dezasseis de
setembro de 2019. segunda-feira. oito da manhã – liguei a dizer-lhe que estava
à porta de sua casa – era a primeira vez que acompanhava a minha cunhada maria
josé ao instituto de oncologia francisco gentil. a sua irmã. que esteve
presente em todas os estágios da doença. desta vez. não pôde acompanhá-la –
ajudei-a a entrar no carro. tudo com muito vagar e cuidados. ajudei-lhe as
pernas para o seu interior. coloquei-lhe o cinto de segurança. e num esboço
ténue de sorriso recebi um obrigado cansado e sofrido – esta não era a minha
cunhada que conhecia desde os seus onze anos. uma criança – rapidamente percebi
que a sua situação era crítica. a sua debilidade dava mostras claras de que a
doença estava a avançar descontroladamente. e a ganhar a batalha da
sobrevivência – toda a família sabia que a sua doença era terminal. toda menos
a zeza – a zeza continuava a acreditar na ciência. na fé. e na sua incrível
vontade de viver – no entanto todos aqueles que a conheciam. recusavam aceitar
que ela não fosse capaz de vencer o cancro. acreditavam que com a ajuda dos
novos fármacos. das novas tecnologias hospitalares. da quimio. e dos excelentes
profissionais a que estava entregue. ou pelo menos. ganhasse mais uns anos. e
se tudo falhasse. ainda queríamos acreditar que deus tivesse guardado para si
um dos seus raros milagres – iniciamos a viagem. e entre ais e algumas poucas
palavras. lá fomos fazendo o caminho ao encontro da salvação. o instituto de
oncologia – eram apenas cinquenta quilómetros. mas o raio da viagem parecia que
não tinha fim – as palavras não me saíam. e a cabeça em roda livre-magoada
interrogava-se: o que dizer? para agravar todo este mal-estar o meu maior
handicap. não sou nada bom a disfarçar emoções – precisava de pelo menos
fingir-me forte. fiz o que me era possível – limitei-me a pedir-lhe que não
desistisse. que iria conseguir terminar os tratamentos. que tinha que manter a
fé e. principalmente. que se alimentasse. mesmo que lhe custasse imenso.
precisava de energia e forças para aguentar a quimio – ao chegar ao hospital
deixei-a na porta de entrada. fui estacionar o carro. e em passo acelerado
tentei chegar o mais rapidamente ao seu cuidado – já não tinha forças para se
deslocar sozinha. estava mesmo muito debilitada – encontrei rapidamente uma
cadeira de rodas. e fomos a alta velocidade ter com a sua médica – ainda
esperamos cerca de vinte minutos pela doutora. o que me parecia uma eternidade
para quem estava a ser corroída pelas dores – finalmente a doutora apareceu.
aquela casa está a abarrotar de zezas
- bom dia maria josé
- bom dia doutora
senta-se em frente à zeza. à
distância de um braço. faz-lhe uma festa na face. a zeza esboça um sorriso. os
olhos enchem-se de esperança. enquanto eu me mantinha de pé. logo a seu lado. à
distância também de um abraço – a zeza começa a descrever os sintomas dos
últimos dias. queixa-se de muitas dores. e de um desconforto generalizado que
não a deixa sossegar
[uma interrupção-silêncio
emerge naquela sala de luz branca. há um prenúncio iminente de tragédia]
por fim a zeza pergunta-lhe:
- o que pode fazer para me
aliviar as dores
- as dores. maria josé.
vamos tirá-las rapidamente… vamos dar-lhe medicação para a sossegar um pouco
- quero retomar. o mais
rapidamente. o tratamento da quimio [tinha sido interrompido]
- maria josé… não vai fazer
mais quimioterapia. não está a ter os resultados que esperávamos
- não vou fazer mais quimio
doutora?
- não. maria josé. como lhe
disse os tratamentos não estão a resultar. faz-lhe mais mal do que bem… não há
sinais de melhoras
- e agora… o que faço então?
- nada maria josé. lamento.
mas não há mais nada a fazer
nunca mais esquecerei aquela
expressão facial da zeza. acredito que tenha pensado muitas vezes no seu fim.
ela mesmo confessava que cada vez que regressava ao hospital se sentia pior.
mas esta era a primeira vez que uma médica lhe dizia que a ciência não tinha
solução para o seu mal – as lágrimas saltaram-lhe com a violência de um oceano
enfurecido. o corpo revoltou-se em espasmos de inquietude. os olhos abriram-se
num terror desesperado. projetando-os para a frente banhados de piedade. como
se quisessem calar a médica. matar aquela verdade – não queria acreditar.
talvez fosse um daqueles sonhos em que se acorda no preciso momento em que o
gigante nos vai pisar – mas não. infelizmente aquela era a verdade que eu já
sabia e tudo fiz para esquecer – e o pé do gigante esmagou-a – foi um dos
momentos mais difíceis da minha vida. perdi o meu pai e a minha mãe em
situações difíceis. mas nenhum deles ouviu da boca de um médico a sua sentença
de morte – foi tudo muito difícil. o pé do gigante também me esmagou –
confesso. ainda continua a esmagar – por último. dobrou o corpo para a frente.
e enfrentou a médica com o que lhe restava de forças
- senhora doutora. não pode
fazer mais nada por mim? eu não quero morrer
- não. maria josé – nós
médicos também perdemos pessoas de que gostamos muito. pais. filhos. amigos. e
não podemos fazer nada – a sua doença é muito grave e infelizmente os
tratamentos não surtiram efeito – momentaneamente. um silêncio de morte tomou
conta daquela sala pintada de luz branca. foi como se lhe tivessem tirado todo
o ar de dentro do consultório e ficássemos todos à deriva no espaço sideral –
não sei quanto tempo durou esse silêncio. mas pareceu-me mais do que uma vida –
foi o suficiente para que o futuro desaparecesse de uma só vez. com uma única
frase: não há mais nada a fazer – uma estaca entrou-lhe no peito e disse-lhe
com a maior crueldade do mundo: acabou. não vais mais viver com o amor da tua
vida. não vais levar a tua filha ao altar. não serás avó. não verás mais os
teus pais. a tua família. os teus amigos. e os teus cães – que brutalidade. a
zeza não merecia. estava numa nova vida. estava a aprender a ser feliz
- senhora doutora!
- acalme-se maria josé
e a caixa de lenços de papel
à mão. afinal era apenas mais uma zeza entre tantas – aquela caixa de lenços
estava ali para todas as zezas que se despedem da vida por causa do cancro [só
que desta vez era a nossa zeza]
- tem que compreender que os
médicos fazem o que é possível. não temos superpoderes
aos cinquenta e um anos
ninguém deveria ter uma doença incurável. tão nova. tão bonita. com tanta
bondade. levou toda a sua vida à procura da felicidade. e quando a tinha
encontrado. zás. cai a guilhotina – sempre soube dessa sua procura. dessa
vontade de emancipação. de ser amada. desejada. de ser mais bela do que a
branca de neve. de ser reconhecida pela generosidade. pela criatividade
artística que herdara do seu pai. queria um poema de amor para sua vida. o seu
mundo era um paraíso – eu conhecia-a como ninguém mais a conhecia – sabedor
desde o primeiro momento da gravidade do seu mal. fui também apanhado de
surpresa. ainda era demasiado cedo. tinham-lhe dado um ano. mais mês. menos
mês. e ainda só tinham passado cinco meses – perdi-me de mim. fugi da mente e
escondi-me na escuridão que me acompanha para todo o lado – não sabia o que
fazer. o que dizer. não podia chorar. não me podia amarrar à minha zeza. nada.
fiquei sem valer nada. era o homem mais insignificante do mundo. miseravelmente
insignificante. um homem despido de tudo. como no momento em que cheguei ao
mundo – não podia valer à minha cunhada. da mesma forma que não pude valer à
minha mãe. e ao meu pai que sofreu os horrores do inferno – creio que fui o
primeiro a perdê-la
- vamos tirar-lhe as dores e
verá que se sentirá muito melhor – irei providenciar um quarto. instalá-la o
melhor possível. e aliviar-lhe rapidamente esse sofrimento – a enfermeira virá
tratar de si e. logo logo. vou ter consigo
já na sala de espera
sentei-me ao seu lado e demos as mãos. olhou para mim com os olhos mergulhados
em medo e chorámos os dois. Em silêncio absoluto – estávamos os dois a morrer
de medo. só que o seu medo era demasiado grande para aquele corpo tão
debilitado. valia-lhe a roupa e o brio. que mesmo minada pelo sofrimento.
sempre fez questão de se arranjar com elegância. com orgulho de ser mulher – a
zeza sempre gostou de ser mulher
- não chores zé luís
como é que não se chora. que
mais podia fazer eu do que chorar e segurar-lhe as mãos – a enfermeira chega
com a notícia de que ainda não havia quarto disponível. mas instalá-la-ia numa
cama de enfermagem. e começaria logo ali com o tratamento – com muito custo a
enfermeira deita-a. cobre-a. aconchega-a à roupa da cama. e enquanto preparava
a medicação. a minha zeza pega-me nas mãos e acaricia-mas num sorriso tranquilo.
doce. num sorriso de quem tinha acabado de perder uma guerra e finalmente
poderia descansar – e ali ficámos. parados no tempo. a olhar um para o outro.
sem que a boca tivesse necessidade de dizer o que quer que fosse. afinal eramos
amigos há muito tempo – a enfermeira está de volta com a medicação. e enquanto
lhe procura uma veia pergunta-lhe:
- quem é este senhor
- é o meu cunhado. é o meu
sol. é o meu maior amigo
e não ouvi mais nada porque
me deitei no seu peito a chorar. perdido na sua bondade. enquanto me passava a
mão pela cabeça – choramos os dois pela última vez – saí do seu pé para a
enfermeira continuar os preparativos mais íntimos. a todo o momento era
transferida para a sua última morada em vida – quando voltei pediu-me o
telefone e ligou para o amor da sua vida – depois de desligar disse-me num tom
de voz sereno: mais uns minutos e o eduardo já estará aqui comigo – ficamos
mais uma vez os dois em silêncio. não há nada que se possa dizer nestas
situações – não aguentei. despedi-me da zeza com dois beijos e a promessa de
voltar com a irmã – só queria fugir daquele hospital. queria esconder-me.
queria esconder o mundo e apagar aquela manhã para sempre – mal entrei no carro
chorei e pedi ajuda a deus [nem sou muito crente]. tinha que desenganar a irmã
– no dia seguinte voltei com a maria joão. mas a zeza estava tão sedada que já
não abria os olhos. apenas mantinha alguns estímulos às vozes – voltei a sair e
dei comigo a pensar o que já tinha ouvido um milhão de vezes: a vida é tão
volátil – nunca me passou pela cabeça que no espaço de vinte e quatro horas a
zeza ficasse em estado terminal. acreditava que estaria no hospital mais uma
temporada em tratamentos paliativos. e quando estivesse um pouco melhor. viria
mais uma vez para sua casa. um pequeno milagre da medicina. uma última oportunidade
para se despedir do seu companheiro. da filha. dos familiares. dos amigos. e
dos seus cães que tanto amava – a zeza amava os animais – mas não. tudo
terminou no dia seguinte. como tudo termina para quem tem a ousadia de nascer
2. depois de
precisava
imenso de escrever este texto. desde o dia do seu falecimento que me mutilo.
arrependo-me amargamente de um único momento nessa manhã perversa: saí cinco
minutos antes de ter chegado o seu companheiro – sei que foram uns míseros
cinco minutos. mas também sei que nunca a deveria ter deixado sozinha. nunca –
agora não paro de imaginar o medo que sentiu durante aqueles cinco minutos. sem
uma mão. sem um rosto. perdida numa casa de dor. onde o silêncio magoa mais do
que a doença – perdoa-me zeza. não fui tão forte como tu. fugi. fugi como fogem
os covardes. deixei-te sozinha no momento em que mais precisavas de alguém – em
minha defesa a minha ingenuidade: não imaginava que partisses em pouco mais de
vinte e quatro horas – tínhamos prometido um ao outro um gelado. uma conversa.
sei lá. falarmos das coisas que sempre soubemos falar. eu era o teu confidente.
sabia de ti o que mais ninguém sabia. e tu também sabias de mim coisas que mais
ninguém sabia – tenho tantas saudades tuas. das tuas gargalhadas. do teu
sorriso. da tua ingenuidade. da pureza da tua alma. de ti. assim como eras –
tenho raiva de tudo o que te aconteceu. e nem acreditando que te
encontres junto ao criador. numa outra vida plena de alegria e paz. não me
apazigua esta revolta. esta injustiça. esta cicatriz que carrego – devias ter
envelhecido. merecias ter envelhecido com alguém ao teu lado que te amasse e
respeitasse
3. epílogo
faz para
abril dois anos que a zeza tomou conhecimento da sua doença. parece que foi
ontem – o tempo da saudade é uma coisa estranha. tão depressa nos traz a zeza.
como se evapora para o que não alcançamos – entendi que esta era a melhor
altura para tornar este texto público. não por mim. eu já não posso mudar nada.
mas por todos aqueles que acompanham os seus doentes aos hospitais – sei que
aonde quer que a zeza se encontre. estará com toda a certeza. a sorrir. a
gargalhar. e a andar de um lado para o outro em cima dos seus tacões. a
resmungar com as mãos – quando se entra doente num hospital. com uma doença tão
grave como a que a zeza levava em si. nunca podemos dar o dia seguinte por
certo – aprendi naquela casa de cura e de morte. que a morfina depois de entrar
nas veias tira as dores. mas também tira a vontade de viver. esvazia o coração
dos afetos que nos ajuda a lutar pelo impossível. um género de uma antecâmara
da morte. uma corrida para esgotar o coração. enquanto os familiares se
preparam para a dor da despedida – a vida é mesmo isto. aprendizagem crua. e é
com este novo saber que vos posso garantir que se tudo se voltasse a repetir.
tudo seria diferente. teria aproveitado esses cinco minutos para a abraçar.
para lhe dar as mãos. para partilhar o silêncio. para estar ali. tão simples
como isso: estar ali. estar ao seu lado – pedia-lhe que fizesse daqueles cinco
minutos a nossa eternidade – a tua recordação é agora a presença eterna em mim.
viverás para sempre na nossa casa. na nossa família – ninguém te esquecerá –
neste texto não procuro perdão. nem compaixão – apenas paz
P.S. – tenho um orgulho
imenso nas suas irmãs: teresa e maria joão – o seu amor incondicional esteve
presente em todas as fases da doença – a zeza teve as melhores irmãs do mundo.
os seus pais estão orgulhosos. nós todos estamos orgulhosos. e os seus filhos
cantarão o seu amor por muitas. e muitas gerações
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