escrita do meu meio corpo – o lado que sangra
procura o lado que escuta. e juntos respiram até serem um só
um dia destes. quando o sol nascer do outro lado
do meu meio corpo. estarei de costas para este meio dia que enxergo – há um
descompasso de meio dia no meu meio corpo: meio coração. meio batimento. meio
litro de sangue. meia lata de lágrimas guardadas para um aperto afetivo. um pé
de meia de quem entende que a vida é feita de meias verdades – talvez seja um
eixo desalinhado. rotação – meio. meio dia. e uma multidão assustada parte do
meio dia que carrego para outro meio que não sei nomear – ouço bach. só a música
devolve a vida inteira ao meu meio corpo – e eu. sem saber a qual meio dia
darei a alma inteira – escrevo até descobrir
este é um exercício de
reconhecimento. do homem que sou. feito de faísca. impulso e verdade – a minha
combustão interior – é menos sobre o zodíaco e mais sobre mim. sobre o que me
move. me inquieta e me cria -um
carneiro que existe na coragem de começar
o que se pode dizer sobre um homem carneiro? – não
sei – mas o que posso dizer sobre mim – é o que sei – falando sobre mim. não há
necessidade de acrescentar mais um signo – às vezes sinto-me desconectado do
universo. perdido. como se fosse um cometa a fazer a sua orbita. giro e giro e
nunca chego a lado nenhum – é assim que me sinto. um pé na terra. a cabeça na
lua – e as mãos a tocar o sistema interestelar – sou do primeiro signo do zodíaco.
logo trago comigo a vontade da faísca – incendiar para começar. não importa
arder. o importante é começar – depois logo se vê até onde chegam as labaredas
– este impulso criador é a essência do que sou. tudo se move na vontade de
criar. de inovar – de encontrar solução para o que à primeira vista se esconde
do possível – todos os dias preciso de começar alguma coisa. não importa o que
seja. pode ser um pensamento. um projeto. uma ligação espiritual – o que sei é
que vou de alma. a cabeça vem mais atrás – preciso é de acreditar. tem de ser
executável – empírico – a rotina destrói-me. o movimento salva-me. e em
silêncio encontro sentido -- o risco é parente do sucesso – o zodíaco diz-me
que faço fronteira com touro – por isso dizem que sou menos impulsivo e mais estratégico
– mas intenso continuo a ser – menos impulsivo não sei. nunca me deram fita
métrica para medir o seu alcance – mas creio que mesmo com menos ainda será muito.
a impulsividade deixa-me muitas nódoas negras no corpo – e confesso. como forma
de perdão. que deixo algumas também em quem me desafia – nem sempre a uso em
proporcionalidade – às vezes um tornado de palavras. outras um ventinho
fininho. a ferir a epiderme – quanto à estratégia. talvez. nem sempre com bons
resultados. mas sempre fiel ao pensamento. e por isso. se há culpa nas minhas falências
estratégicas. emocionais ou profissionais. não é minha culpa. é da estratégia
que não se alimenta na medida certa do que o mundo oferece – mas apesar de tudo
visto-me de verdade – do trabalho feito – do gesto que me torna reconhecido – e
principalmente. porque não vivo sem amor. da sua correspondência – reconheci-me
a primeira vez com a hora do zénite. o sol entrou-me com fome. e dele retirei a
primeira energia para me tornar um sobrevivente – tomei o primeiro leite e
senti pela primeira vez o toque da pele que nos cobre. e nos braços da minha
mãe a voz que me abraçou. e do nome que me calhou a certeza de que nunca mais
poderia ser mais ninguém senão quem sou – nasci para ser líder de mim – e
brilhar apenas pelo exemplo – mesmo que não seja do tamanho que imaginei. mas é
dentro do que sinto. a obrigação de me sentir reconhecido – carrego comigo o
peso da verdade – e essa não tem medida – é do meu tamanho – e dos olhos que a
veem – cresci. e comigo a vontade de saber de todos os livros. e o que não sei.
é por falta de tempo. talvez se tivesse mais mil anos pela frente. eu pudesse
saber tudo de mim. e só se sabe tudo de nós quando sabemos tudo dos outros – a
mediocridade abala-me. às vezes até desfaleço. mas o que mais me incomoda são
aqueles que sabem tudo – e de tudo se fazem – e com tudo me importunam – não
procuro aplauso. posso até ser generoso. mas que ninguém me fique a dever – o
que dou é o que me sobra da vida que construí. o que exijo é apenas gratidão
por fazerem parte do mundo onde cresço e aprendo – e aprendo com todos – nunca
percebi porque trouxeram um carneiro para o zodíaco. talvez por ser herbívoro.
talvez pelas suas marradas com aqueles chifres de refilão – não sei. mas para ser
abril. é porque trouxe a liberdade dos recomeços. o confronto dos ideais. a
busca pela completude – abril é o eterno retorno da vida que regressa do frio –
sei agora que não poderia ter nascido num noutro qualquer mês – confesso que
também não aceitaria. fugiria até ao dia que me acolheu – não é por maldade. é
por ser o que sinto. e sempre que sinto sou frontal. honesto. às vezes bruto.
às vezes visceral. mas é o que sou e sinto – nunca me ensinaram a esconder
nada. nem o zodíaco. por isso. fico no que não sou – às vezes besta. às vezes
vulcão. às vezes carrasco – mas como sou metamorfo. tudo me passa rapidamente –
o que explode para lá. implode para cá – ficam as lembranças com os seus
ensinamentos – e o rancor. quem me dera tê-lo – ensinaria a mente a não cair
duas vezes no mesmo erro – gosto de mim. porque sempre que gosto eu avanço um
espaço. e sempre que avanço o universo cresce. fico sem medo. e quando fico sem
medo. sinto-me mais perto dos que trago por bem – as pessoas constroem-me.
iluminam-me. e em cada uma uma vida que desconheço. e mais do que uma desculpa
para o que não entendo. a certeza de que o erro compensa o caminho – eu sou
hoje o caminho do amanhã – ser melhor é uma missão impossível de concretizar.
mas o importante é capturar os espaços vazios – enfrentar o vazio é a grande
missão terrena – o único que a morte teme – kant disse que o bem é a vontade
pura – o gesto sem cálculo – a boa vontade como bem moral absoluto. o único bem
incondicional – não depende das consequências. nem de desejos. nem de
inclinações – agir por dever. por respeito à lei moral. é o que faz a ação ser
boa. e quando a ação é boa. todos os erros merecem perdão – o pedido de
desculpa só deve existir quando não agimos pelo bem. porque é a razão que
compensa o erro –- e é por ela que estamos perdoados – no amor tem o seu grande
calcanhar de aquiles – todo o amor é criação. o desejo só existe se houver
obra. o que quase sempre quer dizer deusa – é quando surge uma vontade de se incendiar.
e das cinzas renasce cada beijo ou abraço – gosto de ti porque em nós não há sombras
– nada no amor é para amanhã. a palavra amo-te não espera – tudo é urgência –
porque tudo nele arde – beijar – abraçar – contemplar – tocar – depois…
fundir-se com a amada é um gesto único – tão único como ela – porque não há
mais ninguém a não ser a amada – o carneiro é homem de uma só mulher – tudo
nele é movimento – todo ele é o dia seguinte – e mesmo sem luz ou vento. segue
o destino que o coração desenhou – tanto faz se vai para longe – o agora é a
certeza absoluta – e se um dia acabar. tombará como fruto da árvore do amor – é
o amor que o sustenta. todo ele é movido a paixão. a mel. a carinho. mas sempre
com reconhecimento de que nada seria igual se não existisse – existir só faz
sentido quando os olhos se tocam sem querer possuir. dar é a sua razão. sobretudo
se não tiver medida – é no dar que ele existe – é no impossível que cresce a
faísca – amor tem sempre que ser livre e genuíno -- onde o tempo só serve para
acrescentar desejo –- e assim chego ao fim do que é ser um carneiro de abril –
existo num estado de começar. agir antes de temer. e acreditar que em cada
gesto um novo mundo pode florir – coragem sem medo. erro sem estrada. coração
sem destino -- gaivota – morrer devagar para renascer depressa. tudo o que é importante
chega no dia seguinte – nasci para incendiar o escuro – e chamar-lhe vida
este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não
procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o
meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o
silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das
gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o
carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por
vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um
dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui
alguém amou o nosso nome antes de desaparecer
nascemos.
e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e
deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi.
um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se
transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos
– um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não
interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um
pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para
flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque
vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta
sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e
delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória.
depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o
pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de
empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a
desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão
de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva
destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que
vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a
vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é
quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de
saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha
mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo
ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez
tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa
bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem
passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário.
caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi
na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o
meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no
que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus
pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da
minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do
espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha
de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à
noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os
batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina
a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando
chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira.
sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça
como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na
fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos.
de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao
relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por
nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não
percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o
que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras
mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que
trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo
calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido
para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de
si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos
acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me
teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações.
garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o
instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas
não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele
que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração
é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para
sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio
também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o
nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem
do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o
valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia.
mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na
distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma
tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é
comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar
é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem
me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que
me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao
esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe
nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer
– por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes
nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no
presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo.
todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma
estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a
partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará
só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo.
para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem
ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o
nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações
– sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser
o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós –
é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as
gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o
renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não
tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem
castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em
risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que
não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são
mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as
dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra
prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e
dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do
sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é
o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir.
é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque
ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das
vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor --
da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um
nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro. carregamo-lo há séculos – falarei dos meus
heróis até que uma voz me chame
escrevi este texto como quem volta a uma conversa
interrompida. não para refazer o passado. mas para o entender. há memórias que
nunca se apagam – ficam à espera de uma voz que as nomeie. “o porquê das
causas” nasceu desse impulso: o de falar com o meu pai. mesmo depois de tantos
anos de silêncio. é uma tentativa de reconciliar o tempo. de agradecer o que
ficou dito e o que não foi possível dizer
o que leva um pai a ter uma conversa com o filho
sobre casamento? talvez a irreverência do filho. talvez o amor. ou o medo de o
perder – talvez tudo junto numa única fala – escrevo-te. pai. porque a tua
memória ainda vive em mim. e agora. que estou mais perto da idade sábia. começo
a encontrar o desígnio terreno que me coube. preciso entender o porquê das
causas. descobrir nas tuas razões. o caminho que me trouxe até hoje – já não
falamos há vinte e sete anos. ouço dizer que é uma vida. para mim é silêncio –
e o silêncio tem sempre um princípio. mas nunca saberemos quando acaba. porque
dentro de mim guardo um nó de perguntas que não foram feitas – quando fico mais
comigo. saco de uma daquelas falas que ficou por dizer e interrogo-te. mas como
não me respondes. respondo eu por ti – é a forma de te manter ao pé de mim --
fazes-me falta -- e mesmo que eu vá envelhecendo. tu estás igual – é assim que
te guardo. a mastigar. uma nódoa na gravata. e aquele jeito de andar a sorrir –
como se a luz que trazias vestisse o corpo – uma daquelas noites em que fico a
conversar contigo. lembro-me bem. ali na praça conde de agrolongo. o vento a
cortar a fala. e tu. a certa altura. disseste: porque não te casas – tens uma
miúda que me parece uma boa menina e é muito bonita – sim. era a maria joão –
depois continuaste. precisas de acalmar. teres horas para te deitar. dedicar-te
mais à fábrica. tens agora mais responsabilidades – pensa nisso – ouvi-te em
silêncio – quando cheguei a casa deitei-me e comecei a digerir a conversa contigo
– naquela noite foi um emaranhado de lençóis e pensamentos – confesso que nunca
me passaria pela cabeça ter uma conversa sobre casamentos – durante dias as
palavras dele ficaram presas em mim. como se procurassem sentido – e sim. tinhas
razão – estava na hora de me acertar com as responsabilidades – precisava de
deixar de emendar as noites com os dias. acalmar. e de voltar a colocar a
família no centro do meu universo – era um miúdo – mas a família sempre me
ancorou ao certo – sempre senti que era a seu lado o meu porto seguro – quanto
ao casamento. tinhas toda a razão. aquela seria para sempre a mulher da minha
vida. passaram quarenta e um anos. e ainda acredito que foi o meu pai que me
deu aquele pequenino empurrão que faltava – tenho muitas saudades tuas –
ficaram tantas coisas por dizer – a juventude é o nosso melhor tempo de vida. sobretudo
para quem nada falta. que era o meu caso. mas trocaria tudo por mais uns anos a
seu lado – eu ficaria mais adulto. saberia contar melhor o tempo. e teria mais
tempo para te explicar o caminho que fiz – para ti seria igual – eras um ser de
luz. e provavelmente ririas de todas as palermices que inventava
“sou apenas instante” nasce da convicção de
que a vida só é verdadeira quando se vive no agora — nesse espaço frágil e
absoluto onde tudo acontece e tudo se perde. não há passado nem futuro que nos
definam: apenas o instante. esse breve milagre em que existimos por completo. o
texto é um espelho dessa procura — uma tentativa de dar corpo àquilo que não
dura. mas que. por um segundo. é tudo
estou incrivelmente suspenso – neste instante não
sei se me tenha perdido de mim ou achado o que me faltava – sinto-me como um
miúdo que encontra uma moeda de dez réis no meio da terra – olha o brilho e
interroga-se: o que fazer com o milagre? – sou neste instante a fúria dentro da
ideia que me descobre – de tudo o que o corpo esqueceu mas a alma recorda – a
razão é feita de memórias. e estas alimentam-se de símbolos – cada uma. uma
alegoria do que fui – mastigo o tempo enquanto o silêncio pensa – eu carrego
uma cruz. que bem podia ter outro nome. o peso seria o mesmo. com as mesmas
dúvidas e interrogações. a mesma pressa de agarrar o futuro – mas é o futuro
que me agarra a urgência – trazê-la para o hoje. e plantá-la na avenida
principal da minha terra. porque é aqui que estou ligado ao ser – sou o
instante. dentro da minha caixa de pandora – onde guardo o que ainda não se fez
palavra – fecundada com todos os meus pensamentos que só têm valor por serem
muitos – o que existe vive só dentro de mim. pequenos instantes que respiram
sem nome -- silêncio que mutila -- à procura do seu criador. é como chuva no
verão que não retém caminho – eu não passo de uma caixa de rapé. pó de
pensamentos. que se cheira para aliviar o medo e obrigar a boca a falar para o
papel – cresci suspenso em asas de anjos. gabriel ou outro nome qualquer – não
interessa – são todos de barro – nelas a fé enganou-me -- por isso não descem
do céu. sobem do meu medo – não importa quem é o dono dos limites. o céu nunca
foi direção. só ruído – eu não tinha caminho. o presente era o já. e o já é
como um rio em fúria que desaparece na cascata – com a queda fica ali. à espera
de todas as gotas que lhe pertencem – nada chega ao mesmo tempo. decompomo-nos.
tornamo-nos espera. como a estrela na noite – sou o fruto maduro desse tempo.
que junta cada instante da memória. e pela manhã. abro as portas do cansaço.
como quem entra num templo. onde só o pensamento é satânico – sei que nunca
haverá fim para quem pensa. só a morte aprende a fechar os olhos – credos feitos
em trouxas malucas. enquanto os santos me esperam na igreja do pensamento. e me
absolvem de um qualquer pecado venial -- um pai nosso à minha gestação -- pecado
que nunca foi meu. mas deles. que me ensinaram a temer – depois de morto ressuscito
– e volto a duvidar – nunca me disseram que um homem morre milhares de vezes
durante a vida. e ressuscita sem ter um único santo a seu lado – cresci em
demasia e perdi-me nas ideias. criei as minhas. dei-lhes a forma de pirâmide. e
sentei-me no cimo de mim – onde sou deus dos meus eus -- procurei-me em todo o
lado. e em todo o lado me encontrei – e o rio a juntar cada gotícula de água
para me dar outra forma – nada é certo na nossa vida. apenas o instante
comanda. como um general sem tropas. o que foi ontem não se repete. nem o
pensamento. somos feitos de dúvidas. e o que estava certo ontem. hoje não está.
e o azul que cobria o céu. é agora um manto negro. que nos envolve em silêncio.
invisíveis sem papel – apenas o instante traduz a emoção verdadeira – depois
acrescentamos o tempo. essa invenção maldita feita de ponteiros. e tudo em nós
é vazio e arrependimento. um buraco acabado num não sei – não sei como fui
capaz de me aceitar no tempo sem espera – e a promessa de ser íntegro. suspensa
num fio de luz – não posso desistir de mim. mesmo não me reconhecendo. eu sou o
instante passado. uma luz a clarear o rio da cascata preso a margens que me
guiam. e que nunca me compreendem – o amanhã não existe para quem não espera
por mim – não comandamos o que nos move -- apenas seguimos -- tal como diana de
éfeso. somos feitos de seios. alimentando todos os instantes em eus que dormem
dentro do tempo. porque o amanhecer não traz o que sobra – e agora? posso reinventar-me
com cada instante? tudo a que me dou é volátil. álcool destilado numa ideia de
terra prometida – a vida continua. mesmo que não encontre abrigo. eu escrevo.
mesmo que ninguém me compreenda. eu sou as palavras. porque elas habitam em
mim. e alguma haverá de encontrar o lugar certo para fazer-se verdade – por
isso não posso ser castigado pela mudança. afinal eu apenas nasci. o resto foi
feito pelo instante – foi o futuro que me enganou. e se um dia fiz estrada. foi
por ser fiel ao pensamento. e a boca… apenas serviu para chamar quem nunca escutou
– às vezes deslizo por mim. e o que encontro é amor -- desgovernado -- procuro
o certo em cada armadilha – um homem certo é muito mais esguio. passa pelo
vento sem que a brasa o acenda – um homem certo volta sempre para os seus
braços. não há nenhum lugar melhor do que aquele em que se chamou pelo nome – e
o meu nome… é instante – tudo o que tenho está dentro da minha cabeça. é o
único lugar onde eu sou tudo. porque cada instante é uma explosão de eus que se
multiplicam. e por mais que queira ser outra coisa. mesmo que seja
insignificante. a verdade não deixa – sou uma estrada de ideias – o mundo todo
mora lá dentro. e desse mundo nasce o universo. que explode a cada instante.
fabricado por cada faísca que me incendeia – em recantos que desconheço. mora a
dor que grita. o sorriso que ilumina. a incerteza que me caracteriza. porque
para cada pensamento. há uma porta aberta. uma meditação. e cada amigo ou
inimigo. preso ao que sou. só nasce quando escrevo. ou quando sofro. porque ser
ou não ser. só vai depender do mistério que desbravar – e os átomos são a dor
em movimento. e o corpo a caminhar para fugir das certezas absolutas. e eu sem
saber se me belisco. ou acredito. que desta vez a prova dos nove é resto zero –
alimentar o instante é a razão da minha existência – frio. aconchego-me.
quente. refresco-me. a vida é feita de frio e calor. e o corpo a migrar para os
polos da procura – sou garimpeiro de mim -- e em nenhum lado. há um instante
que me fixe para sempre – sou apenas uma nota de piano em busca da sua melodia
– e o sangue a ferver por não ser corrente. não traz paz. e lá no fundo. onde
já não me reconheço. grito para que me ouça – é quando procuro um basta. e o
corpo dói para resistir. e o instante põe-me vazio. como se soubesse que se paro…
morro – alimento-me de mim. e morro com tudo o que os olhos me dão – sou a
ruína. uma descoberta sem carbono catorze. com as mãos a pedir menos medo. e o
equilíbrio cada vez mais difícil. a vida como gelo fino. cristal de murano –
abraço-me e pergunto: que gesto faria de mim outro ser – aquele que se dissolve
nos elementos: terra – ar – fogo – água – o tempo é a minha palavra. é estrada
que fala com o infinito. e qualquer que seja o desejo. é no espelho que me
reconheço: o nariz do meu pai. os sapatos ao contrário. e as mãos a abraçar o
impossível – neste instante o que peço é tempo. não tenho medo da morte. é do
tempo que tremo – tenho medo dos comboios que passam a correr. da água que não
chega ao mar. da palavra que não sai da boca. do silêncio que nunca responde –
quero acreditar que a morte é apenas uma porta. um silêncio para além do
instante – a mente cala. os braços vão tocar no invisível. o chão ruirá. e nas
costas as asas de uma gaivota livre -- levanto-me do corpo -- desenho de mim
sem mapa e sem fome do inesperado – a luz é a certeza. a sombra é descanso. e
corpo finalmente. com o passaporte carimbado para a desistência. para o perdão.
para a palavra sem valor – os sonhos sem cumprir. esses malditos. serão vento.
santo graal. ou hóstia. papel. assinatura de sangue -- nunca serão dor -- para
trás. a palavra escrita reinventa-me a cada instante dos outros. e mesmo sendo
o que cada um quiser. eu estou noutro mundo. onde o que quero está sempre certo
– cheiro a anjo. mesmo que os olhos me ignorem. este sou eu – perdido no
inferno que criei no instante em que nasci
esta é a última crónica de cinco passagens de ano
que me ficaram em memória – à medida que envelhecemos. cresce em nós a
necessidade de guardar em papel o que tivemos de melhor e de pior durante o
nosso crescimento como pessoas – essa necessidade é. agora tenho a certeza. a
presença da finitude no nosso acordar –deixamos de fazer projetos a longo prazo
– agora. tudo é para o dia em que vivemos – escrever estas crónicas foi a forma
que encontrei de doar aos meus descendentes o que eu e a maria joão vivemos: um
mapa onde um dia se poderão rever. e assim perceber melhor o que nos liga.
independentemente do tempo e das vivências pessoais
quando somos jovens. todas as festas acendem os
dias por dentro. nós já somos alegres pela ausência de passado. e quando não há
passado. não há pecado. por isso. nada bate uma overdose de gargalhadas. uma
mão cheia de palermices. e uma constelação de sonhos na palma da mão. prontos a
partir ao ritmo de um mundo que ainda nos era estranho – quando a leveza dos
anos nos faz acreditar que já somos homens feitos. especiais não pelo que
fizemos. mas pela certeza do que ainda vamos alcançar. a vida torna-se numa correria
tonta. corremos em todas as direções e raramente chegamos a algum lugar -- foi
o que me aconteceu -- eu era um miúdo cheio de sonhos – quem não os tem aos
dezoito anos – sempre que olhava para as mãos. pensava: o que vós não podereis
fazer? e a resposta era sempre a mesma. nada – deixei a luz do dia pela sombra
da noite. frequentava o regime noturno – nas salas uns quantos como eu.
deslumbrados da vida. sonhávamos que o dia morria no anoitecer. fechava os
olhos e nada ficava para o dia seguinte – como estava enganado. como era tolo.
mas também era um rapaz encantado. porque só os bons rapazes é que acreditam
num mundo sem lamentos. com uma borracha capaz de apagar o que há de menos bom
– eu despertava sem culpa. sem sombra. com a inocência dos que ainda não sabem
o que perderam – depois. havia aqueles que na altura eram para mim velhos. e
pensava: o que fazem aqui. com mais três quartos da vida gasta – para que
precisam eles de conhecimento? hoje sei que um homem apenas pode morrer com o
que sabe. nunca com o que possui – sempre amei os meus amigos. sempre os achei
mais inteligentes. mais bonitos. mais íntegros. mais capazes de adivinhar o
futuro – eu não sabia nada do futuro. para trás eu não existia – e quanto mais
me apagava do rasto. mais o pouco de mim brilhava – e era tão pouco – os olhos
castanhos a cair para a incerteza. o cabelo virado a norte. os braços presos
aos bolsos. e as pernas a correr sem destino. só o coração batia. compassado.
como se marchasse numa parada militar – hoje era dia de mexer no calendário.
ano novo. estávamos em mil novecentos e oitenta. e eu com dezoito anos feitos –
bem sei. numa urgência. mas era adulto – tinha tirado a carta de condução. que
naquele tempo era quase um mestrado em tráfego rodoviário – e um carro capaz de
chegar a moscovo -- nem que fosse ao empurrão -- pela noite. eu e mais dois
amigos. o tiago e o quim. vagueámos pela cidade de braga numa toyota hiace de
três lugares. e com o aproximar da meia noite. parámos o carro onde diariamente
parávamos a vida – na praça do comércio – e fizemos a contagem decrescente para
a entrada no ano novo – com a última badalada abrimos uma garrafa de espumante.
e celebrámos o ano novo como se estivéssemos na times square. e a bola de
cristal a cair devagar sobre nós – e por incrível que pareça. desceu mesmo
dentro da hiace – jurámos amizade para sempre. e rimos de todos os disparates
que inventámos para o futuro – seríamos ricos. famosos. e ilustres cidadãos do
mundo – talvez até com direito a um mount rushmore. e as nossas faces talhadas
na pedra – por baixo. a inscrição: “os melhores amigos na melhor passagem de
ano de todo o universo” – aqui cozinharam-se os sonhos mais idiotas. mas também
os mais belos do mundo
P.S. falei acerca desta passagem de
ano com o meu amigo tiago. que me garantiu que foi a sua melhor passagem de
sempre – confirma-se assim como a juventude pode criar as mais belas imagens.
aquelas que acabam por ser as fundações de um entardecer sereno
tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira
vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a
família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois…
uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big
bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma
passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a
jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti
com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um
vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda
deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à
henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer:
estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu
mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial
era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já
não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos
todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as
noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava –
contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para
um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha
preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era
também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu
ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse
emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do
meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um
grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que
morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já
damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras
coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor.
todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a
certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que
importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas
horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos
campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou
a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga
amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por
detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo
ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o
tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se –
entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo
para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite
correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a
bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à
meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um
instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os
decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços.
desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo
mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de
espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano
anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram
os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo
passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho
saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais –
e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos.
saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no
hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de
nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me
compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um
instante que o tempo rouba sem pedir licença
nunca dei grande importância à passagem de ano.
para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem
do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o
calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem
sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma
que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta
para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as
matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada
terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e
por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda
de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem
fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira
renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e
encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido.
feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre
necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim
esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em
silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de
esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob
o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de
alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano
de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias.
para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em
alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta
para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior
constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do
ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada
se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos
eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a
passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda
seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre
por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio
calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas
vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de
bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um
pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já
em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos
recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros.
caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo
tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a
certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas
foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e
uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de
bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano
novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas
permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade.
a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e
genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta –
dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de
que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito
mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso.
invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira
passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a
tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois
seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente
o meu pai morreu no dia 17 de março de 1998. foi sepultado
no dia 19. dia do pai – o dia dele e o meu – nesse dia percebi que um homem só
se torna adulto depois do pai sucumbir à luz – a nossa vida a seu lado é como estar
no topo de uma montanha. virados de frente para o ocaso – crescemos com o
nascer do sol – não o vemos. mas sabemos que existe. está ali. sentimos a emissão
da sua luz. e sempre que há luz há segurança. os medos recuam para o escuro. e
a coragem para viver é apenas claridade – um dia levantamos a cabeça e vemos
aquela esfera de luz sobre nós. admirámo-lo. e perguntamos: como é possível emitir
luz? de onde veio esta presença luminosa? não temos ainda resposta. mas não
importa. o importante é aquecer-nos. viver. iluminar com certezas o caminho que
percorremos – vamos envelhecendo. mesmo sem dar por isso. e acabamos a perceber
que o sol perdeu força. já não aquece como antes. nem ilumina o que escondemos.
somos jovens e julgamo-nos senhores de toda a luz do universo. tornamo-nos mais
exigentes com os outros. e menos connosco. vulgarizamos a virtude. pedimos à
honra que se modere. ridicularizamo-la. e seguimos em frente como se a luz
nascesse apenas de dentro de nós – egocentrismo. e todos os planetas orbitam à
volta de nós – e continuámos a envelhecer. e cada dia é um ano de corrida. e
sem que o relógio nos alerte. num ápice. quando estamos a olhar o horizonte.
que agora é cada vez mais perto. às vezes é já ali. percebemos que a todo o
momento o sol vai pôr-se. e o escuro permanecerá em nós sempre. olhámos em
volta e tudo não passa de suposições – será que vou conseguir ser como ele?
será que o meu feitio é igual ao dele? será que vou envelhecer como ele? e no
meio das interrogações o sol desaparece. apenas uns raios de luz perdidos
aceitam lutar com o escuro – mas o escuro vence. instala-se em nós para sempre.
e nunca mais sentimos o sol nascer pelas costas. já não aquece. no seu lugar
chega a saudade. já não ilumina. clareia o dia para sobrevivermos – o mundo
tornou-se num lugar estranho e por mais anos que passem nunca compreendemos a
sua perda – nasci e cresci com ele. como é possível perdê-lo? não é – é como
aqueles que são amputados de uma perna. podem ter uma muleta. prótese. até
correr ao pé coxinho. mas há noite. quando a tristeza desce. é a sua falta que persiste.
às vezes até dói o que já não existe. como aos amputados. que sentem a dor da
perna ausente – na passagem de ano de 1998. todos sabíamos que nunca seria
igual às anteriores. à décima segunda badalada. sobrou em mim um beijo. e a
certeza de que nunca mais nada seria igual – o natal nunca mais se repetirá – podemos falar dele. recordá-lo. contar os
seus feitos. até dizer-mos que temos muito dele. que o seu neto também tem
muito de si. mas ao deitar a dor fantasma volta. e magoa – ele não está mais
entre nós. e eu nunca serei como ele. nunca serei o seu exemplo – nunca serei
como ele porque para o ser teria que fazer o certo no momento certo. e eu não
fiz. eu não me construí a partir do todo. escolhi as partes que me davam jeito.
e só mais tarde é que percebi que sou como um lego. e para me construir
precisava das peças todas – não as tinha. ninguém consegue pôr uma laranjeira a
dar laranjas no mês de agosto – naquele ano. enquanto esperava pela passagem de
ano viajei para dentro do meu pai. instalei-me nele. e em silêncio. sentei-me
na minha montanha de emoções e deixei que o sol me voltasse a aquecer – as
saudades fizeram de mim um novo homem. e jurei que nunca mais deixaria de falar
dele aos netos. dizer-lhes que os miúdos inteligentes não são aqueles que tiram
as melhores notas. mas os que fazem o que está certo no momento certo. não
daqui a uma hora. um mês. ou um ano. o que está certo só tem um momento: é
aquele momento – depois. são apenas remendos. e o que está roto não volta a ser
novo
este
é um ciclo de cinco passagens de ano que vivi – tive muitas. estas são as que
guardei na memória porque de alguma forma se tornaram mais marcantes – viajar
no tempo é sempre especial. às vezes são viagens para sorrir. noutras o sorriso
não chega. apesar disso é um retalho da vida mesmo que amargurado – ainda
assim. porque amo a minha família. os meus filhos. escrever a minha vida é a
única forma que encontrei para que eles saibam mais de mim. de nós – ainda não
sei como escrever o amor que sinto por eles. mas sei quanto me deram para ser o
homem que sou hoje – sem eles nada seria – com eles sei que um dia serei
estrela. e quando olharem o céu. encontrarão sempre uma que me chame – e
depois. a minha companheira. por mais que escreva. e escrevo muito. nenhuma
palavra é forte. gentil. ou sábia bastante para a dignificar – o mais
importante. e é isso que tento. é levar aos meus filhos a medida do amor e do
sacrifício com que ela viveu as suas vidas – já são gratos. mas a idade ainda
não lhes revela o seu inteiro valor – espero que o tempo. como me aconteceu.
lhes traga a sabedoria para reconhecer que nada na nossa vida seria igual sem
ela – por fim. e nunca é demais dizê-lo. o prazer de partilhar estas viagens
com quem me segue nesta jornada diária de escrever – sempre que escrevo.
imortalizo-me
1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio
passagem
de ano 2016 – só nós os dois. eu e a maria joão. sozinhos. encrostados no sofá.
à décima-segunda badalada engolimos doze bagos de sobrevivência. cada um mais
amargo que o anterior – abrimos a garrafa de espumante. a rolha foi um tiro.
atravessou-nos o medo e a dor – desejámos um ao outro um ano-novo feliz.
cumprimos o protocolo das multidões – dentro de nós não havia nem uma centelha
de luz. estávamos moribundos. o escuro moldou-nos – amarrámo-nos a chorar e
fizemos prova de existência com as lágrimas – ficámos presos num tempo que já
não contava tempo – se por um lado ouvíamos o lacrimar profundo. por outro os
corpos apertavam-se num desespero nobre. honroso. porque dentro de nós não
havia um único arrependimento. teríamos feito tudo igual. eu escolheria a mesma
família. a mesma mulher. os mesmos filhos. a mesma vontade de fazer tudo certo
– o sofrimento era mais forte que a solução – a aflição esticava cada segundo
até virar horas – olhar para o céu não era recurso. só tinha as mãos para pedir
perdão. no fundo de mim o breu absoluto. negro. a cheirar a morte. nem um único
pirilampo a acender-me – se tivesse apenas um. talvez a sua luz exígua me
fizesse acreditar que era um farol – morrer era fechar os olhos. eu fechava-os
até desaparecer. deixava de me ver. escondia-me na parte mais distante de mim e
do mundo – as feridas dilacerantes. o grito pintado nas searas. e o ventinho do
inferno a perguntar-me se ainda queria continuar com a mutilação –no meu interior já pouco espaço havia para a
redenção. nem um único lugar que não estivesse em carne viva. nenhum vestígio
de esperança. tinha ingerido todo o ácido da vida. corroía-me ao microssegundo.
na minha cabeça o sussurro ecoava – perdoa-me – eu tinha obrigação de ser mais.
tinha jurado que para o bem e para o mal eu estaria presente. mas as pernas
fugiram. os braços caíram. a boca envergonhou-se. e os olhos cavaram escuro. e
eu moribundo. sem que uma única palavra me salvasse. me desse um recomeço. me
trouxesse de volta a dignidade – que mais precisa um homem na hora da morte
senão dignidade e honra? nada mais – e a cabeça a estilhaçar-se. e o tormento a
rasgar-me em pedaços que nunca mais se juntariam – na caverna que sou uma única
vontade: desaparecer. mergulhar no tártaro corrosivo e tornar-me labareda para
sempre. incendiar-me com o horror das palavras que me mordiam a mente. uma
régua de fogo a deslizar em mim por culpas imerecidas – que deus me suportaria?
nenhum – talvez o diabo – e nem esse eu carregava. eu era o próprio inferno. o
dono das labaredas. o senhor das trevas – quando acabámos de chorar disse: este
ano tudo vai ser diferente. vai correr tudo bem – sempre renasci das cinzas. e
a dilaceração foi a única fonte de energia que me fez aguentar a sorte maldita
– resta-me apenas o destino como companhia. por mais estradas que escolha. vive
em mim a chaga aberta. e ela sabe sempre o momento certo para fazer de mim um
sobrevivente. ela. os meus pais. a minha companheira. e os meus filhos – são o
fogo que me consome. a cinza de onde renasço
música de rodrigo leão no poema minha cabeça estremece de
herberto helder
crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na
cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente
a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e
enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias
mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a
fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro
nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é
quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um
pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma
ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que
é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento
anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre
nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser
certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura.
maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos
fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao
caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não
podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as
deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à
espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma.
pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol
nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu
nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna
incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações.
ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa.
joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos
momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro
de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o
único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um
pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as
letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é
um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te
desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe
escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas
existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é
preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te.
és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por
isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução.
mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de
poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o
relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não
saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele
para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é
simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência.
nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que
é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não
vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e
para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te
ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus
pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a
virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata –
um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas
que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o
esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e
pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da
perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos
surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do
amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que
criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam
de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para
a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que
ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma
viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama.
a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o
melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu
és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta
idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque
o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe – por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade
em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa
história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje
quarenta e quatro anos juntos. três filhos.
três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou
ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que
atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o
universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e
a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós
e assim continuaram os dias. o boom é exatamente
como as grandes metrópoles. noite e dia as pessoas revezam-se. umas dormem.
outras seguram os astros sob o sol – quando escurece há nova romaria. chegam os
festeiros com energia renovada. acendem estrelas e cometas. a lua incha de luz
e a música corre pela imaginação de todos. os corações batem ao ritmo de cada
vida. alegre ou melancólica – quando cansados os corpos estendem-se pela relva
enquanto as almas continuam a saltar nas tendas: trance psicadélica. música eletrónica.
até música dos anos sessenta. um espaço em forma de ovo. onde a única entrada é
feita curvado. de gatas. entra-se e encontra-se um espaço com uma bola de
cristal no teto – batida de discoteca. completamente insonorizada do exterior.
e a surpresa é que quando te consegues endireitar dás contigo no meio de trinta
ou quarenta pessoas num outro ritmo. outro mundo. que tu jamais esperavas
encontrar ali – mas que em jovem conheceste e habitaste – o boom foi uma
experiência transformadora. num espaço onde a liberdadereúne as pessoas. toda a expressão é
individual. e quando ligadas cria uma conexão humana incapaz de ser descrita.
direi que se cria um núcleo de gente muito diversa. mas toda se sente una.
livre. sem julgamentos – há pessoas de todo o mundo. e isso cria um movimento
heterogéneo de culturas em partilha – música. arte. ligação à terra. à
natureza. bem-estar. vive-se um estilo de vida minimalista. que bem aproveitado
mostra que o mundo está inundado de coisas supérfluas. abrindo espaço à
renovação interior. à limpeza da alma e do corpo. permitindo à mente descobrir
novos eus. e expandir-se para lá do que a circunda – estar no boom significa
também fazer parte de uma nova geração que se preocupa com os valores
ecológicos. se entras no boom sem essa consciência. à saída já sentes que fazes
parte dessa comunidade – sei que vou voltar. não por nostalgia. mas porque há
lugares que se tornam espelho – e no boom vi o reflexo do que quero que
continue a acontecer na minha vida: reconheci-me livre. inteiro e vivo – o boom
não termina quando as luzes se apagam. fica em cada batimento. como já escrevi.
senti e vivi. basta fechar os olhos. e nos meus silêncios. posso sempre
preenchê-los com as suas batidas – estas batidas nunca se calam. e a água
continua a ondular – por isso sei que vou voltar – há viagens que não se
encerram. apenas recomeçam – voltar ao boom é voltar a uma aldeia sem
fronteiras. o que faz de mim um homem também sem fronteiras. sem medo. sem
guerras. e sem fome. onde cada rosto é diferente. mas todos se sentem parte da
mesma tribo – eu encontrei esse mundo aberto – por isso sei que vou voltar
a felicidade
é o presente. não é o regresso ao passado nem fuga para o futuro – não está num
interruptor nem numa cartola mágica. pelo contrário. é superação das
dificuldades. dos traumas. das noites sem dormir. dos objetivos cumpridos. e
dos que ficaram por cumprir. dos amigos que perdemos. dos que chegaram. a
felicidade é perda. mas também caminho – e é no caminho empedrado que muitas
vezes nos encontramos despidos de ilusões – nesse instante deixamos cair as
camadas que nos escondem – e sentimos o alívio de reconhecer quem somos –
precisamos de soltar essas camadas. para que se dissolva a matéria que nos
prende à forma – a felicidade acontece apenas porque caminhamos. porque tivemos
coragem para procurar. às vezes não sabemos o que. como um tabuleiro de xadrez
que pode ter todas as peças. mas se faltar um peão… já não há jogo –o dia de hoje é o mais importante da nossa
vida. porque fomos capazes de refazer o que somos quando o mais fácil era
desistir – a sociedade exige muito de nós. é preciso fabricar homens de um
sucesso global. para que possamos ser aceites: carro. casa. relógios.
doutoramentos sem conhecimento. a lista seria interminável – levantar e
caminhar é felicidade. isso é a única verdade. depois. estar onde queremos estar.
respirar a divindade que entra em nós. e partilhar do vento que mantém as
gaivotas no ar: liberdade – é obrigatório dar-nos ao agora. no boom não podemos
estar noutro lugar – ali sentimos a consciência a saltar connosco. estamos
todos interligados. um emaranhado de cordas. e essa interligação. talvez cósmica.
faz de nós um pouco de cada ser. ligados pela consciência. vibrantes e
cintilantes. e o planeta que se chama terra. um mero condutor. a esticar-nos
pela gravidade. e pelo sim. sim. é esta gente o dínamo da terra – ligados por
essa energia comum. percebemos que o mesmo magnetismo que nos une também nos
desafia – a física diz que polos iguais repelem-se. mas nós ligámo-nos. existe
dentro de nós uma porta que se abre ao desconhecido. ou é a própria energia do
planeta que a abre. e as suas pessoas empurram-nos porta fora – mesmo que não
compreendamos o mundo físico. é a nossa consciência. com os seus mecanismos
ainda desconhecidos. que nos diz: este é o teu momento. despe-te de preconceito
e vai. liberta o teu espírito. cumpre-te pelo chamamento. edifica-te nos
desaires. liberta-te dos sucessos. recupera a estrada que deixaste marcada – dostoievski
dizia: torna-te consciente de ti mesmo. mesmo que tenhas de enfrentar a tua
verdade interior. mesmo que sofras – eu acredito que o gerador da felicidade é
a dor. a desilusão. a perda. o medo. o fracasso. o trauma. a dúvida. o terror
de não podermos voltar atrás e emendar o erro. é também a decisão de percorrer
caminho. do movimento. e tal como um astro rodamos. e criamos o nosso próprio
campo magnético. atraímos o que em nossa volta roda. num outro campo magnético.
e sem que o corpo saiba trazemos para dentro de nós a consciência de alguém. a
sua vontade de nos inundar com o que é seu – e quando superamos essas
debilidades. somos felizes – bem sei que por pouco tempo. os desaires ficam
para toda a vida. a felicidade é efémera – porque será que a felicidade é passageira?
porque enquanto os desaires se contraem no corpo. e a nossa capacidade de
armazenamento é quase ilimitada. a felicidade expande-se. não a conseguimos
reter. esvai-se. como água com consciência – o corpo serve apenas para nos
diferenciar uns dos outros. as pernas para saberem que chegamos. os braços para
saberem que abraçamos. os olhos para saberem que reconhecemos. e a boca para gritar
ao universo que nos devolva a luz – e vamos à procura de mais felicidade. e
depois ainda mais. precisamos dela para sobreviver. e quando não a encontramos.
na maior parte das vezes por nossa culpa. o trabalho cega-nos. as distrações
dos amigos. a família consome-nos. e sem dar conta estamos perdidos no tempo.
não do universo. esse não se perde. está em nós desde o nosso primeiro dia. mas
de nós. passamos a ser o que na verdade não somos. vestimos a armadura de aço e
resistimos. morremos de olhos abertos – e a felicidade logo ali. tão perto. tão
simples. tudo se resolve com uma equação de três simples: despoja-te. liberta o
peso. entrega-te ao desconhecido. acredita no invisível. entrega-te a ti. e
vive inteiro – foi assim que cheguei ao boom – a minha consciência fundiu-se
com outra. e com mais cem mil que tiveram o mesmo desejo que eu: ter uma nova
experiência de vida. iluminar-me por conta dos seus astros. da estrela a que
cada um pertence – com a minha idade pensei: vais sofrer. aquela malta vai-te
trucidar – mas não. fui eu que me trucidei. abri a porta e as cordas partiram
em debandada. interligaram-se. teletransportei-me para cada uma daquelas consciências.
e todas. me entregaram o melhor de si – tornei-me o núcleo do universo. porque
só quando somos muitos temos força suficiente para nos tornamos um núcleo.
ligamo-nos como se juntam os átomos. talvez da água. e balançamos – depois subimos
como bolinhas de sabão ao universo… e por ali ficamos. a ver-nos como somos. e
na verdade. somos muito menos do que uma bolinha de sabão. inexplicavelmente
perdida entre estrelas sem nome – e talvez bóreas. sentado numa galáxia
distante. tenha percebido. quanto pode ser importante uma pequenina bolinha de
sabão. e levantou um ventinho fininho. que me levou para o infinito de mim. e
percebi que ainda hoje não sei onde termino. sou muito mais do que pensava. e
muito menos do que uma bolinha de sabão – tirou-me a pele. e senti o frio de
viver livre. dancei como os meus ancestrais dançavam. e tornei-me no peão que
faltava no tabuleiro de xadrez. e o jogo começou. e compreendi que sem mim. sem
peão. não haveria boom. mesmo invisível as cordas deram-me forma. tornei-me
espírito. e saí do meu corpo sem medo de não voltar – isto é liberdade. isto é
consciência. isto é dar a mão ao mundo. e tal como paulo de carvalho. cantor
português. fiz uma fogueira dentro de mim. e dancei numa consciência coletiva –
e fiquei com a certeza de que pelo menos uma estrela daquele céu era minha – eu
estava no único lugar onde poderia estar e com as pessoas que deveria estar. a
minha conexão era total. percorri mil vezes cada uma daquelas pessoas. e todas
me visitaram mais de mil vezes. dei e recebi. e nenhuma teoria física seria
capaz de resolver esta equação. só a consciência tem a fórmula – neste segundo
dia vagueei pelo espaço – era tudo tão novo – às vezes parecia que durante o
sono as fadas tinham mudado tudo. as pessoas tão diferentes e tão iguais. famílias
com crianças. pais jovens. amigos em bando. solitários. velhos que pareciam
novos. namorados apaixonados. todos a girar. como se fossem planetas. talvez caminhassem
por si. ou pelo chamamento da consciência. talvez coletivo. ninguém levava
mapas. não havia guias no chão. nem setas: olha ali uma tenda gigante. uma
escultura. uma árvore. estas formas simbólicas. relembrando uma conexão
profunda com o sagrado e o ritual. luminosas. às vezes abstratas. mas tão
parecidas comigo. identificámo-nos com tudo. porque tudo é o que somos – para
onde quer que se olhe os olhos giram. a consciência gira. e as luzes a cores
pintam a nossa tela interior: era como se dissesse em silêncio: não me levem
daqui. quero aqui ficar para sempre – a massa do corpo não altera com o lugar.
mas aqui eu não me peso. a alma não pesa. a consciência não pesa. vive. sonha.
ri. sossega. é feliz. sem dores e sem medo. afinal. talvez sejamos imortais.
talvez só a carne apodreça. apenas viajamos. talvez o tempo seja relativo.
talvez só aqui todos nós estejamos certos com o que somos – e assim andei. até
deparar com uma projeção de imagens em vapor de água – no lago um repuxo enorme
lançava água a dezenas de metros de altura. que no seu processo descendente. já
em gotículas pequeníssimas. recebia a projeção de frames de várias imagens. que com a gravidade se deformavam aos poucos. até desaparecerem
no espaço dos olhos. enquanto outra imagem se sobrepunha. e assim
sucessivamente – sentei-me na relva com a minha maria joão. os meus amigos e
desconhecidos – todos absorvidos. todos sugados para dentro da viagem animada
de um preto e branco nostálgico – silêncio absoluto – apenas a água e a música de
fundo – estávamos suspensos. entre vida e silêncio – deixei-me embalar pela
magnificência daquele cinema em tela de água. e quando dei por mim chorava
copiosamente. não sei quanto tempo chorei. sei que foi o suficiente para voltar
ao passado e encerrar um momento da minha vida que sempre imaginei estar
fechado – este é o único retalho da minha vida que partilho aqui. haveria
muitos. mas cada um deve viver as suas viagens em solidão. ou então encontrar
as pessoas certas para partilhar – há vinte e sete anos o meu pai faleceu. e a
minha família. como uma outra qualquer. estava em pranto absoluto. devastados.
eu era o mais novo. mas velho o suficiente para ser forte. tinha trinta e oito
anos – eu sabia que era o mais resistente. quando somos novos pensamos ser
sempre o que em verdade não somos – não deitei uma lágrima à frente da minha
mãe. irmãos. esposa. e filhos – foram três dias de superação interior – pela
noite. descia para a rua e entrava no carro. punha a cassete a tocar. charlie
haden & pat metheny – spiritual. e chorava copiosamente. berrava até que os
ouvidos serem só ruído. a dor era tão forte que dilacerava-me o corpo. a alma
em pasta. retorcida. e assim estava horas aos murros ao volante. a insultar
deus e o universo de tudo o que pudesse magoar. a água escorria-me dos olhos –
corpo ensopado de mim – de raiva. de ira. de revolta e jurava nunca mais lhes
perdoar – pois bem. naquele espaço mágico chorei as mesmas lágrimas. senti as
mesmas dores. exatamente a mesma dor. a mesma raiva. tudo era tão real. tão
daquele dia. o corpo sentiu a mesma vontade de morrer. de destruir o mundo. o
mesmo sentimento de perda. o meu pai ali deitado. e eu de pé. sem que a dor
pudesse mexer em mim um músculo. uma lágrima – quando acabei tinha enterrado definitivamente
o meu pai. tinha cicatrizado uma ferida que não sabia que estava aberta. por
fim. depois de tanto tempo. fiz as pazes desse dia – quando me levantei disse
aos meus amigos que tinha que me recolher. estava cansado. estava completamente
vazio. oco. não sentia nem o corpo. nem a mente. mas senti paz. senti que
estava no meio do universo. sem peso. sem nada a reclamar de mim e do mundo – se
tinha dúvidas foram todas dissipadas. se não fosse por mais nada a minha ida ao
boom tinha sido recompensado com algo que nunca imaginei que fosse possível –
fiz as pazes desse dia – é preciso acreditar na evolução do mundo. das pessoas.
e da sua consciência – é preciso compreender a física – há cem anos a física
explicava menos do que hoje. se não acreditarmos. só nos resta a teologia – foi
isso que a física quântica nos trouxe. a oportunidade de trazer para dentro de si
a consciência – nós somos alma. energia revestida por um corpo – estamos emaranhados
num universo de energia – assim podemos sentir-nos ao mesmo tempo em vários lugares.
dentro ou fora do corpo. as batidas marcam o ritmo das viagens. e os lugares ligam-se
pela velocidade das vibrações – podemos viajar por vários lugares ao mesmo
tempo. mas no boom aprendi a ficar onde estava feliz. se viajei. isso foi
apenas porque as forças do universo me levaram. cintilante fiz-me estrela. iluminei
os que comigo preferiram ficar ali. e todos nos ligamos ao universo por cordas
que vibram em nós – e assim fechei mais um dia no boom – e abri mais uma
estrada em mim – envelhecer tem a sua vantagem. o corpo mirra. mas a mente já
não me trai – voa em viagens de reconhecimento. para um dia saber. qual a
estrela que me pertence desde o nascimento
pois bem. depois de cerca de trezentos quilómetros de
caravana e de muitas horas de expectativa para entrar na quinta da herdade –
uma noite de espera e parte do dia – lá chegamos – eu. maria joão. minha
companheira há quarenta e quatro anos. os amigos luís e mariana ainda a começar
a contar os anos de ligação. e maddy.
minha amiga há quase vinte anos – uma vistoria rápida na entrada para garantir
que cumpríamos as regras. zero tolerância para vidro. álcool e drogas. e lá nos
indicaram o local onde estacionar. no topo do monte que protege a norte o
espaço do boom – já era noite. e à nossa volta apenas eucaliptos. pó e o
desconhecido pela frente – de noite todos os gatos são pardos – uma refeição
rápida. um banho e toca a descer para a festa. a expectativa era imensa. perder
a primeira noite não era opção – lá fomos. e seguimos a regra de quem viaja sem
mapa. seguir quem já caminha com sentido – uma descida íngreme de quase dois
quilómetros. e a meio já se ouviam as batidas. e ao longe uma constelação de luzes
mágicas – com a aproximação ao recinto começamos a sentir a grandeza do espaço
– o primeiro olhar colado ao rosto – o espanto na alma – a intuição instantânea
de que ia ser feliz – confesso. a minha escrita não alcança. não chega. não
toca o que me foi oferecido. era muita luz a invadir-me os sentidos. com cores
e projeções que nunca tinha imaginado – diria que é a disney dos adultos – era luz. era música. era cor. era tudo a
acontecer de uma só vez – era tudo a acontecer em mim – para ser verdadeiramente
feliz basta perder o preconceito e lançarmo-nos sem medo para cada apelo da
alma – e havia muitos apelos. o problema era saber para onde olhar e caminhar –
pela primeira vez senti-me verdadeiramente livre. ligado às pessoas. ligado à
natureza. ligado às galáxias. fazia parte de um organismo uno que me recebia
inteiro no ser. como se renascesse ali naquele instante – o corpo e a mente
deixaram de magoar. e partimos à deriva para cada bolha artística. um oceano de
luz. um oceano de música. um oceano de vibração. um oceano de vida. um oceano
sem fim. ligado às pessoas. ligado à natureza. ligado às galáxias. ligado a
tudo. e eu a navegar à bolina – preso e solto ao mesmo tempo – como se o ar
fosse água. como se eu já não tivesse corpo. como se fosse apenas alma. apenas
vibração – e as ninfas do lago em chamamentos para sair de onde estava. porque
o outro lugar chamava mais forte – senti-me mágico. também eu tinha mordido a
maçã do encantamento – a questão era quanto tempo ia durar o efeito – para
minha surpresa dura. dura até hoje – revisitar o boom é apenas necessário
fechar os olhos – em cada esquina um misto de estruturas iluminadas. algumas do
tamanho do adamastor. talvez maiores – nenhuma cabia inteira na cabeça. nenhuma
cabia inteira no peito. olhar para uma parte era deixar outra de fora – e eu a
mergulhar nas luzes de cada escultura. algumas abstratas. cintilantes. que nos
lançavam para o espaço sem nunca tirar os pés do sagrado – figuras
antropomórficas que nos prendiam. nos sacudiam de todas as maldades do mundo –
e em cada passo a sensação de já não caminhar. mas voar preso a cada feixe de
luz – talvez peter pan. talvez um duende – uma alma transfigurada por um
sentimento de felicidade que nunca tinha conhecido – e ainda hoje vibra – de
seguida entramos nas tendas gigantes. eram três. separadas por um manto
sagrado. apesar dos decibéis. nenhuma batida fugia para outra tenda. como se
houvesse um muro invisível. uma mão que separasse as notas de música. e dentro
delas milhares de jovens e não jovens a baloiçar os corpos. iguais aos de beach
party by nova era. o corpo para um lado. e o cardume inteiro em movimento.
todos em transe. e a cada batida uma perna para a frente. logo outra para trás.
ninguém sai do sítio. e todos caminham pela imensidão do espaço sideral – e eu
ali. a caminhar com eles. primeiro a medo. depois já no cardume. deixei-me
apanhar pela música. deixei que ela me levasse para onde o meu espírito se
encontrasse com o que sou verdadeiramente. sem medo. sem preconceitos. nunca
deixei de ser quem sou. mas passei a ser mais. mais do que sabia. mais do que
pensava. mais do que sonhava ser. e completei-me. trouxe dos outros o que pude.
e em vez de me sentir cheio. senti-me vazio do que pensava ser essencial. e
passei eu mesmo a ser um ser tribal. feito de batidas e sentimentos que
desconhecia – as gavetas abriram-se. as janelas abriram-se. as portas
abriram-se. tudo se abriu. eu também me abri. e fiquei apenas água. a ondular.
a amar tudo o que me rodeava. e a certeza mais uma vez de que havia escolhido a
mulher certa para a vida – estávamos felizes. estávamos os dois livres. e
livres. nunca nos conseguimos separar. voamos para o luar. iluminamos o caminho
que escolhemos. e brilhamos como dois pirilampos. como duas centelhas no
escuro. como dois sóis a nascer – beijamo-nos como adolescentes. e dissemos: os
nossos filhos deveriam um dia experimentar esta liberdade – por fim. cansados.
já depois das cinco da manhã partimos à procura do descanso. subimos em direção
ao céu. e dormimos como anjos – tínhamos a certeza de que tínhamos feito a
opção certa. estar no boom fez-nos bem. aproximou-nos. e fez-nos recordar o que
de melhor trouxe a nossa união: os filhos. nossos deuses. nossa glória. nossa
virtude. nossa eternidade. nossa razão de ser. nosso infinito. nosso
além-túmulo dentro de nós
estaterceira parte será preenchida com uma das maiores experiências da
minha vida. o festival boom. bienal. em idanha-a-nova. herdade da granja – não
será fácil descrever esta minha participação no boom. para ser honesto nem sei
bem por onde começar. mas vou com coragem. vou com tudo – o que é o boom? bem.
o boom é muito mais do que música. arte e cultura: é uma experiência
internacional. um evento de carácter único e transformador. celebrado como um
dos maiores e mais originais da europa – centrado na trance psicadélica goa.
acabou por evoluir para um festival multidisciplinar que abraça música
eletrónica. artes visuais. performances. workshops. conferências. cinema.
manifestações culturais diversas. meditação e práticas espirituais. oferecendo
uma experiência holística e sensorial – a organização do boom não aceita
patrocínios. talvez por isso seja tão pouco divulgado nos nossos canais de
informação – todos sabemos que as companhias de telecomunicações. todas juntas.
faturaram no último verão mais de sessenta milhões de euros. estamos a falar de
um negócio muito lucrativo. e obviamente. com o seu ramo poderosíssimo junto
das estações de TV. tudo fazem para não ser divulgado. e quando é. acaba quase
sempre por ser por motivos pouco nobres – o boom promove a consciência
ambiental. a sustentabilidade. a multiculturalidade. a espiritualidade. a
liberdade. e a diversidade artística – eu. no meu trabalho estou ligado ao
ambiente. e sinceramente. fiquei muito satisfeito com o seu compromisso
ecológico: energia solar. energia eólica. sanitas ecológicas. reciclagem.
tratamento de águas. tudo está pensado em favor da natureza – o boom reuniu
participantes de 220 países. sendo os festivaleiros estrangeiros a grande
maioria. cerca de 85%. com diferentes faixas etárias. famílias. crianças. todos
em harmonia. como se o tempo nestes oito dias parasse de existir – junta mais
de cem mil pessoas. os bilhetes esgotam rapidamente. mas podia ter o dobro ou o
triplo de participantes. não o permitem apenas porque. no seu entender. o espaço.
225 hectares de terra deserta. apenas ocupada pela natureza. seria seriamente
afetada pelo excesso de gente – pode chegar ao boom apenas com um cobertor.
acampar. ou se preferir estar mais cómodo chegar de caravana. e não se preocupe
com comida. há tendas com todo o tipo de pratos. de todas as partes do mundo. e
se for vegan ou vegetariano. também encontra – se entender criar as suas
próprias refeições. há também um supermercado para o ajudar e locais próprios
para cozinhar – vidro e fogões de campismo a gás são proibidos – há um hospital
de campanha. com primeiros socorros em permanência. médicos e enfermeiros vinte
e quatro horas por dia. e uma tenda especial para testar drogas. a prioridade é
a sua segurança. saber o que consome é fundamental para que a sua experiência
seja uma boa recordação – o boom é um universo vivo de cultura e partilha. onde
cada experiência abre caminhos de transformação interior. no qual os laços
humanos se entrelaçam e a terra é celebrada com consciência – o boom acontece
sempre no final de julho ou início de agosto. durante a lua cheia. com o luar a
servir de holofote. junto a um lago refletido no deserto da beira baixa. a dar
brilho aos corpos em transe. como se o céu descesse para dançar – os bilhetes
geralmente são postos à venda no fim do ano que precede o festival. e a
sugestão que deixo. é se quiser participar neste grande evento. incluído entre
os dez melhores festivais do mundo. e considerado o melhor da europa. esteja
atento. e corra. pode mesmo assim não chegar a tempo – o boom não é apenas um
festival a que se vai. é um lugar dentro de nós a que se regressa sempre – mas
por mais que se fale do boom. nada se compara a estar lá – e é isso que vou
partilhar a seguir. mostrar-vos que o boom é uma arca de noé erguida sob a lua
cheia. onde as pessoas se encontram consigo mesmas: para dançar. meditar e
contemplar a diversidade do mundo e. por fim. para acolher cada uma dessas
partes como sua. sem preconceito. sem temor. sem medo do amanhã e das suas
diferenças
há pouco mais de um ano. mais propriamente em
28 de junho de 2024. um amigo. luís silva. convidou-me para ir a um festival de
música eletrónica. beach party by nova era. em leça da palmeira. na praia do aterro. a sua empresa
hoteleira era um dos patrocinadores. e deste modo. tínhamos acesso aos lugares
VIP – não era o meu tipo de música. muito longe disso. mas quando um amigo
convida. é nossa obrigação dizer presente – uma coisa é certa. não o
acompanhava pela música. mas sim pela companhia. ainda para mais sou avesso a
multidões – em local privilegiado. pensava eu. em cima de um palanque com vista
direta para DJs. e ali ficamos um pouco a beber uma cerveja – algo de que também
não morro de amores – sem perceber muito bem a ligação daquela juventude.
ligada a ritmos sincronizados das batidas. entreguei-me em consciência – e
interroguei-me. o que faz esta malta vibrar com estes graves barulhentos? de um
momento para o outro. o meu amigo sugere que fossemos para o meio dos
festivaleiros. e assim fizemos. descemos as escadas. o medo também. e
misturámo-nos na multidão – eu nas massas sinto-me sempre despido. prensado. e
fico sem saber o que fazer comigo – ao princípio estranhei. depois entranhei.
estava preocupado com a minha presença. pensei: vou desarrumar esta malta.
todos tão jovens. e eu. sénior. ali metido no meio deles – aos poucos fui-me
sentido mais tranquilo. e comecei a dar a minha atenção à música. mais
especialmente ao movimento dos jovens. aos seus comportamentos. à forma como se
agitavam. particularmente tentar perceber se os seus movimentos estavam ligados
de alguma forma ao ritmo das batidas – ali fiquei em busca da razão destes
juvenis. deixei cair o preconceito e pensei: se esta massa humana está toda a
vibrar e são milhares. tem que haver uma razão sólida e válida para esta
agitação. e para que mundialmente haja cada vez mais adeptos
deste tipo de música. não pode ser apenas a juventude a influenciar este
movimento – e no meio daquelas batidas loucas. com as luzes psicadélicas a
fermentarem a minha íris. como se os olhos fossem depósitos de cores em
agitação. senti os graves. ligados entre si por uma cadência ritmada.
envolvente. ao ponto de criar uma ondulação. também ela com ritmo. dentro do
corpo. que como todos sabem é setenta e cinco por cento água – ao fim de algum
tempo percebi que os festivaleiros moviam-se todos eles de uma forma
sincronizada. quando tombavam para a direita. todos tombavam. se atiravam o
corpo para a esquerda. mais uma vez todos tombavam para esquerda. e a cabeça em
oposição sempre a contrariar o corpo. como se quisessem deixar os pensamentos
fora do desequilíbrio. talvez o que tivessem em mente não pudesse ser abanado.
talvez tivessem medo de perder a felicidade. talvez com medo de voltarem para
as azafamas do mundo – ser jovem nem sempre é fácil – no meu tempo era mais
fácil – ao fim de algum tempo criei uma analogia. eram cardumes invisíveis.
ondas de carne e respiração em geometria perfeita. possivelmente para enganarem
os predadores. moviam-se como se todos fizessem parte de um bailado de
rudolf nureyev.talvez marguerite and armand criando um movimento
sincronizado. belo. que no seu limite. criava ilusão de segurança. ou de fuga
para um outro planeta – talvez estes jovens. com os seus movimentos ordenados.
criem esse tipo cardume. todos fazem parte de um todo. um organismo uno
celular. e assim capaz de se defenderem deste mundo desengonçado. um mundo onde
todos somos desconhecidos uns dos outros – foi uma grande experiência. e
durante muito tempo deixou-me a pensar: porque não fui eu capaz de entender esta
malta radical? a resposta é simples. por preconceito. por ter envelhecido. e
por achar que esta música era para os jovens. e que eu. adulto envelhecido. já
não tinha direito a invadir o seu espaço – o que aprendi. e hoje sei o bem que
me fez. é que música é música. tal como um livro é um livro. não podemos dizer
que não se gosta sem pelo menos tentar compreendê-la. sem lhe dar uma
oportunidade de nos ocupar – o mundo só é perfeito pela sua diversidade. de
outra forma não haveria evolução. ainda estaríamos a fazer fogo com duas pedras – este festival viria mais tarde
a proporcionar-me um dos momentos mais fantásticos da vida – eu mereci-o.
derrubei os meus próprios muros. e encontrei um novo mundo. encontrei a
liberdade inteira. sem preconceito. a baloiçar o meu corpo de água – e por fim.
estou grato ao meu amigo por me oferecer uma parte do seu conhecimento. da sua
vida – é essa coragem que todos nós precisamos em algum momento da nossa
existência. nada mais fantástico do que chegar por alguém que me conhece bem –
é nesse transe de palavras que vou contar como a música me encontrou. e como me
levou ao boom. festival em idanha-a-nova