24/11/2025

carneiro

 



nota de autor

este é um exercício de reconhecimento. do homem que sou. feito de faísca. impulso e verdade – a minha combustão interior – é menos sobre o zodíaco e mais sobre mim. sobre o que me move. me inquieta e me cria -  um carneiro que existe na coragem de começar

 

o que se pode dizer sobre um homem carneiro? – não sei – mas o que posso dizer sobre mim – é o que sei – falando sobre mim. não há necessidade de acrescentar mais um signo – às vezes sinto-me desconectado do universo. perdido. como se fosse um cometa a fazer a sua orbita. giro e giro e nunca chego a lado nenhum – é assim que me sinto. um pé na terra. a cabeça na lua – e as mãos a tocar o sistema interestelar – sou do primeiro signo do zodíaco. logo trago comigo a vontade da faísca – incendiar para começar. não importa arder. o importante é começar – depois logo se vê até onde chegam as labaredas – este impulso criador é a essência do que sou. tudo se move na vontade de criar. de inovar – de encontrar solução para o que à primeira vista se esconde do possível – todos os dias preciso de começar alguma coisa. não importa o que seja. pode ser um pensamento. um projeto. uma ligação espiritual – o que sei é que vou de alma. a cabeça vem mais atrás – preciso é de acreditar. tem de ser executável – empírico – a rotina destrói-me. o movimento salva-me. e em silêncio encontro sentido -- o risco é parente do sucesso – o zodíaco diz-me que faço fronteira com touro – por isso dizem que sou menos impulsivo e mais estratégico – mas intenso continuo a ser – menos impulsivo não sei. nunca me deram fita métrica para medir o seu alcance – mas creio que mesmo com menos ainda será muito. a impulsividade deixa-me muitas nódoas negras no corpo – e confesso. como forma de perdão. que deixo algumas também em quem me desafia – nem sempre a uso em proporcionalidade – às vezes um tornado de palavras. outras um ventinho fininho. a ferir a epiderme – quanto à estratégia. talvez. nem sempre com bons resultados. mas sempre fiel ao pensamento. e por isso. se há culpa nas minhas falências estratégicas. emocionais ou profissionais. não é minha culpa. é da estratégia que não se alimenta na medida certa do que o mundo oferece – mas apesar de tudo visto-me de verdade – do trabalho feito – do gesto que me torna reconhecido – e principalmente. porque não vivo sem amor. da sua correspondência – reconheci-me a primeira vez com a hora do zénite. o sol entrou-me com fome. e dele retirei a primeira energia para me tornar um sobrevivente – tomei o primeiro leite e senti pela primeira vez o toque da pele que nos cobre. e nos braços da minha mãe a voz que me abraçou. e do nome que me calhou a certeza de que nunca mais poderia ser mais ninguém senão quem sou – nasci para ser líder de mim – e brilhar apenas pelo exemplo – mesmo que não seja do tamanho que imaginei. mas é dentro do que sinto. a obrigação de me sentir reconhecido – carrego comigo o peso da verdade – e essa não tem medida – é do meu tamanho – e dos olhos que a veem – cresci. e comigo a vontade de saber de todos os livros. e o que não sei. é por falta de tempo. talvez se tivesse mais mil anos pela frente. eu pudesse saber tudo de mim. e só se sabe tudo de nós quando sabemos tudo dos outros – a mediocridade abala-me. às vezes até desfaleço. mas o que mais me incomoda são aqueles que sabem tudo – e de tudo se fazem – e com tudo me importunam – não procuro aplauso. posso até ser generoso. mas que ninguém me fique a dever – o que dou é o que me sobra da vida que construí. o que exijo é apenas gratidão por fazerem parte do mundo onde cresço e aprendo – e aprendo com todos – nunca percebi porque trouxeram um carneiro para o zodíaco. talvez por ser herbívoro. talvez pelas suas marradas com aqueles chifres de refilão – não sei. mas para ser abril. é porque trouxe a liberdade dos recomeços. o confronto dos ideais. a busca pela completude – abril é o eterno retorno da vida que regressa do frio – sei agora que não poderia ter nascido num noutro qualquer mês – confesso que também não aceitaria. fugiria até ao dia que me acolheu – não é por maldade. é por ser o que sinto. e sempre que sinto sou frontal. honesto. às vezes bruto. às vezes visceral. mas é o que sou e sinto – nunca me ensinaram a esconder nada. nem o zodíaco. por isso. fico no que não sou – às vezes besta. às vezes vulcão. às vezes carrasco – mas como sou metamorfo. tudo me passa rapidamente – o que explode para lá. implode para cá – ficam as lembranças com os seus ensinamentos – e o rancor. quem me dera tê-lo – ensinaria a mente a não cair duas vezes no mesmo erro – gosto de mim. porque sempre que gosto eu avanço um espaço. e sempre que avanço o universo cresce. fico sem medo. e quando fico sem medo. sinto-me mais perto dos que trago por bem – as pessoas constroem-me. iluminam-me. e em cada uma uma vida que desconheço. e mais do que uma desculpa para o que não entendo. a certeza de que o erro compensa o caminho – eu sou hoje o caminho do amanhã – ser melhor é uma missão impossível de concretizar. mas o importante é capturar os espaços vazios – enfrentar o vazio é a grande missão terrena – o único que a morte teme – kant disse que o bem é a vontade pura – o gesto sem cálculo – a boa vontade como bem moral absoluto. o único bem incondicional – não depende das consequências. nem de desejos. nem de inclinações – agir por dever. por respeito à lei moral. é o que faz a ação ser boa. e quando a ação é boa. todos os erros merecem perdão – o pedido de desculpa só deve existir quando não agimos pelo bem. porque é a razão que compensa o erro –- e é por ela que estamos perdoados – no amor tem o seu grande calcanhar de aquiles – todo o amor é criação. o desejo só existe se houver obra. o que quase sempre quer dizer deusa – é quando surge uma vontade de se incendiar. e das cinzas renasce cada beijo ou abraço – gosto de ti porque em nós não há sombras – nada no amor é para amanhã. a palavra amo-te não espera – tudo é urgência – porque tudo nele arde – beijar – abraçar – contemplar – tocar – depois… fundir-se com a amada é um gesto único – tão único como ela – porque não há mais ninguém a não ser a amada – o carneiro é homem de uma só mulher – tudo nele é movimento – todo ele é o dia seguinte – e mesmo sem luz ou vento. segue o destino que o coração desenhou – tanto faz se vai para longe – o agora é a certeza absoluta – e se um dia acabar. tombará como fruto da árvore do amor – é o amor que o sustenta. todo ele é movido a paixão. a mel. a carinho. mas sempre com reconhecimento de que nada seria igual se não existisse – existir só faz sentido quando os olhos se tocam sem querer possuir. dar é a sua razão. sobretudo se não tiver medida – é no dar que ele existe – é no impossível que cresce a faísca – amor tem sempre que ser livre e genuíno -- onde o tempo só serve para acrescentar desejo –- e assim chego ao fim do que é ser um carneiro de abril – existo num estado de começar. agir antes de temer. e acreditar que em cada gesto um novo mundo pode florir – coragem sem medo. erro sem estrada. coração sem destino -- gaivota – morrer devagar para renascer depressa. tudo o que é importante chega no dia seguinte – nasci para incendiar o escuro – e chamar-lhe vida

 

15/11/2025

as gerações são assassinas das gerações anteriores

 





nota de autor

este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui alguém amou o nosso nome antes de desaparecer

 

nascemos. e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi. um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos – um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória. depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário. caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira. sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos. de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações. garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia. mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer – por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo. todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo. para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações – sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós – é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir. é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor -- da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro.  carregamo-lo há séculos – falarei dos meus heróis até que uma voz me chame


10/11/2025

o porquê das causas

 




 

nota de autor

escrevi este texto como quem volta a uma conversa interrompida. não para refazer o passado. mas para o entender. há memórias que nunca se apagam – ficam à espera de uma voz que as nomeie. “o porquê das causas” nasceu desse impulso: o de falar com o meu pai. mesmo depois de tantos anos de silêncio. é uma tentativa de reconciliar o tempo. de agradecer o que ficou dito e o que não foi possível dizer

 

 o que leva um pai a ter uma conversa com o filho sobre casamento? talvez a irreverência do filho. talvez o amor. ou o medo de o perder – talvez tudo junto numa única fala – escrevo-te. pai. porque a tua memória ainda vive em mim. e agora. que estou mais perto da idade sábia. começo a encontrar o desígnio terreno que me coube. preciso entender o porquê das causas. descobrir nas tuas razões. o caminho que me trouxe até hoje – já não falamos há vinte e sete anos. ouço dizer que é uma vida. para mim é silêncio – e o silêncio tem sempre um princípio. mas nunca saberemos quando acaba. porque dentro de mim guardo um nó de perguntas que não foram feitas – quando fico mais comigo. saco de uma daquelas falas que ficou por dizer e interrogo-te. mas como não me respondes. respondo eu por ti – é a forma de te manter ao pé de mim -- fazes-me falta -- e mesmo que eu vá envelhecendo. tu estás igual – é assim que te guardo. a mastigar. uma nódoa na gravata. e aquele jeito de andar a sorrir – como se a luz que trazias vestisse o corpo – uma daquelas noites em que fico a conversar contigo. lembro-me bem. ali na praça conde de agrolongo. o vento a cortar a fala. e tu. a certa altura. disseste: porque não te casas – tens uma miúda que me parece uma boa menina e é muito bonita – sim. era a maria joão – depois continuaste. precisas de acalmar. teres horas para te deitar. dedicar-te mais à fábrica. tens agora mais responsabilidades – pensa nisso – ouvi-te em silêncio – quando cheguei a casa deitei-me e comecei a digerir a conversa contigo – naquela noite foi um emaranhado de lençóis e pensamentos – confesso que nunca me passaria pela cabeça ter uma conversa sobre casamentos – durante dias as palavras dele ficaram presas em mim. como se procurassem sentido – e sim. tinhas razão – estava na hora de me acertar com as responsabilidades – precisava de deixar de emendar as noites com os dias. acalmar. e de voltar a colocar a família no centro do meu universo – era um miúdo – mas a família sempre me ancorou ao certo – sempre senti que era a seu lado o meu porto seguro – quanto ao casamento. tinhas toda a razão. aquela seria para sempre a mulher da minha vida. passaram quarenta e um anos. e ainda acredito que foi o meu pai que me deu aquele pequenino empurrão que faltava – tenho muitas saudades tuas – ficaram tantas coisas por dizer – a juventude é o nosso melhor tempo de vida. sobretudo para quem nada falta. que era o meu caso. mas trocaria tudo por mais uns anos a seu lado – eu ficaria mais adulto. saberia contar melhor o tempo. e teria mais tempo para te explicar o caminho que fiz – para ti seria igual – eras um ser de luz. e provavelmente ririas de todas as palermices que inventava

 


04/11/2025

sou apenas instante

 




nota de autor

“sou apenas instante” nasce da convicção de que a vida só é verdadeira quando se vive no agora — nesse espaço frágil e absoluto onde tudo acontece e tudo se perde. não há passado nem futuro que nos definam: apenas o instante. esse breve milagre em que existimos por completo. o texto é um espelho dessa procura — uma tentativa de dar corpo àquilo que não dura. mas que. por um segundo. é tudo

 

estou incrivelmente suspenso – neste instante não sei se me tenha perdido de mim ou achado o que me faltava – sinto-me como um miúdo que encontra uma moeda de dez réis no meio da terra – olha o brilho e interroga-se: o que fazer com o milagre? – sou neste instante a fúria dentro da ideia que me descobre – de tudo o que o corpo esqueceu mas a alma recorda – a razão é feita de memórias. e estas alimentam-se de símbolos – cada uma. uma alegoria do que fui – mastigo o tempo enquanto o silêncio pensa – eu carrego uma cruz. que bem podia ter outro nome. o peso seria o mesmo. com as mesmas dúvidas e interrogações. a mesma pressa de agarrar o futuro – mas é o futuro que me agarra a urgência – trazê-la para o hoje. e plantá-la na avenida principal da minha terra. porque é aqui que estou ligado ao ser – sou o instante. dentro da minha caixa de pandora – onde guardo o que ainda não se fez palavra – fecundada com todos os meus pensamentos que só têm valor por serem muitos – o que existe vive só dentro de mim. pequenos instantes que respiram sem nome -- silêncio que mutila -- à procura do seu criador. é como chuva no verão que não retém caminho – eu não passo de uma caixa de rapé. pó de pensamentos. que se cheira para aliviar o medo e obrigar a boca a falar para o papel – cresci suspenso em asas de anjos. gabriel ou outro nome qualquer – não interessa – são todos de barro – nelas a fé enganou-me -- por isso não descem do céu. sobem do meu medo – não importa quem é o dono dos limites. o céu nunca foi direção. só ruído – eu não tinha caminho. o presente era o já. e o já é como um rio em fúria que desaparece na cascata – com a queda fica ali. à espera de todas as gotas que lhe pertencem – nada chega ao mesmo tempo. decompomo-nos. tornamo-nos espera. como a estrela na noite – sou o fruto maduro desse tempo. que junta cada instante da memória. e pela manhã. abro as portas do cansaço. como quem entra num templo. onde só o pensamento é satânico – sei que nunca haverá fim para quem pensa. só a morte aprende a fechar os olhos – credos feitos em trouxas malucas. enquanto os santos me esperam na igreja do pensamento. e me absolvem de um qualquer pecado venial -- um pai nosso à minha gestação -- pecado que nunca foi meu. mas deles. que me ensinaram a temer – depois de morto ressuscito – e volto a duvidar – nunca me disseram que um homem morre milhares de vezes durante a vida. e ressuscita sem ter um único santo a seu lado – cresci em demasia e perdi-me nas ideias. criei as minhas. dei-lhes a forma de pirâmide. e sentei-me no cimo de mim – onde sou deus dos meus eus -- procurei-me em todo o lado. e em todo o lado me encontrei – e o rio a juntar cada gotícula de água para me dar outra forma – nada é certo na nossa vida. apenas o instante comanda. como um general sem tropas. o que foi ontem não se repete. nem o pensamento. somos feitos de dúvidas. e o que estava certo ontem. hoje não está. e o azul que cobria o céu. é agora um manto negro. que nos envolve em silêncio. invisíveis sem papel – apenas o instante traduz a emoção verdadeira – depois acrescentamos o tempo. essa invenção maldita feita de ponteiros. e tudo em nós é vazio e arrependimento. um buraco acabado num não sei – não sei como fui capaz de me aceitar no tempo sem espera – e a promessa de ser íntegro. suspensa num fio de luz – não posso desistir de mim. mesmo não me reconhecendo. eu sou o instante passado. uma luz a clarear o rio da cascata preso a margens que me guiam. e que nunca me compreendem – o amanhã não existe para quem não espera por mim – não comandamos o que nos move -- apenas seguimos -- tal como diana de éfeso. somos feitos de seios. alimentando todos os instantes em eus que dormem dentro do tempo. porque o amanhecer não traz o que sobra – e agora? posso reinventar-me com cada instante? tudo a que me dou é volátil. álcool destilado numa ideia de terra prometida – a vida continua. mesmo que não encontre abrigo. eu escrevo. mesmo que ninguém me compreenda. eu sou as palavras. porque elas habitam em mim. e alguma haverá de encontrar o lugar certo para fazer-se verdade – por isso não posso ser castigado pela mudança. afinal eu apenas nasci. o resto foi feito pelo instante – foi o futuro que me enganou. e se um dia fiz estrada. foi por ser fiel ao pensamento. e a boca… apenas serviu para chamar quem nunca escutou – às vezes deslizo por mim. e o que encontro é amor -- desgovernado -- procuro o certo em cada armadilha – um homem certo é muito mais esguio. passa pelo vento sem que a brasa o acenda – um homem certo volta sempre para os seus braços. não há nenhum lugar melhor do que aquele em que se chamou pelo nome – e o meu nome… é instante – tudo o que tenho está dentro da minha cabeça. é o único lugar onde eu sou tudo. porque cada instante é uma explosão de eus que se multiplicam. e por mais que queira ser outra coisa. mesmo que seja insignificante. a verdade não deixa – sou uma estrada de ideias – o mundo todo mora lá dentro. e desse mundo nasce o universo. que explode a cada instante. fabricado por cada faísca que me incendeia – em recantos que desconheço. mora a dor que grita. o sorriso que ilumina. a incerteza que me caracteriza. porque para cada pensamento. há uma porta aberta. uma meditação. e cada amigo ou inimigo. preso ao que sou. só nasce quando escrevo. ou quando sofro. porque ser ou não ser. só vai depender do mistério que desbravar – e os átomos são a dor em movimento. e o corpo a caminhar para fugir das certezas absolutas. e eu sem saber se me belisco. ou acredito. que desta vez a prova dos nove é resto zero – alimentar o instante é a razão da minha existência – frio. aconchego-me. quente. refresco-me. a vida é feita de frio e calor. e o corpo a migrar para os polos da procura – sou garimpeiro de mim -- e em nenhum lado. há um instante que me fixe para sempre – sou apenas uma nota de piano em busca da sua melodia – e o sangue a ferver por não ser corrente. não traz paz. e lá no fundo. onde já não me reconheço. grito para que me ouça – é quando procuro um basta. e o corpo dói para resistir. e o instante põe-me vazio. como se soubesse que se paro… morro – alimento-me de mim. e morro com tudo o que os olhos me dão – sou a ruína. uma descoberta sem carbono catorze. com as mãos a pedir menos medo. e o equilíbrio cada vez mais difícil. a vida como gelo fino. cristal de murano – abraço-me e pergunto: que gesto faria de mim outro ser – aquele que se dissolve nos elementos: terra – ar – fogo – água – o tempo é a minha palavra. é estrada que fala com o infinito. e qualquer que seja o desejo. é no espelho que me reconheço: o nariz do meu pai. os sapatos ao contrário. e as mãos a abraçar o impossível – neste instante o que peço é tempo. não tenho medo da morte. é do tempo que tremo – tenho medo dos comboios que passam a correr. da água que não chega ao mar. da palavra que não sai da boca. do silêncio que nunca responde – quero acreditar que a morte é apenas uma porta. um silêncio para além do instante – a mente cala. os braços vão tocar no invisível. o chão ruirá. e nas costas as asas de uma gaivota livre -- levanto-me do corpo -- desenho de mim sem mapa e sem fome do inesperado – a luz é a certeza. a sombra é descanso. e corpo finalmente. com o passaporte carimbado para a desistência. para o perdão. para a palavra sem valor – os sonhos sem cumprir. esses malditos. serão vento. santo graal. ou hóstia. papel. assinatura de sangue -- nunca serão dor -- para trás. a palavra escrita reinventa-me a cada instante dos outros. e mesmo sendo o que cada um quiser. eu estou noutro mundo. onde o que quero está sempre certo – cheiro a anjo. mesmo que os olhos me ignorem. este sou eu – perdido no inferno que criei no instante em que nasci