunca mais te vi por perto – a minha dúvida é a seguinte:
será que te pesou a consciência e percebeste que não agiste bem com a nossa
família? ou não aguentaste a tampa e ficaste enfunado? confesso que às vezes
acontecem-me coisas para as quais não encontro explicação. ocorre-me que
alguém com a tua personalidade se sinta ressabiado e goste de provocar – vamos
lá esclarecer esta coisa de uma vez por todas: eu não te quero mal.
confesso que não sei porque não te quero mal. sim. depois do que
me fizeste eu deveria ter ido por esse mundo inteiro anunciar que na tua boca
não há verdade. mostrar como não és de confiança. afinal um
trafulha é sempre um trafulha. quer esteja no céu. ou na terra – que
se lixe tudo senhor. que se lixe o passado e as tuas trafulhices – quero
tranquilidade. quero paz para mim e para as memórias do meu pai – se um
dia não tiveres onde pernoitar quero que saibas que a minha casa está à tua
disposição com água e pão. não terás que recorrer a nenhum dos teus
milagres para saciar a fome e a sede – tens uma única condição. não podes
falar de religião – falamos de bola. de política. do preço das
coisas. sei lá. conversamos como se eu ainda fosse criança – tu
sabes que sempre gostei de ser criança. são inocentes e acreditam
em tudo o que lhes dizem – vê lá bem que até me fizeram acreditar em ti – pobre
da miudagem – se realmente é verdade que és omnipotente e misericordioso. então.
és obrigado a perdoar-me. és obrigado a perdoar todos aqueles que
pecaram por pensamentos. palavras. atos ou omissões – espero que respeites
de uma vez por todas o meu agnosticismo – esquece estes últimos vinte e um anos
[vinte e dois]. esquece que um dia pertenci ao teu rebanho – deixa-me
viver a minha condição de pai. deixa-me amar os meus filhos – nunca
deverias ter levado o meu pai sem que ele me dissesse o que um pai diz ao filho
quando se ausenta: tem cuidado. toma conta da tua mãe. não
te esqueças de apagar as luzes à noite – tudo o que me resta é aquele beijo frio.
gelado – quero avisar-te que se me tentares roubar a alma e a memória.
com as mesmas artimanhas que usaste com o meu pai. não vai resultar
comigo. já deixei recomendações da minha última vontade. deixei
tudo escrito – não me levas para lado nenhum. não somos amigos –
entretanto. mantenhamos a cordialidade. bom dia e boa tarde –
vemo-nos nos casamentos. batizados e funerais – o resto já sabes…
I.
abraço-me. abraço-me num abraço absurdo – que autoestima
existe num abraço absurdo? que dúvidas farão de mim um recomeço? a
irracionalidade de um abraço absurdo é quase sempre desespero. e dor – procuro
no absurdo justificação para uma tristeza que às vezes se cola como um hábito
que vicia – sabe-se hoje que a genética interfere na herança dos vícios – cada
vez acredito mais que nasci viciado numa dependência de cocktails absurdos –
talvez sofra do síndroma de abstinência neonatal – não me lembro de viver sem
um absurdo por perto – porque raio não param de me acontecer estes absurdos excêntricos – talvez
o diabo me tenha tomado a alma à nascença. infetando-a de medos e horrores
absurdos – talvez deus me tenha posto
neste caminho absurdo apenas para me purificar de outras vidas – que raio trago
no corpo para que deus ou diabo se interessem por alguém tão estupidamente
absurdo – sim. eu tornei-me num absurdo sem deus nem roque e o que temia
sobreveio-me – toda a vida é um absurdo incontrolável. um segundo mais tarde
perde-se o comboio. um segundo mais cedo seríamos esmagados pelo mesmo comboio
– em cada segundo cabe uma enormidade de absurdos – somos o que somos num tempo
incrivelmente egoísta. ninguém quer saber o que te levou a viver em absurdos.
ou porque foste tu e não outro o parceiro perfeito para os absurdos – não
acredito no destino – tudo vazado de um caldeirão de humanos. contaminados pelo
absurdo das suas diferenças. onde ninguém é igual a ninguém e. no entanto.
todos parecem tão iguais – não escolhemos viver assim. na fragilidade do
nascimento somos infetados por um mundo absurdo – sou o gozo estúpido de um
espermatozóide. eram mais de mil… absurdamente o que chegou à vida fui eu – não
há dia em que não me interrogue o porquê desta vida absurda que me consome numa
labareda que só eu sei que existe – bem sei que as dúvidas absurdas confirmam a
minha existência primitiva – perdoe-me deus ou diabo. mas só eu posso alterar o
que vive e sinto em mim – bem sei que já não sinto grande coisa – um homem é sempre
o que sente e. mesmo que duvide do que acredita sentir. não pode deixar de
acreditar. por mais absurdo que lhe pareça esse sentir incerto: às vezes amor.
outras. apenas indiferença… ou ainda um absurdo de coisas que não se explicam.
sente-se. e sabe-se – é na dúvida que se encontra a certeza? a dúvida existe
para nos dar certezas? que absurdo se tornaria o meu mundo se um dia perder as
dúvidas sobre mim – quero continuar a viver este meu mísero e triste absurdo.
quero continuar a duvidar. quero que o tempo que me resta seja todo ele de
enormes incertezas absurdas – “antes morrer de pé do que viver de joelhos” –
que cabeça não se permite duvidar? como se para se ter dúvidas do absurdo.
fosse preciso o corpo viver no mundo das invenções. dos aviões. dos relógios
atómicos. dos foguetões e das balas que continuam a matar aqueles que já
morreram várias vezes de vergonha – confesso. tenho medo e vergonha do que
penso. porque tudo o que penso quero que exista. e tudo que existe é um absurdo
que só faz sentido na minha cabeça – tenho raiva do presente. e vergonha do
passado. mas nada tenho para o amanhã. a não ser fabricar na minha cabeça
absurdos inimagináveis – nada das coisas que imaginei morreu em mim porque o
tempo das coisas não é de quem pensa. mas sim de quem faz – ainda quero fazer
milhentas coisas. mesmo que absurdas pareçam – a felicidade e a tristeza
alimentam-se do pensamento. mesmo quando absurdo – penso. logo sou absurdo –
utopia é acreditar que um dia todos os meus absurdos o deixarão de ser – nunca recusarei
ser o que sou. mesmo que o absurdo em mim possa parecer loucura
II.
vivo agora também a dúvida absurda do silêncio – o silêncio
preenche todos os vazios. traz bondade. dignidade. perdão e quando chega o
barulho das dúvidas absurdas… já não tem força. nem tamanho para ferir – não
deixa de existir. não. torna-se apenas num barulho menos barulhento. mais
humano. clemente. mais compreensivo. e generosamente vai repetindo ao ouvido.
numa serenidade completamente absurda: estás perdoado por toda essa vida
absurda – e o eco das palavras a embalar-me num sono de criança. talvez a síndroma de abstinência neonatal
continue a fazer das suas. um viciado não se cura nunca. a falta do cordão
umbilical existirá até ao último suspiro – talvez esta resistência à loucura do
absurdo seja o que me mantém vivo. ou então. é a forma que encontrei para vos
dizer que ainda tenho dignidade para suportar os vivos – talvez a dúvida
absurda exista porque eu existo no silêncio – sem o silêncio da noite não sou
nada – na dúvida absurda do silêncio posso correr para o outro lado de mim e
não encontrar nada ou… encontrar todo o barulho do mundo: os meus amigos a
jogar à bola. o carro a acelerar. as máquinas a trabalhar. os filhos a chorar.
a mãe a chamar. e o pai a apontar para o absurdo dos nossos antepassados – e a
mente que cria as tempestades absurdas pede uma última certeza que não seja
absurda. e corro por todo lado e em todo lado me encontro com as mesmas marcas
no corpo. as mesmas dúvidas absurdas – será que não há uma alegria absurda
perpétua? não tenho onde me esconder. e as tempestades não param porque não
consigo deixar de pensar nos absurdos da minha vida. não consigo deixar de
duvidar do que fiz – confesso. não sei se a culpa é minha por me tornar num
absurdo. ou o absurdo é um cabrão sem piedade que me injeta doses maciças de
inverdades. insegurança. hesitações e medos – o pior disto tudo é que não
consigo fugir da inverdade. da insegurança. da hesitação e do medo – sofro.
fugir de sofrer é já sofrer – não consigo deixar de viver onde cresci – sou um
todo e mesmo que me divida em silêncio ou barulho. em irreal ou real. em fé ou
desconfiança. em deus ou ateu. em luz ou negrume. serei sempre eu. e mesmo
morto continuarei a ser eu. ninguém me apagará do universo – também eu
alimentei o absurdo da vida. também eu fui de casa em casa. amigo em amigo.
trabalho em trabalho. sonho em sonho. em
paz ou irado. ajoelhado ou de pé. com deus ou com o diabo. tudo dentro de um
destino que não escolhi – nunca poderia ser pescador. porque nasci sem mar.
sonhei-o muitas vezes. visitei-o. senti-o quando a cada mergulho me fiz água.
nadei como os peixes. mergulhei como os golfinhos. fechei-me numa garrafa e
percorri todas as correntes do mundo com mensagens absurdas. no entanto. a
minha casa não cheirava a mar. cheirava a couro e a dor. os barcos eram
máquinas e os pescadores eram operários – o absurdo é que amo as máquinas e o
mar – tenho no peito tatuado uma gaivota e o mundo num abraço que não consigo
dar – aristóteles dizia que todos os seres existem para um fim – a minha dúvida
é se há fins absurdos – o que faz um homem num desespero absurdo? olho para mim
e interrogo-me se sou o que quis ser. ou sou o que me rodeou? o que fiz fez-me.
ou sou o que sou porque não fiz o que deveria ter feito – há um limite para
tudo. há um limite. mesmo quando não há respostas para o que queremos saber –
há um limite até para os absurdos – também eu fui castigado como sísifo. e a
pedra no sopé da montanha todos os dias a crescer. e o absurdo das coisas em
mim a roubar-me as forças para carregar o que mais ninguém vê – uma pedra enorme
no sopé de uma montanha absurda – porque me deram uma montanha se o que sempre
desejei foi apenas o que sentia em mim? e o raciocínio perdido num sacrifício
absurdo. em dor. em raiva. em desespero. maior que qualquer montanha absurda.
maior que a pedra de sísifo – elimino o absurdo que nasceu comigo? seria eu o
mesmo sem ele? ou o absurdo é a minha pedra. que carrego e não chega a lado
nenhum – infelizmente a eutanásia não se aplica a quem sofre de coisas absurdas
– tenho que viver
III.
não tenho inveja do que não alcancei. talvez um traço de
azedume. ou arrependimento. mas não posso alterar o passado – serei o que o
destino quiser. continuarei a erguer-me do chão quando cair – não me posso
zangar por aquilo que errei quando pensava estar certo – cada época tem as suas
certezas absurdas – não posso continuar a amar quem não respeita esta minha
forma absurda de ser – não posso aceitar calado tamanha humilhação – não posso
respeitar quem não acredita que o absurdo existe. como nas “brujas. no creo.
pero que las hay. las hay” – prefiro morrer sozinho. prefiro morrer a falar
comigo. a explicar-me até que o último sopro me despedace esta absurda certeza
incerta que vive comigo. como vive o coração. que bate como o coração. que voa
como as gaivotas. que chora como os homens – escolhi sempre o melhor absurdo.
não o menos arrojado. mas aquele que no futuro me faria honrar todo o passado –
às vezes a justiça do passado faz-se apenas com uma única absurda certeza
incerta – estou aqui meu querido absurdo. quero honrar-te também. quero
fazer-te existir como mestre de uma arte que. por ser absurda. só poucos
reconhecem – o absurdo não existe apenas porque eu nasci. mas confesso. às
vezes até que parece – se deus não me receber no dia que chegar ao céu. que as portas do inferno se abram para que
possa caminhar sobre as chamas. pois esse será o meu último absurdo – se no
passado abandonei o divino. hoje. ajoelho-me com fé. e peço humildemente a deus
que ilumine com sabedoria esta minha última viagem. absurda ou não – quero
morrer em paz. e que a minha alma suba ao céu enaltecida. mesmo que seja apenas
por causa dos absurdos – quero confiança. saber e um bom destino para aqueles
que deixei no teu quintal do mundo – mas se nesta última caminhada. perceber que
fui eu o único culpado do absurdo existir. então. que me reste saber e memória
para o escrever com a maior crueldade que trago nas mãos – eu não me encerro em
mim. não sou o fim do mundo. sou futuro naqueles que. mesmo por caminhos
errados. fui capaz de trazer à vida – e o sagrado perpetuou-me