12/12/2025

a importância de ser ridículo

 






nota de autor – este texto nasceu das minhas falhas matinais e da teimosa mania de perder os chinelos – escrevi-o para aprender a rir de mim e. quem sabe. ajudar outros a rirem-se de si – se há aqui alguma verdade. é esta: ser ridículo também é uma forma de existir

 

nesse dia acordei cheio de falhas – perguntei-me o que me falta para deixar de ser ridículo – sentei-me na beira da cama. atirei os pés para o chão. olhei-me de cima a baixo. estava todo – depois olhei o relógio. marcava as horas certas para me encontrar com o mundo – voltei a olhar-me e comecei a contar as falhas que encontrei em mim – a primeira que encontrei foi um botão do casaco de pijama desabotoado. e interroguei-me. como fui capaz de me deitar assim? estou a perder o brio – quando envelhecemos vamos perdendo tudo – abotoei-o. mais vale tarde do que nunca – de seguida percebi que o telemóvel não estava a carregar. outra falha. esta grave. o mundo que me serve vive no interior desse aparelho. o mais certo é ficar isolado de mim a qualquer momento – quando pensei que as falhas ficariam por ali. mais uma. faltava-me os chinelos de quarto – como poria os pés no chão sem proteção? vou ter que ir para o banho em bicos de pés. mesmo assim estou sujeito a ficar rendido. e um homem rendido é um homem diminuído – só de pensar sinto o escroto a contrair – não há nada pior do que acordar com a sensação de que sou um falhado – as manhãs são sempre intensas. um homem quando dorme mal acorda devagarinho. às vezes. de tão devagarinho. fica sem saber se se está a levantar ou a deitar – mas hoje estava acordado. não diria bem acordado. mas no ponto. médio. como os bifes quando me perguntam se quero bem ou mal passado – olhei em frente. que não era grande distância. a tocar-me os olhos tinha um guarda-vestidos. e dentro dele uma vida inteira protegida – abri a porta. de correr para os lados. comigo raramente alguma coisa anda para a frente. e veio-me à memória um casaco que me levou à lapónia – não foi uma grande viagem. culpa minha. quem se lembra de ir visitar o pai natal no mês de agosto. só lá estavam as renas e o capataz que tomava conta delas – era um sujeito mal humorado. barrigudo e com uma barba enorme. branca. nem se dignou a responder às minhas perguntas – quem respondia era o cão. um husky siberiano. mas não percebi o que me queria dizer – mas também o que importa. um cão só é o melhor amigo do homem porque não fala a mesma língua dos humanos – e ali fiquei. num estado de sonolência que comprometia o dia. a interrogar-me: onde falhei. onde estão os chinelos do quarto? olhei para o interior da porta onde guardo os dias que já me aconteceram. e ao lado do casaco um colete de sarja. com os dentes marcados de um leão do serenguéti – não era um mau leão. estava apenas aborrecido com o excesso de turistas na sua terra – acabei por ter sorte. juntei-lhe uma pitada de coragem. uma lata de espinafres. e quando abriu as mandibulas meti-lhe a mão pela boca dentro. bem até ao fundo. e virei-o do avesso – foi uma viagem memorável. apanhei o avião para a tanzânia. e depois segui para as planícies sem fim. no norte do país. em cima de um elefante-da-savana. primo afastado do dumbo – as orelhas eram menos irrequietas e mais pequenas – mas via-se que era da família – não foi uma viagem fácil. corri várias vezes perigo. lutei com uma anaconda da américa do sul. mas já emigrada em áfrica há muitos anos – aborreci-me também com um crocodilo. felizmente resolvi a situação com diálogo – quando me apanhei no avião de volta fiquei numa alegria. estas viagens são cada vez mais perigosas. não sei se é pelo buraco do ozono. pelo aumento das temperaturas. mas os animais saíram do seu habitat e misturaram-se com os humanos – claro que hoje já se começa a ouvir com frequência no reino animal: diz-me com quem andas. eu te direi quem és – e com razão. no dia em que ia embarcar para o meu país. estava um urso polar a chegar com destino ao serenguéti. mas com aquele casaco de pelo não vai passar bem – imagino o pobre coitado com o rabo metido num frappé de cerveja e um prato de tremoços na mão – foi então que me voltei a perguntar: o que me falta para deixar de ser ridículo? onde estão as minhas falhas?  estava ainda ensonado. aborrecido por não saber onde tinha deixado os chinelos de quarto. olhei para o relógio digital. marcava uma hora que desconhecia. talvez fosse cedo demais para pensar. talvez ainda fosse noite profunda. talvez me tivesse perdido num qualquer fuso horário. talvez tivesse perdido greenwich. ou o juízo – para ser franco não quero saber. sei que a porta da minha vida está aberta. e que toda a roupa no seu interior encaixa nas minhas medidas. sou o reflexo das cores que usei – um homem não pode acordar rápido. para acordar sem abrir os olhos era na adolescência. nessa altura os sonhos penduravam-se nas pálpebras. eram tantos que nem as deixavam abrir – agora já não é assim. há sempre um bico de papagaio a queixar-se do colchão. o mau hálito preso a um filete de peixe do jantar do dia anterior. e o chá de camomila para sossegar a alma. dar-lhe descanso ainda em vida. acaba por dilatar a bexiga e mais cedo ou mais tarde vou ter de dormir com um urinol ao pé da cama. porque enquanto procuro os chinelos arrisco-me a fazer xixi pelas pernas abaixo – um homem nunca deveria envelhecer. antigamente sonhava ir ao evereste. e no outro dia peguei na mochila e fui – toda a gente dizia que era muito alto. mas nunca achei isso. era do tamanho dos meus sonhos – quando lá cheguei. tirei uma manta de arraiolos da mochila. estendi-a no chão. sentei-me. olhei para o futuro e perguntei a mim mesmo: o que vieste fazer ao teto do mundo – nunca encontrei resposta que me satisfizesse. dei uma volta inteira sobre mim. trezentos e sessenta graus. e nunca me vi em lado nenhum – foi então que percebi que o melhor que fazemos é viver um dia de cada vez – levava comigo uma sande de marmelada. igual à que comia na escola primária. juntei-lhe um jarro de tinto verde carrascão. um pastel de nata. e no fim um café expresso com adoçante por causa dos diabetes – ali fiquei. a olhar o mundo que tinha deixado em baixo. e por muito que possamos subir. nunca deixaremos de levar connosco as nossas origens – somos o que somos – e pior de tudo é que mesmo no cimo do monte continuo sem saber onde deixei os chinelos – ainda bem que guardo as botas de subir dificuldades dentro do armário – e por ali me demorei a olhar para o que fui. nada de novo guardo naquele armário. tudo dentro dele já foi usado – mas estou numa fase da vida que já não quero roupa nova. quero-me a mim. por inteiro. quero-me a viver dentro de uma caixa de burronas com mais de mil cores – e para cada dia em que perco os chinelos pinto-me de uma cor que me faça existir como nunca fui – tenho duas vidas. teria mais se tivesse tempo para as escrever. mas como hoje quero algo rápido. como antigamente os telegramas – hoje deixo de ser ridículo. stop. amanhã voltarei a ser o que sou. stop. cumprimentos – quero ser um telegrama que diga pouca coisa mas que faça muita distância – quero ser astronauta. neil armstrong. e poder dizer para mim. hoje é um pequeno passo sem chinelos. mas um passo gigante descalço – quero ser jacques cousteau. construir um calypso. e navegar por mim. descobrir o meu mundo silencioso. e colocar uma tabuleta no coração a dizer: em construção. não faça barulho – quero ser pintor. edvard munch. e que de dentro de mim saia um grito que se faça ouvir em todos aqueles que se sentem ridículos. e se mesmo assim a surdez teimar em não ouvir. então que se levante uma tempestade de areia e cubra o mundo de pó para que ninguém possa cuspir para o ar – quero ser relojoeiro. com uma luneta no olho da precisão. a dar corda a rodinhas. ponteirinhos e parafusinhos. mas se mesmo assim não der ao tempo uma razão para eu continuar a existir. então que me marquem na testa um relógio de sol. e no céu uma estrela polar. quero partir para chegar a horas de me reinventar sem falhas – por último. e porque quero ser todas as profissões do mundo. mas não domino a física quântica. nem sei viajar no tempo à velocidade da luz. quero ser escritor. quero escrever-me numa história de humor. e mesmo que ninguém ria por não me achar ridículo. quero que saibam. que em cada palavra escrita há uma falha que invento em mim. não é por mal. mas preciso de ser ridículo para escrever – estamos numa quadra especial. temos que ser solidários com quem não é ridículo. por isso por momentos deixei de ser ridículo e nada melhor que terminar com um poema de natal – não gosto de passar por esta quadra sem deixar um apontamento de luz

 

 

a revolta das vacas 

dez vacas entraram num supermercado 


[perto de si] 


ameaçaram o leiteiro 

destruíram as bolas de queijo

e

e torturaram os ovos kinder 

de seguida colocaram-se em fuga 

num carro a alta velocidade 


[testemunhas. sérias. afirmam ter visto um pacote de leite magro ao volante de uma carrinha mimosa]

 

só escapou a margarina  e os pais natal de chocolate

 

[estavam no frigorífico protegidos por uma camada de frio]

 

 

e assim terminou a minha história. stop. os chinelos ainda não apareceram. stop. mas se aparecerem. stop. que seja perto de mim. stop. não estou para grandes viagens. stop. saudações ridículas. stop

 

08/12/2025

a morte não é fim. é só o que resta de nós

 





nota de autor

este texto nasceu do silêncio. escrevi-o para aprender a despedir-me de mim e para agradecer aos que me deram forma – não é um funeral: é uma devolução. um regresso ao princípio. um gesto de amor pelo que fica

 

naquele momento todos os corpos estavam hirtos. todos menos eu e o padre – eu já só era corpo-silêncio. deitado com o que restava de mim – o padre de joelhos. em vénia. naquele friozinho divino rezava ao sagrado. enquanto as mãos se entrelaçavam em orações de salvação – hoje é o dia em que me despeço da vida. quer dizer. para os que me rodeiam já me despedi. mas não sabem que ainda estou naquele limbo. o escuro e as sombras – as mãos emparelhadas ao centro de mim ajustam o fato ao correr do corpo – camisa branca engomada presa ao nó de gravata que me sufoca. sapato negro. e um terço a contar os rosários da vida – e eu a ver os santos pendurados nos pedestais – tantos e todos a olhar para o céu – a igreja que me recebe como último adeus está cansada destas despedidas. todos os humanos se despedem. não importa o que foram ou o que fizeram. tudo vale o mesmo — até o que fingimos esquecer – e aqui fico a olhar o teto numa subtileza que os olhos não temem – e eu ali. refletido naqueles que me velam. entre o altar e o que já não sou. a olhar para cristo – e a dizer baixinho: tem uma coroa igual à minha – e os santos a murmurar entre dentes – os bancos corridos de sicupira percorrem a igreja em dois lados. cansados de tanto corpo que não regressou – a meio o corredor preso a uma carpete vermelha foge da porta em direção ao sacrário. entra no conopeu. e enfrenta o corpo do senhor numa hóstia alumiada por duas velas sem dúvidas do que ali existe – só não sei se os santos olham para algum defunto – talvez escolham uns e não outros por capricho. ou pelas esmolas – não creio que se interessem muito pelo que fizemos em vida. ou então pelo que tentamos alcançar – as velas ardem para nos anunciar o inferno. em cada chama um pecado a gritar salvação. e um santo a olhar de soslaio – está meia casa. não tenho muitos admiradores. nem muitos amigos. mas os que aqui estão deram-me imenso trabalho. por isso sinto-me confortável. aceito a meia igreja como se fosse uma multidão – não sei tudo o que deixei para trás. mas sei que estou aqui. e sei que a morte é um momento roubado à vida. enquanto o manustérgio e galheteiros correm para o altar nas mãos do sacristão – é preciso despachar o defunto – só cristo se mantinha impávido. braços abertos. pregados a uma cruz que bem podia ser a minha – afinal somos cúmplices um do outro desde a catequese – enquanto ele se demorava nos seus mistérios. eu saí à minha procura – agora sempre que olho para ele fico sem saber o que lhe dizer – talvez me esteja a tentar perguntar: está aqui a fazer o quê? sempre o conheci naquela posição. imaginava que estava assim para poder abraçar. mas não – nasceu assim. e mesmo que quisesse fechar os braços não seria capaz – é a forma de se equilibrar nos humanos. suspenso num arame que ninguém vê – eu também não podia mudar – a estola avança primeiro que o padre. mãos em prece e o cíngulo sem saber se anda para a frente ou para trás – o missal marca a abertura para o fim – fez-se um silêncio de morte – o padre virado de costas para cristo. remoía baixinho o silêncio – não sei se por mim ou se pelos santos olharem para o céu – não sei há quanto tempo estou aqui. sei apenas que ainda sou este vento fininho preso a mim – já não consigo ver nada do caminho percorrido – só tenho a porta como destino – mas que importa o que está para trás. se não lhe posso tocar – a missa de corpo presente prossegue como se houvesse muito para contar – as palavras são o que são – mas algumas ainda me incomodam – obrigam-me a cerrar os olhos – ninguém ouve nada num sermão de despedida –  os santos não lhe ligam. não tiram os olhos do além. mas também não posso estranhar. sempre foram assim. pelo menos comigo – nem são judas tadeu. o santo das causas impossíveis. me deu ouvidos – a sineta do altar estremece o silêncio – o corpo de cristo é levado às alturas – e eu à procura de uma esmola para a volta do sacristão – a putrefação é o meu último aroma – o que sei é que não estou só nesta despedida – leva-me o silêncio – mas não posso falar do que me sustém antes de falar de mim – eu sou a família. e todos são apenas um – foi nela que procurei um lugar para chegar – foi com ela que fiz da terra estrada. da voz rugido. e das mãos orações para eu escutar – foi por ela que me inventei para que o amanhã chegasse mais cedo – para que vivessem sem medo – fiz de mim uma autoestrada. e se nunca fui abençoado. foi porque nunca cheguei ao destino – a família sempre foi o lugar onde a minha vida assentou. e carreguei-a comigo com toda a minha honra e dignidade – e agora. que estou nesta antecâmara do que fui e do que possa vir a ser. sei que. mesmo quando me perdi. permaneci inteiro – e tudo o que me deram é o que sou – fiz de mim procura. e se nada me encontrou. foi porque a chegada nunca foi o meu lugar – antes de seguir para o silêncio do meu pai. tenho de falar da minha mãe – foi ela que me trouxe ao mundo. foi ela que fez dos seus dias o gesto de esperar por mim – e quando o grito chegou. eu fiquei para sempre perfume seu – é este perfume agora que sufoca a putrefação – e nos dias em que me tornei passageiro do desacerto. com o corpo esquecido da razão. foi a memória primeira. o sopro inicial. que me levou de encontro à voz que havia dentro de mim – afinal era a tua – porque para uma mãe um filho não cresce. somos sempre o seu segredo. e no abraço o gesto mais puro de todo o universo – um homem só encontra o peso inteiro do seu nome quando o céu se faz órfão – a minha mãe viveu até aos noventa e quatro anos – tive tempo para lhe mostrar que. a memória do dia em que me deu um nome. ainda hoje respira no que sou – onde nós estamos agora – porque ela estará sempre onde eu estiver – não importa se estou morto ou não. ela vive em mim – ela é a força que nos ligou em volta de uma missão – mesmo na ausência. sou-te assim – tanto de nós a caber no silêncio. e logo que a porta se feche quero os braços da minha mãe – porque no fim somos sempre o que deixamos – fui-lhe abrigo. fui-lhe filho. e trouxe-lhe a minha família para que soubesse que tudo o que sou lhe pertence – a minha vida inteira – e agora. nesta imobilidade temporal. procuro apenas o gesto que me liga à vida – maria joão. os teus lábios continuam pousados na memória de mim – e nesta alma sem corpo és ainda a casa onde me abandono – és a claridade que guardo. a imagem que dói por saber que nunca mais adormecerei nos teus cabelos – os momentos eternos vivem num beijo que nos abraçou uma vida inteira – tu és o meu lar – uma cama de palavras e viagens onde a maré sempre nos encontrou – sempre que te procurei. encontrei onde repousar – sempre que te abracei. fiz-me um barco sem velas – foste o círculo de fogo que me segurou até ao fim – em cada grito um avanço. em cada ferida uma cura – e para cada história um recomeço para o fim – e se o vento me obrigar a pedir perdão. eu o farei – à família que me ergueu. ao pai que me deu as voltas que ainda carrego. à mãe que me trouxe ao mundo e me guardou até ao fim. à mulher que me soube. e aos filhos que me continuam – e eu ali. a ver tudo de baixo para cima. o padre às voltas ao que fui. atira incenso como quem atira pedras – e os fantasmas perfilados pelas paredes. pendurados em crucifixos tão nus como eu – e tudo à minha volta é um pedido para partir do frio que me guarda – o nó da gravata. as mãos do meu pai a dar as voltas da vida – nunca saí deste nó. foi a mão dele que me segurou sempre que voava para a minha própria finitude – agora sei que vou embora. vou largar as amarras – a noite segura-me por dentro. como se quisesse ficar comigo mais um instante – e o silêncio do meu pai voltará a mostrar-me o mundo dele. e eu voltarei a saber que sou mesmo seu filho. e do longe faremos palavras – e em cada oração o sujeito seremos nós – agora vou para onde fores. caminharei contigo até ao novo fim – e dir-te-ei no caminho o que sou. irás ficar surpreendido por eu ser tanto de ti – e mesmo que me digas que nada importa. eu te direi que gosto de ti assim como és – e mesmo que o nó se desate de vez. hoje sei que o anjo que inventei para me guardar eras afinal tu – o segundo chega sempre antes do minuto. sempre chegou. mas só agora entendo que é no segundo. e não no minuto. que a vida decide tudo – já nada me resta de tempo – aqui nesta prisão terrena fica o melhor de mim em liberdade – e eu. voarei até ao silêncio. e quando nada em mim restar do que fez dor. daremos as mãos. e juntar-mo-emos à mamã – todos sabemos que a vida é uma correria – ontem era eu. e agora já não sei quem sou. nem sei para onde vou – não sei se estou triste ou feliz. sei apenas que estou em descanso – a vida é uma trabalheira – a consciência nunca nos é explicada. ocupa-nos a liberdade. e com o tempo percebemos que somos quase apenas consciência – e sem fórmula matemática podemos dizer que a consciência é só vida compilada em tempo – a consciência é a lanterna que nos ilumina o caminho. às vezes é a palavra que não se ouve. ou a mão que nos impede de cair – agora o que sei é que estarei morto assim que a porta do sacrário se feche – o cálice da vida arrumado ao escuro. e o corpo de cristo à porta a chamar pelo meu nome – sentirei pela última vez um friozinho a dizer baixinho: olha para mim: está na hora da salvação – à porta anjos e querubins afinam aleluias em trombetas que repetem sempre o mesmo refrão: os desígnios de deus são insondáveis – e quando a minha noite eterna chegar serei um vagabundo do universo – todos os sonhos serão terra. as dores barco à deriva. e a raiva que me consumiu será fogo que se apaga para sempre – e no céu não serei nada. nem pó. porque a pó só vão os bem-aventurados – mas se o vento me obrigar a ajoelhar. eu ajoelharei. porque tudo o que levo é abril. e nos vossos beijos o perfume de ser só o que me deram – vivi para fazer o certo no momento certo. e sempre que falhei foi por ser apenas um de vós – este é o meu fim – no bolso à esquerda. por cima do coração. a foto da minha companheira – continuarei a seu lado para sempre – nas mãos. as dos meus filhos – seguirei de mãos dadas até ao reencontro – no lado direito a família. os amigos que se tornaram família. toda a que couber no seu interior – e o porta-estandarte são as mãos dos meus pais – e agora. deixo-me ir – a porta tomará o seu lugar em definitivo – o fogo curar-me-á de todos os desassossegos – e na boca. a última oração: não me salvem. se não levar a memória dos afetos

 


05/12/2025

a geometria do meio






 

nota de autor

escrita do meu meio corpo – o lado que sangra procura o lado que escuta. e juntos respiram até serem um só

 

um dia destes. quando o sol nascer do outro lado do meu meio corpo. estarei de costas para este meio dia que enxergo – há um descompasso de meio dia no meu meio corpo: meio coração. meio batimento. meio litro de sangue. meia lata de lágrimas guardadas para um aperto afetivo. um pé de meia de quem entende que a vida é feita de meias verdades – talvez seja um eixo desalinhado. rotação – meio. meio dia. e uma multidão assustada parte do meio dia que carrego para outro meio que não sei nomear – ouço bach. só a música devolve a vida inteira ao meu meio corpo – e eu. sem saber a qual meio dia darei a alma inteira – escrevo até descobrir 



24/11/2025

carneiro

 



nota de autor

este é um exercício de reconhecimento. do homem que sou. feito de faísca. impulso e verdade – a minha combustão interior – é menos sobre o zodíaco e mais sobre mim. sobre o que me move. me inquieta e me cria -  um carneiro que existe na coragem de começar

 

o que se pode dizer sobre um homem carneiro? – não sei – mas o que posso dizer sobre mim – é o que sei – falando sobre mim. não há necessidade de acrescentar mais um signo – às vezes sinto-me desconectado do universo. perdido. como se fosse um cometa a fazer a sua orbita. giro e giro e nunca chego a lado nenhum – é assim que me sinto. um pé na terra. a cabeça na lua – e as mãos a tocar o sistema interestelar – sou do primeiro signo do zodíaco. logo trago comigo a vontade da faísca – incendiar para começar. não importa arder. o importante é começar – depois logo se vê até onde chegam as labaredas – este impulso criador é a essência do que sou. tudo se move na vontade de criar. de inovar – de encontrar solução para o que à primeira vista se esconde do possível – todos os dias preciso de começar alguma coisa. não importa o que seja. pode ser um pensamento. um projeto. uma ligação espiritual – o que sei é que vou de alma. a cabeça vem mais atrás – preciso é de acreditar. tem de ser executável – empírico – a rotina destrói-me. o movimento salva-me. e em silêncio encontro sentido -- o risco é parente do sucesso – o zodíaco diz-me que faço fronteira com touro – por isso dizem que sou menos impulsivo e mais estratégico – mas intenso continuo a ser – menos impulsivo não sei. nunca me deram fita métrica para medir o seu alcance – mas creio que mesmo com menos ainda será muito. a impulsividade deixa-me muitas nódoas negras no corpo – e confesso. como forma de perdão. que deixo algumas também em quem me desafia – nem sempre a uso em proporcionalidade – às vezes um tornado de palavras. outras um ventinho fininho. a ferir a epiderme – quanto à estratégia. talvez. nem sempre com bons resultados. mas sempre fiel ao pensamento. e por isso. se há culpa nas minhas falências estratégicas. emocionais ou profissionais. não é minha culpa. é da estratégia que não se alimenta na medida certa do que o mundo oferece – mas apesar de tudo visto-me de verdade – do trabalho feito – do gesto que me torna reconhecido – e principalmente. porque não vivo sem amor. da sua correspondência – reconheci-me a primeira vez com a hora do zénite. o sol entrou-me com fome. e dele retirei a primeira energia para me tornar um sobrevivente – tomei o primeiro leite e senti pela primeira vez o toque da pele que nos cobre. e nos braços da minha mãe a voz que me abraçou. e do nome que me calhou a certeza de que nunca mais poderia ser mais ninguém senão quem sou – nasci para ser líder de mim – e brilhar apenas pelo exemplo – mesmo que não seja do tamanho que imaginei. mas é dentro do que sinto. a obrigação de me sentir reconhecido – carrego comigo o peso da verdade – e essa não tem medida – é do meu tamanho – e dos olhos que a veem – cresci. e comigo a vontade de saber de todos os livros. e o que não sei. é por falta de tempo. talvez se tivesse mais mil anos pela frente. eu pudesse saber tudo de mim. e só se sabe tudo de nós quando sabemos tudo dos outros – a mediocridade abala-me. às vezes até desfaleço. mas o que mais me incomoda são aqueles que sabem tudo – e de tudo se fazem – e com tudo me importunam – não procuro aplauso. posso até ser generoso. mas que ninguém me fique a dever – o que dou é o que me sobra da vida que construí. o que exijo é apenas gratidão por fazerem parte do mundo onde cresço e aprendo – e aprendo com todos – nunca percebi porque trouxeram um carneiro para o zodíaco. talvez por ser herbívoro. talvez pelas suas marradas com aqueles chifres de refilão – não sei. mas para ser abril. é porque trouxe a liberdade dos recomeços. o confronto dos ideais. a busca pela completude – abril é o eterno retorno da vida que regressa do frio – sei agora que não poderia ter nascido num noutro qualquer mês – confesso que também não aceitaria. fugiria até ao dia que me acolheu – não é por maldade. é por ser o que sinto. e sempre que sinto sou frontal. honesto. às vezes bruto. às vezes visceral. mas é o que sou e sinto – nunca me ensinaram a esconder nada. nem o zodíaco. por isso. fico no que não sou – às vezes besta. às vezes vulcão. às vezes carrasco – mas como sou metamorfo. tudo me passa rapidamente – o que explode para lá. implode para cá – ficam as lembranças com os seus ensinamentos – e o rancor. quem me dera tê-lo – ensinaria a mente a não cair duas vezes no mesmo erro – gosto de mim. porque sempre que gosto eu avanço um espaço. e sempre que avanço o universo cresce. fico sem medo. e quando fico sem medo. sinto-me mais perto dos que trago por bem – as pessoas constroem-me. iluminam-me. e em cada uma uma vida que desconheço. e mais do que uma desculpa para o que não entendo. a certeza de que o erro compensa o caminho – eu sou hoje o caminho do amanhã – ser melhor é uma missão impossível de concretizar. mas o importante é capturar os espaços vazios – enfrentar o vazio é a grande missão terrena – o único que a morte teme – kant disse que o bem é a vontade pura – o gesto sem cálculo – a boa vontade como bem moral absoluto. o único bem incondicional – não depende das consequências. nem de desejos. nem de inclinações – agir por dever. por respeito à lei moral. é o que faz a ação ser boa. e quando a ação é boa. todos os erros merecem perdão – o pedido de desculpa só deve existir quando não agimos pelo bem. porque é a razão que compensa o erro –- e é por ela que estamos perdoados – no amor tem o seu grande calcanhar de aquiles – todo o amor é criação. o desejo só existe se houver obra. o que quase sempre quer dizer deusa – é quando surge uma vontade de se incendiar. e das cinzas renasce cada beijo ou abraço – gosto de ti porque em nós não há sombras – nada no amor é para amanhã. a palavra amo-te não espera – tudo é urgência – porque tudo nele arde – beijar – abraçar – contemplar – tocar – depois… fundir-se com a amada é um gesto único – tão único como ela – porque não há mais ninguém a não ser a amada – o carneiro é homem de uma só mulher – tudo nele é movimento – todo ele é o dia seguinte – e mesmo sem luz ou vento. segue o destino que o coração desenhou – tanto faz se vai para longe – o agora é a certeza absoluta – e se um dia acabar. tombará como fruto da árvore do amor – é o amor que o sustenta. todo ele é movido a paixão. a mel. a carinho. mas sempre com reconhecimento de que nada seria igual se não existisse – existir só faz sentido quando os olhos se tocam sem querer possuir. dar é a sua razão. sobretudo se não tiver medida – é no dar que ele existe – é no impossível que cresce a faísca – amor tem sempre que ser livre e genuíno -- onde o tempo só serve para acrescentar desejo –- e assim chego ao fim do que é ser um carneiro de abril – existo num estado de começar. agir antes de temer. e acreditar que em cada gesto um novo mundo pode florir – coragem sem medo. erro sem estrada. coração sem destino -- gaivota – morrer devagar para renascer depressa. tudo o que é importante chega no dia seguinte – nasci para incendiar o escuro – e chamar-lhe vida

 

15/11/2025

as gerações são assassinas das gerações anteriores

 





nota de autor

este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui alguém amou o nosso nome antes de desaparecer

 

nascemos. e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi. um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos – um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória. depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário. caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira. sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos. de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações. garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia. mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer – por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo. todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo. para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações – sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós – é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir. é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor -- da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro.  carregamo-lo há séculos – falarei dos meus heróis até que uma voz me chame


10/11/2025

o porquê das causas

 




 

nota de autor

escrevi este texto como quem volta a uma conversa interrompida. não para refazer o passado. mas para o entender. há memórias que nunca se apagam – ficam à espera de uma voz que as nomeie. “o porquê das causas” nasceu desse impulso: o de falar com o meu pai. mesmo depois de tantos anos de silêncio. é uma tentativa de reconciliar o tempo. de agradecer o que ficou dito e o que não foi possível dizer

 

 o que leva um pai a ter uma conversa com o filho sobre casamento? talvez a irreverência do filho. talvez o amor. ou o medo de o perder – talvez tudo junto numa única fala – escrevo-te. pai. porque a tua memória ainda vive em mim. e agora. que estou mais perto da idade sábia. começo a encontrar o desígnio terreno que me coube. preciso entender o porquê das causas. descobrir nas tuas razões. o caminho que me trouxe até hoje – já não falamos há vinte e sete anos. ouço dizer que é uma vida. para mim é silêncio – e o silêncio tem sempre um princípio. mas nunca saberemos quando acaba. porque dentro de mim guardo um nó de perguntas que não foram feitas – quando fico mais comigo. saco de uma daquelas falas que ficou por dizer e interrogo-te. mas como não me respondes. respondo eu por ti – é a forma de te manter ao pé de mim -- fazes-me falta -- e mesmo que eu vá envelhecendo. tu estás igual – é assim que te guardo. a mastigar. uma nódoa na gravata. e aquele jeito de andar a sorrir – como se a luz que trazias vestisse o corpo – uma daquelas noites em que fico a conversar contigo. lembro-me bem. ali na praça conde de agrolongo. o vento a cortar a fala. e tu. a certa altura. disseste: porque não te casas – tens uma miúda que me parece uma boa menina e é muito bonita – sim. era a maria joão – depois continuaste. precisas de acalmar. teres horas para te deitar. dedicar-te mais à fábrica. tens agora mais responsabilidades – pensa nisso – ouvi-te em silêncio – quando cheguei a casa deitei-me e comecei a digerir a conversa contigo – naquela noite foi um emaranhado de lençóis e pensamentos – confesso que nunca me passaria pela cabeça ter uma conversa sobre casamentos – durante dias as palavras dele ficaram presas em mim. como se procurassem sentido – e sim. tinhas razão – estava na hora de me acertar com as responsabilidades – precisava de deixar de emendar as noites com os dias. acalmar. e de voltar a colocar a família no centro do meu universo – era um miúdo – mas a família sempre me ancorou ao certo – sempre senti que era a seu lado o meu porto seguro – quanto ao casamento. tinhas toda a razão. aquela seria para sempre a mulher da minha vida. passaram quarenta e um anos. e ainda acredito que foi o meu pai que me deu aquele pequenino empurrão que faltava – tenho muitas saudades tuas – ficaram tantas coisas por dizer – a juventude é o nosso melhor tempo de vida. sobretudo para quem nada falta. que era o meu caso. mas trocaria tudo por mais uns anos a seu lado – eu ficaria mais adulto. saberia contar melhor o tempo. e teria mais tempo para te explicar o caminho que fiz – para ti seria igual – eras um ser de luz. e provavelmente ririas de todas as palermices que inventava

 


04/11/2025

sou apenas instante

 




nota de autor

“sou apenas instante” nasce da convicção de que a vida só é verdadeira quando se vive no agora — nesse espaço frágil e absoluto onde tudo acontece e tudo se perde. não há passado nem futuro que nos definam: apenas o instante. esse breve milagre em que existimos por completo. o texto é um espelho dessa procura — uma tentativa de dar corpo àquilo que não dura. mas que. por um segundo. é tudo

 

estou incrivelmente suspenso – neste instante não sei se me tenha perdido de mim ou achado o que me faltava – sinto-me como um miúdo que encontra uma moeda de dez réis no meio da terra – olha o brilho e interroga-se: o que fazer com o milagre? – sou neste instante a fúria dentro da ideia que me descobre – de tudo o que o corpo esqueceu mas a alma recorda – a razão é feita de memórias. e estas alimentam-se de símbolos – cada uma. uma alegoria do que fui – mastigo o tempo enquanto o silêncio pensa – eu carrego uma cruz. que bem podia ter outro nome. o peso seria o mesmo. com as mesmas dúvidas e interrogações. a mesma pressa de agarrar o futuro – mas é o futuro que me agarra a urgência – trazê-la para o hoje. e plantá-la na avenida principal da minha terra. porque é aqui que estou ligado ao ser – sou o instante. dentro da minha caixa de pandora – onde guardo o que ainda não se fez palavra – fecundada com todos os meus pensamentos que só têm valor por serem muitos – o que existe vive só dentro de mim. pequenos instantes que respiram sem nome -- silêncio que mutila -- à procura do seu criador. é como chuva no verão que não retém caminho – eu não passo de uma caixa de rapé. pó de pensamentos. que se cheira para aliviar o medo e obrigar a boca a falar para o papel – cresci suspenso em asas de anjos. gabriel ou outro nome qualquer – não interessa – são todos de barro – nelas a fé enganou-me -- por isso não descem do céu. sobem do meu medo – não importa quem é o dono dos limites. o céu nunca foi direção. só ruído – eu não tinha caminho. o presente era o já. e o já é como um rio em fúria que desaparece na cascata – com a queda fica ali. à espera de todas as gotas que lhe pertencem – nada chega ao mesmo tempo. decompomo-nos. tornamo-nos espera. como a estrela na noite – sou o fruto maduro desse tempo. que junta cada instante da memória. e pela manhã. abro as portas do cansaço. como quem entra num templo. onde só o pensamento é satânico – sei que nunca haverá fim para quem pensa. só a morte aprende a fechar os olhos – credos feitos em trouxas malucas. enquanto os santos me esperam na igreja do pensamento. e me absolvem de um qualquer pecado venial -- um pai nosso à minha gestação -- pecado que nunca foi meu. mas deles. que me ensinaram a temer – depois de morto ressuscito – e volto a duvidar – nunca me disseram que um homem morre milhares de vezes durante a vida. e ressuscita sem ter um único santo a seu lado – cresci em demasia e perdi-me nas ideias. criei as minhas. dei-lhes a forma de pirâmide. e sentei-me no cimo de mim – onde sou deus dos meus eus -- procurei-me em todo o lado. e em todo o lado me encontrei – e o rio a juntar cada gotícula de água para me dar outra forma – nada é certo na nossa vida. apenas o instante comanda. como um general sem tropas. o que foi ontem não se repete. nem o pensamento. somos feitos de dúvidas. e o que estava certo ontem. hoje não está. e o azul que cobria o céu. é agora um manto negro. que nos envolve em silêncio. invisíveis sem papel – apenas o instante traduz a emoção verdadeira – depois acrescentamos o tempo. essa invenção maldita feita de ponteiros. e tudo em nós é vazio e arrependimento. um buraco acabado num não sei – não sei como fui capaz de me aceitar no tempo sem espera – e a promessa de ser íntegro. suspensa num fio de luz – não posso desistir de mim. mesmo não me reconhecendo. eu sou o instante passado. uma luz a clarear o rio da cascata preso a margens que me guiam. e que nunca me compreendem – o amanhã não existe para quem não espera por mim – não comandamos o que nos move -- apenas seguimos -- tal como diana de éfeso. somos feitos de seios. alimentando todos os instantes em eus que dormem dentro do tempo. porque o amanhecer não traz o que sobra – e agora? posso reinventar-me com cada instante? tudo a que me dou é volátil. álcool destilado numa ideia de terra prometida – a vida continua. mesmo que não encontre abrigo. eu escrevo. mesmo que ninguém me compreenda. eu sou as palavras. porque elas habitam em mim. e alguma haverá de encontrar o lugar certo para fazer-se verdade – por isso não posso ser castigado pela mudança. afinal eu apenas nasci. o resto foi feito pelo instante – foi o futuro que me enganou. e se um dia fiz estrada. foi por ser fiel ao pensamento. e a boca… apenas serviu para chamar quem nunca escutou – às vezes deslizo por mim. e o que encontro é amor -- desgovernado -- procuro o certo em cada armadilha – um homem certo é muito mais esguio. passa pelo vento sem que a brasa o acenda – um homem certo volta sempre para os seus braços. não há nenhum lugar melhor do que aquele em que se chamou pelo nome – e o meu nome… é instante – tudo o que tenho está dentro da minha cabeça. é o único lugar onde eu sou tudo. porque cada instante é uma explosão de eus que se multiplicam. e por mais que queira ser outra coisa. mesmo que seja insignificante. a verdade não deixa – sou uma estrada de ideias – o mundo todo mora lá dentro. e desse mundo nasce o universo. que explode a cada instante. fabricado por cada faísca que me incendeia – em recantos que desconheço. mora a dor que grita. o sorriso que ilumina. a incerteza que me caracteriza. porque para cada pensamento. há uma porta aberta. uma meditação. e cada amigo ou inimigo. preso ao que sou. só nasce quando escrevo. ou quando sofro. porque ser ou não ser. só vai depender do mistério que desbravar – e os átomos são a dor em movimento. e o corpo a caminhar para fugir das certezas absolutas. e eu sem saber se me belisco. ou acredito. que desta vez a prova dos nove é resto zero – alimentar o instante é a razão da minha existência – frio. aconchego-me. quente. refresco-me. a vida é feita de frio e calor. e o corpo a migrar para os polos da procura – sou garimpeiro de mim -- e em nenhum lado. há um instante que me fixe para sempre – sou apenas uma nota de piano em busca da sua melodia – e o sangue a ferver por não ser corrente. não traz paz. e lá no fundo. onde já não me reconheço. grito para que me ouça – é quando procuro um basta. e o corpo dói para resistir. e o instante põe-me vazio. como se soubesse que se paro… morro – alimento-me de mim. e morro com tudo o que os olhos me dão – sou a ruína. uma descoberta sem carbono catorze. com as mãos a pedir menos medo. e o equilíbrio cada vez mais difícil. a vida como gelo fino. cristal de murano – abraço-me e pergunto: que gesto faria de mim outro ser – aquele que se dissolve nos elementos: terra – ar – fogo – água – o tempo é a minha palavra. é estrada que fala com o infinito. e qualquer que seja o desejo. é no espelho que me reconheço: o nariz do meu pai. os sapatos ao contrário. e as mãos a abraçar o impossível – neste instante o que peço é tempo. não tenho medo da morte. é do tempo que tremo – tenho medo dos comboios que passam a correr. da água que não chega ao mar. da palavra que não sai da boca. do silêncio que nunca responde – quero acreditar que a morte é apenas uma porta. um silêncio para além do instante – a mente cala. os braços vão tocar no invisível. o chão ruirá. e nas costas as asas de uma gaivota livre -- levanto-me do corpo -- desenho de mim sem mapa e sem fome do inesperado – a luz é a certeza. a sombra é descanso. e corpo finalmente. com o passaporte carimbado para a desistência. para o perdão. para a palavra sem valor – os sonhos sem cumprir. esses malditos. serão vento. santo graal. ou hóstia. papel. assinatura de sangue -- nunca serão dor -- para trás. a palavra escrita reinventa-me a cada instante dos outros. e mesmo sendo o que cada um quiser. eu estou noutro mundo. onde o que quero está sempre certo – cheiro a anjo. mesmo que os olhos me ignorem. este sou eu – perdido no inferno que criei no instante em que nasci    

 


27/10/2025

dentro da toyota hiace 18 anos – eu. tiago. e quim

 





esta é a última crónica de cinco passagens de ano que me ficaram em memória – à medida que envelhecemos. cresce em nós a necessidade de guardar em papel o que tivemos de melhor e de pior durante o nosso crescimento como pessoas – essa necessidade é. agora tenho a certeza. a presença da finitude no nosso acordar –deixamos de fazer projetos a longo prazo – agora. tudo é para o dia em que vivemos – escrever estas crónicas foi a forma que encontrei de doar aos meus descendentes o que eu e a maria joão vivemos: um mapa onde um dia se poderão rever. e assim perceber melhor o que nos liga. independentemente do tempo e das vivências pessoais

 

quando somos jovens. todas as festas acendem os dias por dentro. nós já somos alegres pela ausência de passado. e quando não há passado. não há pecado. por isso. nada bate uma overdose de gargalhadas. uma mão cheia de palermices. e uma constelação de sonhos na palma da mão. prontos a partir ao ritmo de um mundo que ainda nos era estranho – quando a leveza dos anos nos faz acreditar que já somos homens feitos. especiais não pelo que fizemos. mas pela certeza do que ainda vamos alcançar. a vida torna-se numa correria tonta. corremos em todas as direções e raramente chegamos a algum lugar -- foi o que me aconteceu -- eu era um miúdo cheio de sonhos – quem não os tem aos dezoito anos – sempre que olhava para as mãos. pensava: o que vós não podereis fazer? e a resposta era sempre a mesma. nada – deixei a luz do dia pela sombra da noite. frequentava o regime noturno – nas salas uns quantos como eu. deslumbrados da vida. sonhávamos que o dia morria no anoitecer. fechava os olhos e nada ficava para o dia seguinte – como estava enganado. como era tolo. mas também era um rapaz encantado. porque só os bons rapazes é que acreditam num mundo sem lamentos. com uma borracha capaz de apagar o que há de menos bom – eu despertava sem culpa. sem sombra. com a inocência dos que ainda não sabem o que perderam – depois. havia aqueles que na altura eram para mim velhos. e pensava: o que fazem aqui. com mais três quartos da vida gasta – para que precisam eles de conhecimento? hoje sei que um homem apenas pode morrer com o que sabe. nunca com o que possui – sempre amei os meus amigos. sempre os achei mais inteligentes. mais bonitos. mais íntegros. mais capazes de adivinhar o futuro – eu não sabia nada do futuro. para trás eu não existia – e quanto mais me apagava do rasto. mais o pouco de mim brilhava – e era tão pouco – os olhos castanhos a cair para a incerteza. o cabelo virado a norte. os braços presos aos bolsos. e as pernas a correr sem destino. só o coração batia. compassado. como se marchasse numa parada militar – hoje era dia de mexer no calendário. ano novo. estávamos em mil novecentos e oitenta. e eu com dezoito anos feitos – bem sei. numa urgência. mas era adulto – tinha tirado a carta de condução. que naquele tempo era quase um mestrado em tráfego rodoviário – e um carro capaz de chegar a moscovo -- nem que fosse ao empurrão -- pela noite. eu e mais dois amigos. o tiago e o quim. vagueámos pela cidade de braga numa toyota hiace de três lugares. e com o aproximar da meia noite. parámos o carro onde diariamente parávamos a vida – na praça do comércio – e fizemos a contagem decrescente para a entrada no ano novo – com a última badalada abrimos uma garrafa de espumante. e celebrámos o ano novo como se estivéssemos na times square. e a bola de cristal a cair devagar sobre nós – e por incrível que pareça. desceu mesmo dentro da hiace – jurámos amizade para sempre. e rimos de todos os disparates que inventámos para o futuro – seríamos ricos. famosos. e ilustres cidadãos do mundo – talvez até com direito a um mount rushmore. e as nossas faces talhadas na pedra – por baixo. a inscrição: “os melhores amigos na melhor passagem de ano de todo o universo” – aqui cozinharam-se os sonhos mais idiotas. mas também os mais belos do mundo

 

P.S. falei acerca desta passagem de ano com o meu amigo tiago. que me garantiu que foi a sua melhor passagem de sempre – confirma-se assim como a juventude pode criar as mais belas imagens. aquelas que acabam por ser as fundações de um entardecer sereno 


21/10/2025

passagem de ano com os meus pais – memórias de uma 4L

 




tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois… uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer: estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava – contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor. todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se – entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços. desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais – e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos. saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um instante que o tempo rouba sem pedir licença


17/10/2025

duas passagens no mesmo ano

 




nunca dei grande importância à passagem de ano. para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido. feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias. para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros. caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade. a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta – dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso. invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente



13/10/2025

a primeira passagem de ano sem o meu pai

 




o meu pai morreu no dia 17 de março de 1998. foi sepultado no dia 19. dia do pai – o dia dele e o meu – nesse dia percebi que um homem só se torna adulto depois do pai sucumbir à luz – a nossa vida a seu lado é como estar no topo de uma montanha. virados de frente para o ocaso – crescemos com o nascer do sol – não o vemos. mas sabemos que existe. está ali. sentimos a emissão da sua luz. e sempre que há luz há segurança. os medos recuam para o escuro. e a coragem para viver é apenas claridade – um dia levantamos a cabeça e vemos aquela esfera de luz sobre nós. admirámo-lo. e perguntamos: como é possível emitir luz? de onde veio esta presença luminosa? não temos ainda resposta. mas não importa. o importante é aquecer-nos. viver. iluminar com certezas o caminho que percorremos – vamos envelhecendo. mesmo sem dar por isso. e acabamos a perceber que o sol perdeu força. já não aquece como antes. nem ilumina o que escondemos. somos jovens e julgamo-nos senhores de toda a luz do universo. tornamo-nos mais exigentes com os outros. e menos connosco. vulgarizamos a virtude. pedimos à honra que se modere. ridicularizamo-la. e seguimos em frente como se a luz nascesse apenas de dentro de nós – egocentrismo. e todos os planetas orbitam à volta de nós – e continuámos a envelhecer. e cada dia é um ano de corrida. e sem que o relógio nos alerte. num ápice. quando estamos a olhar o horizonte. que agora é cada vez mais perto. às vezes é já ali. percebemos que a todo o momento o sol vai pôr-se. e o escuro permanecerá em nós sempre. olhámos em volta e tudo não passa de suposições – será que vou conseguir ser como ele? será que o meu feitio é igual ao dele? será que vou envelhecer como ele? e no meio das interrogações o sol desaparece. apenas uns raios de luz perdidos aceitam lutar com o escuro – mas o escuro vence. instala-se em nós para sempre. e nunca mais sentimos o sol nascer pelas costas. já não aquece. no seu lugar chega a saudade. já não ilumina. clareia o dia para sobrevivermos – o mundo tornou-se num lugar estranho e por mais anos que passem nunca compreendemos a sua perda – nasci e cresci com ele. como é possível perdê-lo? não é – é como aqueles que são amputados de uma perna. podem ter uma muleta. prótese. até correr ao pé coxinho. mas há noite. quando a tristeza desce. é a sua falta que persiste. às vezes até dói o que já não existe. como aos amputados. que sentem a dor da perna ausente – na passagem de ano de 1998. todos sabíamos que nunca seria igual às anteriores. à décima segunda badalada. sobrou em mim um beijo. e a certeza de que nunca mais nada seria igual – o natal nunca mais se repetirá  – podemos falar dele. recordá-lo. contar os seus feitos. até dizer-mos que temos muito dele. que o seu neto também tem muito de si. mas ao deitar a dor fantasma volta. e magoa – ele não está mais entre nós. e eu nunca serei como ele. nunca serei o seu exemplo – nunca serei como ele porque para o ser teria que fazer o certo no momento certo. e eu não fiz. eu não me construí a partir do todo. escolhi as partes que me davam jeito. e só mais tarde é que percebi que sou como um lego. e para me construir precisava das peças todas – não as tinha. ninguém consegue pôr uma laranjeira a dar laranjas no mês de agosto – naquele ano. enquanto esperava pela passagem de ano viajei para dentro do meu pai. instalei-me nele. e em silêncio. sentei-me na minha montanha de emoções e deixei que o sol me voltasse a aquecer – as saudades fizeram de mim um novo homem. e jurei que nunca mais deixaria de falar dele aos netos. dizer-lhes que os miúdos inteligentes não são aqueles que tiram as melhores notas. mas os que fazem o que está certo no momento certo. não daqui a uma hora. um mês. ou um ano. o que está certo só tem um momento: é aquele momento – depois. são apenas remendos. e o que está roto não volta a ser novo

 

07/10/2025

1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio








 

prólogo

este é um ciclo de cinco passagens de ano que vivi – tive muitas. estas são as que guardei na memória porque de alguma forma se tornaram mais marcantes – viajar no tempo é sempre especial. às vezes são viagens para sorrir. noutras o sorriso não chega. apesar disso é um retalho da vida mesmo que amargurado – ainda assim. porque amo a minha família. os meus filhos. escrever a minha vida é a única forma que encontrei para que eles saibam mais de mim. de nós – ainda não sei como escrever o amor que sinto por eles. mas sei quanto me deram para ser o homem que sou hoje – sem eles nada seria – com eles sei que um dia serei estrela. e quando olharem o céu. encontrarão sempre uma que me chame – e depois. a minha companheira. por mais que escreva. e escrevo muito. nenhuma palavra é forte. gentil. ou sábia bastante para a dignificar – o mais importante. e é isso que tento. é levar aos meus filhos a medida do amor e do sacrifício com que ela viveu as suas vidas – já são gratos. mas a idade ainda não lhes revela o seu inteiro valor – espero que o tempo. como me aconteceu. lhes traga a sabedoria para reconhecer que nada na nossa vida seria igual sem ela – por fim. e nunca é demais dizê-lo. o prazer de partilhar estas viagens com quem me segue nesta jornada diária de escrever – sempre que escrevo. imortalizo-me

 

1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio

passagem de ano 2016 – só nós os dois. eu e a maria joão. sozinhos. encrostados no sofá. à décima-segunda badalada engolimos doze bagos de sobrevivência. cada um mais amargo que o anterior – abrimos a garrafa de espumante. a rolha foi um tiro. atravessou-nos o medo e a dor – desejámos um ao outro um ano-novo feliz. cumprimos o protocolo das multidões – dentro de nós não havia nem uma centelha de luz. estávamos moribundos. o escuro moldou-nos – amarrámo-nos a chorar e fizemos prova de existência com as lágrimas – ficámos presos num tempo que já não contava tempo – se por um lado ouvíamos o lacrimar profundo. por outro os corpos apertavam-se num desespero nobre. honroso. porque dentro de nós não havia um único arrependimento. teríamos feito tudo igual. eu escolheria a mesma família. a mesma mulher. os mesmos filhos. a mesma vontade de fazer tudo certo – o sofrimento era mais forte que a solução – a aflição esticava cada segundo até virar horas – olhar para o céu não era recurso. só tinha as mãos para pedir perdão. no fundo de mim o breu absoluto. negro. a cheirar a morte. nem um único pirilampo a acender-me – se tivesse apenas um. talvez a sua luz exígua me fizesse acreditar que era um farol – morrer era fechar os olhos. eu fechava-os até desaparecer. deixava de me ver. escondia-me na parte mais distante de mim e do mundo – as feridas dilacerantes. o grito pintado nas searas. e o ventinho do inferno a perguntar-me se ainda queria continuar com a mutilação –  no meu interior já pouco espaço havia para a redenção. nem um único lugar que não estivesse em carne viva. nenhum vestígio de esperança. tinha ingerido todo o ácido da vida. corroía-me ao microssegundo. na minha cabeça o sussurro ecoava – perdoa-me – eu tinha obrigação de ser mais. tinha jurado que para o bem e para o mal eu estaria presente. mas as pernas fugiram. os braços caíram. a boca envergonhou-se. e os olhos cavaram escuro. e eu moribundo. sem que uma única palavra me salvasse. me desse um recomeço. me trouxesse de volta a dignidade – que mais precisa um homem na hora da morte senão dignidade e honra? nada mais – e a cabeça a estilhaçar-se. e o tormento a rasgar-me em pedaços que nunca mais se juntariam – na caverna que sou uma única vontade: desaparecer. mergulhar no tártaro corrosivo e tornar-me labareda para sempre. incendiar-me com o horror das palavras que me mordiam a mente. uma régua de fogo a deslizar em mim por culpas imerecidas – que deus me suportaria? nenhum – talvez o diabo – e nem esse eu carregava. eu era o próprio inferno. o dono das labaredas. o senhor das trevas – quando acabámos de chorar disse: este ano tudo vai ser diferente. vai correr tudo bem – sempre renasci das cinzas. e a dilaceração foi a única fonte de energia que me fez aguentar a sorte maldita – resta-me apenas o destino como companhia. por mais estradas que escolha. vive em mim a chaga aberta. e ela sabe sempre o momento certo para fazer de mim um sobrevivente. ela. os meus pais. a minha companheira. e os meus filhos – são o fogo que me consome. a cinza de onde renasço

 

música de rodrigo leão no poema minha cabeça estremece de herberto helder


03/10/2025

amor: o altar onde o sol nunca se despede



crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura. maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma. pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações. ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa. joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te. és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução. mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência. nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata – um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama. a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje

 

quarenta e quatro anos juntos. três filhos. três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós


29/09/2025

6. eu no boom – sei que vou voltar

 





e assim continuaram os dias. o boom é exatamente como as grandes metrópoles. noite e dia as pessoas revezam-se. umas dormem. outras seguram os astros sob o sol – quando escurece há nova romaria. chegam os festeiros com energia renovada. acendem estrelas e cometas. a lua incha de luz e a música corre pela imaginação de todos. os corações batem ao ritmo de cada vida. alegre ou melancólica – quando cansados os corpos estendem-se pela relva enquanto as almas continuam a saltar nas tendas: trance psicadélica. música eletrónica. até música dos anos sessenta. um espaço em forma de ovo. onde a única entrada é feita curvado. de gatas. entra-se e encontra-se um espaço com uma bola de cristal no teto – batida de discoteca. completamente insonorizada do exterior. e a surpresa é que quando te consegues endireitar dás contigo no meio de trinta ou quarenta pessoas num outro ritmo. outro mundo. que tu jamais esperavas encontrar ali – mas que em jovem conheceste e habitaste – o boom foi uma experiência transformadora. num espaço onde a liberdade  reúne as pessoas. toda a expressão é individual. e quando ligadas cria uma conexão humana incapaz de ser descrita. direi que se cria um núcleo de gente muito diversa. mas toda se sente una. livre. sem julgamentos – há pessoas de todo o mundo. e isso cria um movimento heterogéneo de culturas em partilha – música. arte. ligação à terra. à natureza. bem-estar. vive-se um estilo de vida minimalista. que bem aproveitado mostra que o mundo está inundado de coisas supérfluas. abrindo espaço à renovação interior. à limpeza da alma e do corpo. permitindo à mente descobrir novos eus. e expandir-se para lá do que a circunda – estar no boom significa também fazer parte de uma nova geração que se preocupa com os valores ecológicos. se entras no boom sem essa consciência. à saída já sentes que fazes parte dessa comunidade – sei que vou voltar. não por nostalgia. mas porque há lugares que se tornam espelho – e no boom vi o reflexo do que quero que continue a acontecer na minha vida: reconheci-me livre. inteiro e vivo – o boom não termina quando as luzes se apagam. fica em cada batimento. como já escrevi. senti e vivi. basta fechar os olhos. e nos meus silêncios. posso sempre preenchê-los com as suas batidas – estas batidas nunca se calam. e a água continua a ondular – por isso sei que vou voltar – há viagens que não se encerram. apenas recomeçam – voltar ao boom é voltar a uma aldeia sem fronteiras. o que faz de mim um homem também sem fronteiras. sem medo. sem guerras. e sem fome. onde cada rosto é diferente. mas todos se sentem parte da mesma tribo – eu encontrei esse mundo aberto – por isso sei que vou voltar