.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

13/09/2025

eu no festival boom – antes de leres. sente

 




nota introdutória

 

nos próximos dias vou partilhar convosco seis capítulos de um mesmo texto – eu no boom festival – não é apenas o relato de um evento de música – é a história de uma viagem interior – onde cada batida. cada encontro. cada silêncio. se transformaram numa das experiências mais marcantes da minha vida – escrevi para que se leia como quem ouve música – no ritmo das palavras. no compasso das pausas. no fluxo das emoções – espero que encontrem nestas páginas não só a descrição de um festival único. mas também ecos de liberdade. de pertença. e de descoberta – convido-vos a acompanhar esta aventura comigo – que a leitura vos seja tão intensa quanto foi a vivência – e que de algum modo vos inspire a procurar os vossos próprios caminhos de vibração e consciência 

 


1.   1. ler é sentir

não uso vírgulas – os pontos tomam-lhes o lugar e seguem o compasso do que escrevo – também não uso pontos finais – são os travessões que me servem de pausa – algumas mais longas outras mais breves. mas sempre abertas como o tempo – deixo ao leitor a liberdade do ritmo – é ele quem dita a cadência da leitura – como numa peça de música clássica onde as notas se soltam conforme a emoção de quem ouve – e de quem sente – escrevo para que me leiam como se ouvissem uma balada – se será triste ou luminosa não me diz respeito – a escolha é de quem lê – o meu papel é oferecer-lhe o caminho – um caminho feito de palavras que vibram. assim partiram de mim – não uso maiúsculas – essas guardo para os nobel e para os que precisam de gritar para serem ouvidos – prefiro o sussurro – o sussurro que entra pelos olhos e acorda a água que vive dentro de nós – escrevo para essa água. os 75% do nosso corpo. para que se mova e liberte serotonina. e devolva ao leitor aquilo que o corpo mais pede: bem-estar – também não separo os parágrafos. porque a vida não se separa em blocos – a vida é fluxo. contínuo – mesmo quando estamos parados ela avança. e o texto deve acompanhar esse fluxo – como um rio onde não se repete margem – apenas corrente – escrevo com essa corrente – ora mais prosa ora mais poesia – sem lhe dar nome – apenas som – a minha escrita nasce do mesmo lugar onde nasceu a música dos nossos ancestrais. quando ainda não havia letra nem palavra – só ritmo – só pancadas – só batimentos – uma música psicadélica-transe tribal – feita de pulsações constantes – de movimentos hipnóticos – de vibração que se ouve com o corpo antes da mente – é essa música que procuro recriar com as palavras – um transe silencioso que se lê – e que ecoa no interior de quem ousa escutá-lo – e porque tudo o que escrevo nasce do ritmo. todos os textos são acompanhados de áudio – é no som que se completa o que ofereço – por isso sugiro sempre que se ouça pelo menos uma criação – para que quem lê compreenda não só o que lê. mas o que sente – para que a nossa água ondule. vibre. e leve ao cérebro outra parte do invisível que vive connosco – para que entenda o gesto que lhe é dado. um gesto de escuta – um abraço invisível feito de palavras em vibração

 


06/09/2025

recomeço

 



ao fim de quarenta e um anos voltaremos a ser novamente dois. eu e maria joão – este sábado. o meu filho mais novo. joão antónio. vai desposar a minha nora sofia direito – será um dia perfeito para eles e para nós – nunca pensei. nem desejei que os filhos fossem pertença dos seus progenitores. sempre sonhei em filhos livres e independentes dos seus pais – a nossa tarefa essencial era dar-lhes condições para que. um dia. pudessem abandonar a casa sem medo do futuro – nunca. eu ou a mãe interferimos no seu percurso de vida – sempre o vimos como algo sagrado – o seu caminho foi e será sempre o que escolhem – a nossa interferência resumia-se apenas aos seus estudos – foi a única preocupação. terem um percurso de aprendizagem dedicado ao conhecimento. não lhes pedia estudo pela obrigação. mas conhecimento pela vida – porque o conhecimento já carrega dentro de si estudo. dedicação. e afirmação da sua personalidade – outro ponto em que nos focámos na sua educação. para além dos seus estudos. era prepará-los para também. um dia. serem pais – ser pai é a função que mais enobrece um homem – a felicidade não está em possuir. mas em libertar – assim foi com os meus três filhos. e também nós pusemos de parte a nossa vida para que nada lhes faltasse. vivemos a escolaridade deles com muito sacrifício. mas também com muito orgulho pelo que alcançaram – merecemos a nossa família. honrámo-la tanto quanto nos foi possível. e hoje. vivemos este último matrimónio com a sensação de dever cumprido – cedo percebi que o meu desígnio nesta minha passagem terrena era ser pai. adoro ser pai. e tenho a certeza de que será a minha única obra que permanecerá para além do túmulo – hoje já quase não os consigo recordá-los. primeiro como recém-nascidos. depois crianças e adolescentes – a memória controla-nos os desejos. e se o meu foi que eles nunca dependessem de nós. ela castigou-me. resumiu tudo a duas linhas. e o que guarda agora são os homens que criei: bons. honrados. trabalhadores. e para dois filhos. excelentes pais e maridos – assim se cumprirá com o joão antónio – durante este último ano fartei-me de brincar com o meu filho dizendo-lhe que já faltava pouco para sair de casa. ou para que finalmente voltássemos a ter sossego. paz – mas a verdade. é que é este casamento que mais me está a custar viver. não será fácil entrar em casa e saber que ninguém nos espera. que não haverá mais ninguém a fazer-nos companhia no descanso. ou mesmo poder chamar pelo seu nome e ouvir: dá-me cinco minutos – eu e a mãe estamos um pouco perdidos. agachados um no outro. sabendo agora que só nos teremos a nós os dois – bem sei que os filhos são para toda a vida. e os medos que aprendemos a silenciar. continuarão silenciados. mas presentes. estão encrostados na carne. saber que está tudo bem é e será sempre a nossa paz – por isso estamos felizes com a sua felicidade. pois apenas assim faz sentido. sem a sua felicidade. dos três filhos. a nossa vida não faria sentido – três irmãos que se adoram. respeitam as diferenças. amigos. cúmplices. com três noras que os completam. e tudo isto numa harmonia celestial. quando juntos a nossa casa parece um conto de fadas – construímos este lar com muito sacrifício. com muitas noites sem dormir. em terror e em lágrimas. que eu e a mãe segurámos um ao outro. mas se voltássemos atrás. se o mundo tivesse marcha-atrás. faríamos tudo na mesma. colocaríamos cada pedra no mesmo lugar – nós estaremos sempre aqui. no lugar onde os críamos. viveremos as suas alegrias. e pediremos ao universo que lhes dê tudo o que merecem – essa será a nossa maior recompensa – nós recomeçaremos de novo. viveremos agora um para outro. sabendo que as noites encontrarão silêncio mais cedo. e que as únicas falas serão as nossas – também não será difícil. os meus filhos sabem que amo a sua mãe. desde os seus quinze anos. eles não poderiam ter uma mãe mais bonita. que sempre foi a deusa encantada dos filhos e. agora. dos netos – não há forma de não gostarem da minha maria joão – mérito meu que soube escolher. talvez o meu maior feito – foi assim que começou a minha epopeia – o que peço ao meu filho é que ame a sua mulher até a exaustão. e que nos dias mais encobertos que nunca desista da sua companheira. que fale sem nunca se calar. que nunca durma uma única noite ofendido sem a perdoar. ou sem se perdoar. que adormeça de mão dada. e mesmo quando dormir. que lhe diga ao ouvido que é o amor da sua vida – o casamento é uma estrada. e só o casal a pode construir. colocar todos os dias uma pedra. pequena ou grande. mesmo sem sentir no momento que cresce. um dia. quando olhar para trás. não verá o princípio. mas saberá que é a sua estrada. e em cada pedra verá um ato de amor. de partilha. de comunhão. de companheirismo. e poderá também ele dizer. esta é a minha única obra. a que me honrará. a que permanecerá para além do túmulo – espero que o dia seja abençoado. sagrado. para sempre. nós somos homens de uma única mulher. assim foi com os vossos avós. assim foi com os vossos pais. e sei. que assim continuará – gostava muito que o avô e a avó estivessem presentes. quem sabe os desígnios do universo – de alguma forma estarão. levaremos dentro de nós o estandarte da família. que agora será apenas vosso

 

bênção

filho meu – hoje deixas a nossa casa para construir a tua – não partimos contigo mas caminhamos ao teu lado – o teu caminho é sagrado e só a ti e à tua companheira pertence – ser pai foi a minha maior obra – e agora a minha herança é ver-te marido – peço-te apenas que ames a tua mulher até à exaustão – que nunca te deites ofendido sem perdoar ou ser perdoado – que adormeças de mão dada – que mesmo dormindo lhe digas ao ouvido: és o amor da minha vida – o casamento é uma estrada – pedra a pedra se constrói – cada gesto pequeno é amor – cada partilha é comunhão – quando olhares para trás não verás o princípio – mas reconhecerás a vossa obra – e ela será eterna – somos homens de uma única mulher – assim foram os teus avós – assim fomos nós – assim serás tu – que o universo vos abençoe – hoje e sempre

 

29/08/2025

eu. os colecionadores. e os calendários de bolso

 




cerca de quarenta anos. era eu um jovem promissor no setor industrial que. no começo de cada ano novo. encomendava a empresas de publicidade pequenos brindes para oferecer aos clientes – eram coisas simples. esferográficas. lápis. agendas. calendários de parede. de secretária. e os de bolso. objetos que hoje despertam pouco interesse. tornaram-se obsoletos com o avanço das novas tecnologias. principalmente com o surgimento dos primeiros computadores. seguidos pelos telemóveis – mas havia um brinde muito procurado e amplamente distribuído: os pequenos calendários – encomendava-os com o logótipo da empresa. bem sei que hoje isso possa parecer ridículo. estamos habituados a consultar tudo no telemóvel. mas naquela época acreditem que ter um calendário de bolso era extremamente útil. diria indispensável. isso e uma “short list” com os contactos telefónicos mais importantes. apesar de sermos obrigados a decorar muitos números. nomeadamente os dos familiares e amigos mais próximos – guardávamos também datas de aniversário das pessoas mais chegadas. tudo transportado na nossa carteira de pele. onde cabiam cheques. bilhete de identidade. cartão de saúde. cartão de sócio do clube. e vários outros documentos essenciais – sim. sei. com as novas ferramentas de hoje parecemos pré-históricos. mas. não. para a época éramos já surpreendentemente desenvolvidos – nesses tempos. diferentes dos de hoje. havia alguns adultos estranhos. agora também existem. até talvez com mais maradas. mas é diferente. a sociedade está mais recetiva a novos padrões de vida – naquele tempo éramos quase todos iguais. com rituais e rotinas muito semelhantes. as noites eram sempre mais longas. apenas uma televisão nacional. dois cinemas. teatro de circo. a sala nobre da nossa cidade. cine-teatro são geraldo. e mais tarde surgiu o acil – diversões poucas. bilhares. matrecos e as primeiras máquinas de flippers – era um tempo contido – e estávamos a dar os primeiros passos em liberdade – estes indivíduos adultos. pais de família. que à primeira vista pareciam personagens normais. tinham um vício. colecionavam obsessivamente – tal como agora há viciados em jogos online. raspadinhas e redes sociais. na altura o colecionismo reduzia-se a uma caderneta de jogadores de futebol. coleção de chávenas de café. esferográficas. calendários de bolso. todos com as respetivas marcas impressas das empresas – assim. a cada novo ano. os colecionadores voltavam à porta a solicitar calendários e esferográficos. eram mesmo habituais. cheguei até a reconhecê-los – bem sei que isto pode parecer um pouco antiquado. para os mais novos será mesmo difícil perceber. mas era normal ter na nossa carteira um destes pequenos calendários. e uma mini-lista de contactos telefónicos – quem não tivesse mostrava que a sua vida não tinha nada de interessante para registar ou ninguém relevante com quem falar. e havia muita gente que não tinha telefone em casa. sem luz elétrica. sem saneamento básico. sem água canalizada. eram tempos difíceis – os pobres eram mesmo pobres. e os recursos analógicos pouco acessíveis ao comum trabalhador – a televisão a cores em portugal foi inaugurada a 7 de março de 1980. com a transmissão do festival da canção desse ano. e lembro-me perfeitamente de o meu pai chegar a casa com uma televisão a cores – foi uma noite em grande – as cores saltavam do ecrã como se a sala tivesse aberto uma janela para outro mundo – não saímos do pé da TV – a luz pintava-nos a pele e até o silêncio parecia ter outra cor – tínhamos agora a verdadeira caixa mágica em casa – e recordo-me bem: nesse dia. creio. que nenhum dos meus amigos próximos teve a mesma sorte. o dinheiro era raro e valioso – mas voltando aos brindes. passavam pela empresa uns quantos sujeitos. alguns bem maduros e chefes de família a pedirem calendários de bolso. dizendo apenas que eram colecionadores – eu achava aquilo inacreditável. e interrogava-me: o que leva homens feitos a andar de porta em porta em busca de calendários? nunca encontrei uma resposta clara para os compreender. via-os como adultos presos ao mundo do peter pan. ou. talvez. vítimas de um curto-circuito na massa encefálica – mas. agora. passados tantas décadas. envelhecido e depois de muito ter aprendido com o tempo. finalmente. compreendo o que os movia – arrogância da juventude é um mal que tende a passar com o envelhecimento – tal como eu escrevo crónicas quase todos os dias. poemas apenas para espairecer. esta arte. mesmo sendo rara. faz de mim um desses colecionadores dos calendários – guardo frases como quem guarda um calendário com um erro de impressão – raro e inútil para muitos – mas para mim um tesouro – de página em página mergulho nos dicionários. antigamente de papel. agora digitais. a suplicar por palavras para a minha coleção de crónicas – e assim capitulei. porque. tal como eles. também a minha coleção tem pouco valor. e mais uma vez. sendo cada vez mais parecido com esses adultos de quem eu troçava. sigo diariamente a implorar mais – mantenho a crença. que o importante não é o valor da coleção. mas o esforço que vamos repetindo todos os dias para que a nossa coleção fique mais completa – hoje. depois de várias décadas. talvez aí uns trinta. já não avalio o caminho alheio. e como diz mia couto. cada ser humano é uma raça. e eu acrescento. com o seu caminho. único. com a sua verdade. e sem que ninguém tenha o direito de a questionar – não gosto de envelhecer. nunca gostei. nem sei se alguém gosta. mas às vezes sinto-me feliz por ter envelhecido o suficiente para me reconhecer como um ser mais inteiro – cada um tem os seus sapatos – e o caminho que percorre pertence apenas a eles – tal como aqueles homens feitos a pedir calendários – hoje percebo que não pediam datas – pediam um pedaço de si mesmos para guardar no bolso



27/07/2025

amigo: o peso de o ser

 



1.     a urgência de nos bastarmos

às vezes dedicamo-nos em demasia aos amigos. deixem-me dizer isto em voz alta. bem sei que um amigo verdadeiro deve ter sempre o nosso tempo por inteiro. mas o problema. está na forma como os categorizamos. e alguns não merecem estar à nossa frente. não merecem que paremos de viver para sofrer-lhes a vida. nem merecem que lhes demos aquilo que tantas vezes nos falta a nós mesmos – a amizade. hoje. parece estar sempre em liquidação. todos gostam de estar bem com todos. e cada um cria os seus círculos de amizades: são amigos de cem personagens por causa de um clube. mais mil pelos matrecos. e porque hoje só existe quem se faz rodear. tem-se então mais dez mil. que são os que gostam das noites. e mais cem mil. os que querem ser palhaços. que servem para os dias mais tristes. para logo de seguida surgirem aqueles que apenas servem para os dias sem um grupo definido. impossíveis de contar – a minha interrogação é se devo continuar integrado nestes grupos. ou a permitir que continuem a considerar-me amigo. se não devo dizer basta. ser frontal e afirmar: eu sou esses todos e ainda mais uns quantos que. por olharem apenas para fora. ainda não se deram conta de que estou em todos os grupos. não poderei estar apenas num. sou feito de todos – sem essa mistura. os dias pesam. e os amigos. tornam-se cópias – um dia acordo. e digo. preciso de um tempo que seja só meu. inteiro. talvez o dia todo. sem barulho. apenas eu. num silêncio que. para além dos medos e interrogações. me traga tolerância e compreensão pelo que me é diferente – com tanto barulho por dentro e por fora. ninguém se encontra. nos dias mais complicados temos mesmo que ajudar a nascer o que pensamos. como um parto. e por vezes só com ferros conseguimos trazer à luz o que nos vai mais fundo. que é o mesmo que dizer o que sentimos. o que nos magoa – o que é gerado por nós. no que há de mais íntimo. tem que ser ouvido. respeitado. primeiro por nós. porque se não formos nós os primeiros. então ninguém mais ouvirá. depois por aqueles que consideramos nossos amigos. ou nos são chegados. um tipo assim de quase-amigos. estão na lista de aferição. em testes de afinidade e compatibilidade: avaliar a ética. a bondade. a tolerância. a capacidade de dar. quando casal a forma como se tratam. como se respeitam e protegem. como educam os seus filhos. o exemplo que transmitem. e depois. somar tudo. e colocar em letras gordas: aprovado – muitas vezes queremos mesmo ser amigo de determinada pessoa. esforçámo-nos. admitimos a evolução da relação. acreditamos que seremos exemplo. à nossa medida. que nos ouvirão. respeitarão. e não raras vezes tentamos nós adaptar-nos ao seu modo de ser. alongar a nossa tolerância. mas depois de todas as manobras para nos moldarmos. não adianta. é aquilo para eles. é a sua essência. está ali. são as suas fundações e. tal como diz clarice lispector: "não sei que viga me sustenta – se eu mudar de posição. desmorono." para nós. a sua sustentabilidade é o que é. e mais nada poderemos fazer a não ser partir. aceitá-los no seu mundo. seguir o nosso. sem culpa. sem rancor. e sorrir – este fim-de-semana ouvi uma expressão de um amigo que me deixou a rir durante muito tempo: podem beber whisky. mas arrotarão sempre a bagaço – é uma grande verdade. por isso. seguimos em trânsito. finalmente. chegou a hora de nos bastarmos

 

2.   às vezes. é só isso: presença

juntamos todos os amigos no mesmo saco – e depois. ingenuamente. esperamos que todos nasçam iguais. no mesmo dia. com o mesmo rosto – claro que não pode correr bem. hoje as amizades constroem-se com base num naipe enorme de interesses – uns querem-nos engraçados. porreiros. são os palhaços. que estejamos sempre prontos para as borgas. para as aventuras. vivem como se estivessem num filme de ação. sempre a mil. sempre com sede de mais – outros. analisam-nos pelo que temos para oferecer. são os interesseiros. a forma como podemos gerar sinergias positivas. principalmente se trouxer economia financeira. isso é fantástico. particularmente se também criar amizades tipo pontes: se conhecer aquele gajo é porreiro porque ele conhece o gajo que me interessa – depois temos os anónimos. querem-nos apenas em determinados contextos. quanto mais discreta for a nossa ligação. melhor para eles. acreditam que já estamos um pouco “démodé”. e não encaixamos com a linha moderna dos móveis de sua casa. ou dos seus amigos – portanto passas a ser importante consoante o local. de quem está presente. do estatuto financeiro. e da idade. não da que aparentas. mas a que tens no cartão único – depois temos o confidente. só nos procuram para desabafar. duas horas de telefone e estamos livres para meses. o que nem sempre é mau. o problema é que quando voltam já não gastam duas horas. às vezes. são dois dias – mas os amigos são mesmo para quando são precisos – também temos o conselheiro. procuram-nos para perguntar como estará o tempo na próxima semana. e mesmo sabendo que não tenho uma estação meteorológica. respondo-lhes que o mais certo é estar sol. mas pelo sim. e pelo não. o melhor é levarem guarda-chuva – por fim acabam a perguntar: se for ao casino. aposto no vermelho ou no preto? a minha resposta é sempre a mesma. se fores obrigado a ir a jogo aposta nas duas cores. se não. volta para casa – e termino dizendo-lhe: às vezes tento adivinhar o meu próprio futuro. mas falho sempre – e em grande quantidade temos o digital. não o conhecemos pessoalmente. mas está sempre presente. enchem-nos de likes e corações. sempre aos montes. sem pedir nada em troca. esporadicamente pede-nos unicamente que demonstremos que não somos um computador. e é quando lhe enviamos um like via expresso. e o assunto fica arrumado por uns tempos – no entanto. se os enumerasses. estes estariam no pódio. os mentalistas. são aqueles que. quando lhes digo que não gosto de hienas. concordam. sempre com o seu ar sério. não perdem uma palavra. ouvem tudo sem pestanejar. como se fossem os gurus do universo. mas. por trás. dizem com a certeza que nos conhecem melhor que nós: ai não gosto. gosta. e gosta muito. se pudesse. até as levava a passear na rua. pensa que nos leva na pandeireta. conhecemos bem a sua laia – acreditem. não há nada que possamos fazer. estão tão traumatizados pelas pessoas que lhe surgiram na vida. para eles. apenas a sua própria voz merece crédito – mas o que gosto mais é da amizade dos inteligentes. são aqueles que se acham crânios. dito melhor. génios. são os melhores em tudo. no seu emprego o patrão não subsistia se eles não existissem. se são patrões o mundo sem eles era miséria. acham-se o centro do universo. dominam a política nacional e internacional. embora vivam alheios às páginas que contam o mundo e aos ecrãs que lhe dão voz. são catedráticos das redes sociais. doutorados em quase tudo. só não sabem cozinhar ou coser meias – com estes sabichões não há nada mais a fazer. a solução é ficar em silêncio e abanar a cabeça. fingirmo-nos de burros. ou mortos. e esperar que se cansem – a questão é que envelhecemos. e na maior parte das vezes já não desejamos este tipo de diferenciação. precisamos das pessoas pelo seu todo. simplesmente as melhores. aquelas que sendo inteligentes. se resguardam na simplicidade. sendo ricas cultivam discrição. aquelas que mesmo podendo afastar-se. permanecem por perto. com afetos. com atenção. com cuidado pelos outros. aquelas que perguntam. e ficam para ouvir. não queremos pontes. nem grandes. nem pequenas. só queremos as pessoas como são. sem máscaras. sem adereços. só pedimos respeito. tempo para escutarem. porque o que nos falta nos outros. é só o bem que nos possam oferecer – não pretendemos saber se são ricas ou pobres. se são altas ou baixas. se são bonitas ou feias. pretendemos simplesmente que se expressem com sinceridade. e principalmente. que não desperdicem as suas palavras com pessoas que não lhes interessam – não precisamos de elogios. eu. por exemplo. nunca sei onde os pôr quando mos dão. e acabam quase sempre por pesar mais do que deviam. de tudo o que me possam dizer. o que mais me toca é isto:  és boa pessoa – ser boa pessoa é das poucas coisas leves que ainda vale muito. e mesmo que um dia nos caia o estado de graça. podemos sempre voltar a tê-lo. ser humano é também erro. não preciso que me digam que sou mágico com uma chave inglesa. ou que falo truques com o pensamento. ou sei lá que mais. coisas. inúmeras. a amizade. às vezes. é só isso: presença. estar ali. nada mais. ali – todos gostamos de ser valorizados. mas para fazer efeito. tem de ser na medida certa. senão é como nos darem umas calças uns números acima. caem-nos pernas abaixo – recuso ser avaliado por rótulos de importância. porque isso raramente exige verdadeiro sacrifício ao amigo. não me avaliem nem pela casa. nem pelo carro. bem sei que agora tenho um carro novo. mas é unicamente porque o último partiu o motor. se assim não fosse ainda continuava com o meu ferro-velho. e este. também irá envelhecer. e depois. como estarei eu? novamente esfarrapado? para alguns sei que sim. o sucesso é a ostentação – confesso-vos com humildade. eu tenho pouca coisa que se recomende nesse mundo de aparências. a única obra que considero um feito. a minha maior obra-prima. é a minha família. e ainda não está terminada. creio até que nunca estará. é ali que mora a amizade verdadeira. quando a construímos no seu seio com solidez. torna-se muito mais fácil levá-la aos outros

 

 

2.     quando os amigos calam

os amigos de hoje parecem a suiça. sempre neutros. nunca dão opiniões. nunca se posicionam. nunca questionam. o que eles querem mesmo é darem-se com todos. como se isso fosse possível. como se os valores essenciais da existência pudessem ser neutros. e depois vem aquela velha história: fez-lhe a ele. mas eu sou diferente. a mim não me faria – pois bem. eu já estou naquela fase das avaliações objetivas. e também já percebi que. “vemos nas costas dos outros as pancadas que devíamos ver nas nossas” – em tempos tive um amigo que me fez uma sacanice. foi de tal maneira grave que quase me atirou para a miséria. podia ter acabado completamente com a minha vida. a vida dos meus filhos teria mudado drasticamente. teriam saído das escolas privadas. possivelmente passariam por graves problemas financeiros. a minha casa teria implodido. eu com ela – resistimos porque as suas fundações tinham sido erguidas com lealdade e amor – mas o ser humano é surpresa. e quase sempre. infelizmente. para pior. e este… nem sei muito bem o que lhe chamar. este homem doente. se me tivesse feito a sacanice porque precisava de sustentar a sua família. ou o seu negócio estivesse a correr mal e precisasse de o salvar. ou qualquer outra coisa mais mortal. salvar a vida de alguém. ainda poderia tentar compreender. mas não. não foi nada disso. um tipo rico. que cresceu comigo. vizinho de infância. frequentava a sua casa sempre que havia celebrações. casamentos. batizados. aniversários. com um lugar de topo numa empresa camarária. a ganhar imensamente bem. casa na praia. barco. carros de alta gama. viagens sem fim. férias várias vezes ao ano. não lhe faltava nada. exceto algo que. para ele. era imensamente valioso: ter mais dinheiro que os seus amigos – mesmo tendo tudo. ainda não era suficiente rico para os acompanhar – aqui volto ao texto que escrevi recentemente. em que falei de invejosos com esta definição: “um invejoso vive em permanente desassossego. um ressentimento constante. e ao fim do dia descansa no inferno ao lado de satanás – se o amigo ou vizinho faz aviõezinhos de papel. é porque quer ser astronauta; se joga o euromilhões. é porque quer comprar o iate do abramovich e estacioná-lo na rotunda mais próxima; se assopra preservativos. é porque quer ser balonista; se abre os braços. é porque quer ser gaivota – um invejoso é uma alma extraviada. doente. vê nos outros o que realmente medra dentro de si – na vida de um invejoso só há ambição desmedida. doentia e perigosa – a cobiça medíocre de um invejoso nasce da sua vaidade”. in a inveja é um visa vencido”. então. para ele. a solução seria acabar com a minha atividade. obrigar-me a fechar portas. para que um dos seus parceiros de negócios pudesse comprá-lo por tuta e meia. e como era diretor de uma empresa com fundos públicos. adjudicar-lhe o trabalho e ter direito a milhões de subornos e comissões – não é fácil perder dez anos de uma vida que já não é nova. mas foi o que me aconteceu. zanguei-me. perdi-me na raiva e denunciei tudo ao ministério público. toda a trafulhice. e aqui continuo sentado. à espera que se faça justiça. mesmo acreditando que é aqui na nossa passagem terrena que tudo se paga – precisava mais do que justiça divina. precisava da justiça dos tribunais. mas o meu país é assim: quem rouba uma carteira vai logo preso. mas quem rouba o estado… espera sentado – o ódio cresceu e viveu dentro de mim durante muitos anos. partilhar este caso não me liberta a alma. custou-me imenso arrancá-lo de dentro de mim. adormeci muitas vezes com raiva. magoei-me até à exaustão. persegui-me quase até à morte. senti vontade de o agredir. de o crucificar em praça pública – confesso. nunca foi julgamento fácil. eu conhecia os filhos. a esposa. praticamente toda a sua família. mas uma coisa sei. os filhos não têm culpa de ter um pai assim. nenhum filho merece um pai sem escrúpulos. um bandido – com o tempo a passar fui percebendo que carregá-lo era demasiado pesado. eu não merecia. a minha família ainda menos. e por isso. aos poucos. fui desfazendo na máquina de cortar papel as resmas de raiva que lhe guardava. ainda não o tracei todo. mas já falta pouco. mais umas folhas. e tudo terminará – preciso da secretária limpa – a minha família. principalmente os netos. não podem crescer com o seu avô enleado em ódios. não é isso que nos une como família. é preciso libertar a mente para o amanhã. o corpo para o sol. todos os dias há um novo amanhecer. e um dia diferente à nossa espera. é obrigatório seguir em frente. e que o exemplo do perdão perdure. para os que de mim cresceram – mas o motivo por que vos entreguei este “amigo”. por que o escrevi para vós. é que hoje. o que mais me preocupa. não é o que ele fez. é o que os amigos em comum deixaram por fazer – e o que fizeram?

 

 

3.     quando a neutralidade nos trai

começo como terminei o último capítulo. o que mais me preocupa não é o que ele fez. é o que os amigos em comum deixaram por fazer – e o que fizeram? coisa nenhuma – ficaram calados. imóveis. nem uma pergunta. nem um gesto. e ele pôde continuar a andar por aí. como se nada tivesse acontecido. e obviamente com caminho livre para continuar a fazer o mesmo a outros – não houve censura. preocuparem-se comigo? nem pensar. como se a minha ruína não contasse para nada. nem foi importante saber o que teria acontecido se me tivesse destruído. já não digo a mim. mas à minha família. não me disseram coisa nenhuma. nem se preocuparam em saber se estava bem? nem como te estás a aguentar? fizemos do silêncio a nossa trincheira. foi com a família que segurámos tudo – à volta. uma cerca. para resistir. e resistimos heroicamente – o que cada vez me convenço mais. é que a maior parte dos meus amigos. não teriam o mesmo comportamento se um desgraçado roubasse um saco de cimento. os que são patrões não hesitariam em pô-lo na rua. e os que não são. aplicavam-lhe a xaria. apedrejavam-no em público – por isso. hoje. analiso ao detalhe cada novo amigo. e como escrevi há pouco tempo. não quero perder amigos. mas também já não me esforço por os ter. se tiverem de sair da minha vida. eu próprio lhes abro a porta. sem remorsos – não voltarei a ser amigo de alguém que me catalogue. isto é. sou amigo para ir à bola. mas já não sirvo para o cinema. é um bom amigo para jantar com a maria. mas com o manuel já não dá – que se danem esses pseudos amigos. todos. o meu castelo continua firme. e eu continuo a resistir. a estar todos os dias melhor. e continuando a citar a marisa. “sei que o melhor de mim está pra chegar” – os amigos que se tornarem neutros a partir de hoje. só o serão um dia. não terei mais paciência. nem espaço para desculpa. se alguém me prejudicar. for incorreto. não levar em conta quem sou e o modo como vivo. educado. tolerante. a tentar juntar-me. pedaço a pedaço. de forma mais inteira – estou a aproveitar cada dia para me reconciliar com a verdade que carrego. não tenho que ser igual a ninguém. mas também não permitirei mais que me magoem ou desvalorizem – aos amigos de hoje direi. quem quiser ficar. tem de escolher. não há mais dois lados para mim. não se conseguirão esconder no silêncio. nem na mentira. terão que escolher um lado. mesmo que seja o lado das coisas fáceis. instantâneas. ou o lado do bem que exige esforço. preocupação. camaradagem –  os meus amigos de hoje têm que escolher. ou me querem por inteiro. ou por partes já não estou disponível. não lhes posso dar o melhor de mim à sexta. e depois ao sábado já não dá. porque para mim. domingo vem sempre depois de sábado. não separo os dias como separo pessoas. se não sirvo para umas coisas. então não sirvo para nada. se não me defendem. então. não me servem. nem como presença. nem como ausência – se não me ouvem. então para que falar com eles. se só se lembram de mim para dizerem que não estão esquecidos. então esqueçam-me de vez. não me falem. ignorem-me. aceito a vossa decisão. e até darei valor à vossa coragem – porque é a coragem que nos guia para o certo. e a neutralidade apenas prolonga o erro no tempo

 

 

4.     o que ainda guardo em mim

eu sei que o tempo passou por mim. e a paciência ficou mais curta. não quero à minha volta quem só sabe medir a amizade com régua de interesse. sei que não posso ser amigo de toda a gente. chegou a altura das escolhas. cada um sabe o lugar que ocupa. não tenho casa na riviera francesa. castelo? nem no portugal dos pequeninos. não tenho nenhum navio porque onde vivo não há mar. muito menos foguetão. e se tivesse. iria para onde? o que levo comigo está cá dentro. e chega. chega bem. e cada vez tenho menos espaço para acolher as novas vivências que me vão surgindo. e também confesso que. às vezes. para guardar o novo. tenho de deixar ir memórias que me eram queridas – por isso peço: se sentirem que estão em mim sem merecer vão. libertem-me. libertem-se. só quero viver leve. sem sobras do que ficou para trás – há quem diga. como nietzsche. que a amizade é uma força que nos desafia. e é disso que preciso – e é exatamente o que espero dos amigos. que me ajudem a sarar o passado. e que estejam no meu futuro. limpo. sem peso. com verdade

 

12/07/2025

lições silenciosas de um pai e de um filho

 




tinha eu os meus 18 anos. mais coisa. menos coisa. quando conheci o meu amigo josé luís medeiros – na altura. começava a aproximar-se da irmã de um amigo… mas isso já é noutra história – esse amigo acabou por tornar-se meu cunhado. mas foi ele quem me abriu as portas daquela família – com o zé luís veio também a sua gente: irmãs. irmãos. e os pais – eram uma família de gente boa. respeitada. o pai. um verdadeiro cavalheiro. e a mãe. de uma simpatia desarmante – sempre me receberam muitíssimo bem. com calor humano. respeitando sempre a minha juventude. e a falta de saber – árvore boa não dá fruto mau. é isso mesmo. só que na altura eu acreditava que todas as árvores davam gente honrada e digna. o tempo trouxe as desilusões – o que vos quero contar ficou comigo para sempre. está na minha gaveta de ensinamentos. foi algo que me ajudou a ser o que sou hoje – o sr. medeiros. de vez em enquanto. convidava os filhos para tomar um café. eu como amigo também os acompanhava. e lá íamos no seu carro de seis lugares. um ford taunus 15M de cor vermelha. todos como se fôssemos para uma festa – nós éramos a festa. a juventude tem destas coisas. sem preocupações e sem medo do dia de amanhã – o problema. é que o sr. medeiros. nos últimos anos. talvez com a reforma. abusava um pouco da bebida. um homem quando perde o relógio biológico fica à deriva no tempo. às vezes é o trabalho que nos completa – fomos então todos para o bom jesus. ao comando do volante o sr. medeiros. seguia um pouco aos esses. por vezes demasiado mesmo. naquele tempo o julgamento popular era suave. o álcool era aceite. era uma droga boa. a polícia era pouca. e que eu me lembre. não havia bafômetro. o que pediam era a carta de condução e o livrete – quando estávamos a chegar ao santuário do bom jesus. já de noite. não distinguiu bem a estrada e entrou por um atalho em terra que quase nos fazia cair numa estrada mais abaixo – o filho em pânico gritou trava. cuidado. para. e o sr. medeiros. meteu os pés a tempo do desastre – e é aqui que começa verdadeiramente a história. quando se esperava um ralhete do seu filho. ou até que se sentisse envergonhado pelos seus amigos. não. tratou o pai com uma meiguice. com um carinho. não o reprendeu. nem lhe disse nada que o magoasse. pelo contrário. acalmou-o. à saída do carro ficou ao seu pé. e fomos então tomar o nosso café – os filhos não foram capazes de lhe dizer nada. trataram-no como se deve tratar um pai com fragilidades. afinal. com todos os seus defeitos. ou problemas. o álcool é muitas vezes uma doença. foi ele que lhes deu vida – foi talvez um dos gestos mais bonitos que a vida me ofereceu. e logo de um amigo – fiquei para sempre grato por esse dia. o zé luís ainda hoje é um homem de bem. e eu não acredito que homens assim apareçam por acaso. é preciso ter por detrás uma família também excelente. sem esse suporte ninguém envelhece a sorrir – gosto de escrever memórias. mas esta crónica não é só passado. é também presente. é gratificação por ter estado no lado certo no meu crescimento. estar bem rodeado é fundamental para envelhecer com esperança. e é também uma forma de mostrar aos meus filhos que o critério para se guardar os amigos não pode ser só festas e sorrisos – a nossa vida seguiu caminhos diferentes. mas o rasto da gente boa nunca se apagou e hoje. já envelhecido por fora. percebo que são estes bons exemplos que nos fazem crescer mais perto do bem. do céu se existir. ou do universo – também me faz lembrar o meu pai. era também ele um homem bom. o melhor que conheci na minha vida. e sei hoje que os meus filhos são também especiais. são homens bons. amáveis. carinhosos. preocupados sempre com os seus pais – apesar de todas as amarguras que a vida me trouxe. continuo a esperançar para o que vem amanhã


27/06/2025

não fiques parado

 




não fiques parado

se não souberes correr

caminha

se não souberes caminhar

rasteja

se não souberes rastejar

sonha

mas não pares

ainda que não saibas como

segue inteiro

grava-te no tempo

escreve-te no mundo

sonha

 

vai

vai sem partires

e volta sem chegares

 

não fiques parado

se o medo te sufocar

ou a timidez te silenciar

lembra-te:

um dia o corpo falecerá

o teu nome será pó

e os sonhos esquecidos

por isso vive

caminha. erra. sonha

o resto nasce de ti

 

vai

vai sem partires

e volta sem chegares

 

confronta-te por dentro

remexe-te

enraivece-te

enfrenta-te com coragem

e quem sabe

um dia

os medos cedem

as pernas aprendem a correr

os sonhos começam a voar

 

vai

vai sem partires

e volta sem chegares

 

e tu. humano nobre

alma livre

serás lembrado

não pelo erro

não pela glória

mas por viveres sem temor

 

vai

vai. mesmo sem partires

volta. mesmo sem chegares

vai

 


09/06/2025

um único dia certo

 



tal como simone de beauvoir. a impressão que tenho é de não ter envelhecido. mas ao contrário dela. eu ainda não me instalei na velhice. apenas envelheci. por fora. talvez um pouco. mas por dentro estou parado num dia. no dia em que ainda vivo – às vezes. quando estou mais ousado. viajo ao verão de um único dia quente da juventude. e paro. e também me interrogo: o que trouxe desse dia para o presente? e a resposta é: este único dia que me habita – pelo meio. nada. nada porque estou lembrando o agora. porque o agora é o único momento que reconheço como real. e nele sou jovem. por dentro. e no espelho apenas a verdade de tudo o que passei para chegar ao único dia em que me dou como vivo. este em que escrevo. e continuo jovem. porque sei que em mim reside a soma de todos os momentos. sou o resultado do que construí e ninguém viu. sou a família que formei. e também as minhas contradições. os amigos que conquistei. e os que perdi. o que aprendi. e o que deixei de aprender por não ter tido tempo. ou por leviandade – não se pode aprender muito num dia de vida. é tudo tão difícil. somar é apenas juntar. e o que sou com esta soma? sou este dia em que vivo. e também cultura. isto que vos escrevo é cultura. e é vasta. por ser feita inteiramente num dia – sou também um vazio que por ser isso mesmo. ainda nenhum dia conseguiu preencher. nada se vê do que guardei em mim. por isso é que os que ainda não fizeram as contas do tempo. acham que envelheci. mas não. eu apenas vivi o que somei para dentro de mim. eu nunca envelheci – ainda me movo com a leveza de outrora. só que hoje. tudo acontece num único dia. e se no passado sonhava dia e noite. agora sonho só quando tenho a certeza de que nenhum sonho se prolongará para amanhã – por fora sou apenas o que ninguém vê. tentam ler-me por sinais que não compreendem. e medem os meus dias a partir do dia em que vivo eu apenas sei que este momento que estou a viver é o único que dou como certo. vivo. tudo o resto. não sei. às vezes foi um sonho. outras um pesadelo. e a única prova de que vivi. é este instante que é meu – está quase noite. e vou ter que fechar os olhos. e por certo tenho as estrelas. mesmo que não as veja. estarão num lugar onde nunca fui. tal como o dia de amanhã. também nunca lá foi. mas se para as estrelas sorrio e aceno. para amanhã. aplaudo e agradeço. porque se lá chegar. será o único dia certo. aquele que me pertenceu por inteiro. porque o futuro. está na minha pele. nas rugas e nas cicatrizes. mas dentro eu sei que a qualquer instante o dia seguinte se perderá. e eu ficarei para sempre num único dia. onde vivi e deixei de acrescentar os que os outros me dão. recolher-me-ei entre sombras. e nesse descanso. serei para sempre inteiro em mim. e tudo o que alcancei ficará ali. naquele fim. e acredito. por ser um humano do universo. que será naquele microssegundo que fundirei a alma com a liberdade para sempre – e foi este mundo que construí. e nele deixei tudo o que era meu de verdade. almas minhas que como eu nunca envelhecerão. o que vem de nós não envelhece. nunca as libertei por mais que voassem para longe. ninguém consegue desligar-se de parte de si sem se magoar. ou perder-se em procuras desencontradas – se um dia me instalar na velhice. o que não creio aos meus olhos. em mim tudo será ausência do que sou. porque pela noite. as estrelas por lá continuarão. e eu. se não souber voar. sonharei. e cubro-me com a certeza do dia que vai chegar – sou apenas este dia. não tenho idade. tenho um único dia para me afirmar vivo. e um homem vivo respira. voa – e assim fiz-me gaivota. e o vento fez-se em mim poesia. tudo o resto perde-se no tempo. e todos. mesmo aqueles que ainda não somaram o tempo. vivem um único dia. aquele que estão a viver – tal como comecei esta crónica. termino também com um pensamento de simone beauvoir: a pessoa não é nada além do que faz de si mesma

 

ps – dedico esta crónica aos amigos que me aceitam tal e qual como sou – sei que às vezes não é fácil – mas é precisamente por isso que vos agradeço: os amigos são as peças do puzzle que. peça a peça. completam o que sou


28/05/2025

deambulações noturnas LXVIII




vicent van gogh


depressão lenta. tão lenta que já não é depressão. é apenas repressão violenta para que o sol não nasça


 

24/05/2025

 

 

1. código invisível

sei que cheguei ao dia de hoje. mas. na verdade. não sei se chegarei ao amanhã. a vida é uma tômbola. com prémios valiosos e ingratos. e fico a pensar: somos nós que escolhemos o prémio. ou será o prémio que nos escolhe? às vezes quero acreditar que o nosso destino já vem acertado com a hora de nascimento: nascemos. e na primeira golfada de ar recebemos um número em código de barras. como se. naquele instante. o percurso ficasse definido. e nos marcasse para sempre – a partir daquele momento já não podemos fazer mais nada. as virtudes e os defeitos estão inscritos no DNA do código – não há livre arbítrio. somos o que somos. e por mais que tentemos ser diferentes. não mais será possível – noutras ocasiões. acredito que somos nós a escolher o caminho. não todos. mas aqueles que já vêm associados aos nossos pais. afinal nós somos o somatório dos dois. por vezes somamos o melhor deles e acabamos por nos acrescentar. somos um pouco melhor do que a soma das partes. outras. somamos as partes piores e acabamos por apanhar uma ruela em vez de uma avenida. e os pais dizem: não sei a quem sai este miúdo – claro que para isso vai contribuir muito as opções que fazemos durante a vida. o meu lema é sempre este: faz o que está certo no momento certo. mais cedo ou mais tarde serás recompensado – é verdade que há quem faça asneiras a vida inteira e nada lhes aconteça. é o tal fator que não controlamos. às vezes é sorte. outras é um acaso cruel – ter o tempo a nosso favor nos momentos certos é muitas vezes a razão de estarmos vivos. vamos ao dentista por causa de uma cárie. e ele descobre um cancro ainda numa fase inicial. seis meses mais tarde estaríamos irremediavelmente mortos – a sorte é o pêndulo que faz com que o nosso coração bata certo mais tempo – mas muitas vezes interrogo-me. por que raio é que quem realmente merece viver parte sempre primeiro. enquanto os trastes ficam? nos dias em que estou no melhor de mim. como canta a marisa. acredito que é apenas por terem menos sorte. outras vezes. prefiro acreditar que essa gente menor consegue ludibriar o azar. e até passá-lo aos melhores. ladrões de sorte. que se alimentam da dos outros – lembro-me perfeitamente do meu tio joão. cinquenta anos. uma alma boa. inteligentíssimo. com uma paciência de santo para me aturar. tinha eu os meus vinte e poucos anos. revestido de sabedoria. vaidoso. arrogante. dono do mundo. e ele. sentado num sofá. sustentava toda a minha soberba com o seu shot de whisky. e gole a gole. lá me ia ouvindo no meio do meu ruído. aturando-me. como se já soubesse que a parvalhice da juventude passa com o tempo – e. de um dia para o outro. partiu. sem uma palavra. ficámos sem saber o que fazer. sem perguntas. sem respostas. só ficou o silêncio – gostamos sempre de dizer que deus o quis levar para junto de si. como se ele lhe desse atenção. era um homem livre. da esquerda marxista. e os afazeres de deus não eram coisa que o preocupasse – não sei se foi ter com ele. mas a família perdeu-o e eu senti a sua falta – depois. não haveria forma de escrever esta crónica sem o mencionar. o meu pai. um homem generoso. bondoso. digo. verdadeiramente bom. com uma capacidade única de empatia com quem quer que fosse. sempre com uma palavra gentil para oferecer. genuinamente preocupado com a sua família. com os seus colaboradores. honestíssimo. mesmo quando lhe custava caro. nunca se desviava do que era justo. presente para os mais vulneráveis. com uma ligação natural para compreender os mais novos. especialmente o seu filho. a seu lado não havia tristeza. ele era paz. era luz. morreu já com alguma idade. porque ninguém é novo aos setenta e três anos. mas para nós. já se despedira quatro anos antes. e nesses quatro anos. foi submetido ao impensável. agonizou até deixar de ser ele. e passou a ser apenas dor – foi muito difícil acompanhá-lo nesse período. confesso-vos. muitas vezes quis pôr fim àquela dor – não merecia – a doença foi tão cruel que nunca mais envelheci com elegância. envelheço com medo – mas há pouquíssimo dias uma pessoa que conheci recentemente. não posso dizer que era chegado. mas já tínhamos jantado juntos na companhia de amigos. com cinquenta anos. deitou-se e o coração pregou-lhe uma partida. parou – não fumava. não bebia. atleta. elegante. praticava desporto. tinha um comportamento exemplar. e por comportamento exemplar quero dizer: viver segundo as regras de uma vida saudável – só não sabia que precisava de ter mais cuidado com a própria sorte. talvez mais análises. mais exames. daquelas que os que prevaricam fazem sem que os justos saibam. e assim. talvez. ganhar mais tempo – ninguém merece morrer com cinquenta anos. principalmente quando um homem deixa uma filha menor. não há justiça. como se deixa uma mãe sozinha para acompanhar o crescimento de uma filha? quem lhe vai segurar a mão quando ela subir ao altar? quem a vai ver crescer? quem a vai proteger? nunca poderá ser o pai. nunca mais poderá dar um conselho. receber um último beijo. ou ouvir um 'gosto de ti'. não terá direito a uma despedida. nem mesmo a um 'até já' – neste mundo não basta fazer tudo certo. às vezes desperdiça-se o valor silencioso de cada dia. e os mais sensatos. por vezes. não têm tempo de perceber que algo não está certo

 

2. carolina e as ausências

eu não sou um homem crente. às vezes tento. mas não consigo. porque haveria deus de me dar atenção? porque haveria de eu ser diferente dos outros? se por cá ando é apenas por uma questão de sorte. ou pelo código de barras. ou talvez o meu lugar no nível seguinte ainda me esteja barrado. não ganhei os anéis douradas necessários. não sou o famoso ouriço azul. o sonic. ou não terminei a minha missão. algo que ainda falta cumprir. não sei. nem quero saber. não tenho a mala feita. ainda quero dar mais alguns abraços. cumprir a minha prova de vida com a minha família. com a minha nova neta carolina. nome de minha mãe. levar-lhe a minha voz. a pele. mostrar-lhe o sorriso. falar-lhe dos bisavós. de nós. do sentido da nossa família. mostrar-lhe o meu mundo. os lugares onde fui. e os que me faltaram ir por falta de tempo. trepar a uma amendoeira em flor e apontar-lhe as estrelas. uma é dela. gravei-a com um S grande. S de sorte. de saber. de sentido de responsabilidade. de sensibilidade. de sacrifício pelo que é certo. um S grande de sol. luz. porque todo o caminho tem de ser trilhado com luz – por isso não entendo porque leva deus as almas justas mais cedo. se deus nos ama. se nos perdoa tudo. se aos seus olhos nenhum vale mais do que outro. então qual será a razão para nos fazer sofrer tanto. porque deixa órfãos. filhos condenados a viver para sempre com a ausência inesperada dos seus protetores – crente ou não. o que peço é que a carolina cresça sempre resguardada e amparada pelos seus pais. que sejam o seu farol. iluminando-lhes o caminho com saber e ternura. e que assim a ajudem a tornar-se numa mulher adulta. feliz e realizada


 3. a flor que deixamos

e aqui cheguei. hoje. perdido em interrogações. cansado de procurar respostas em sítios onde só crescem dúvidas. mas há momentos. principalmente nos dias em que sou um bocadinho crente. quero acreditar que a nossa vida é um jogo. tipo o sonic. e que durante a vida vamos apanhando anéis. e quando atingimos uma certa quantidade. passamos para outro nível. é como se. ao nascer. entrássemos noutra etapa de existência. isto é. quando tivermos cumprido o percurso com distinção: ética firme. moral íntegra. fomos justos nas escolhas. generosos nos gestos. leais nas intenções. e amámos com verdade. com entrega. com tudo o que sabíamos dar. então. deus. ou o universo. ou no que acreditarmos. chama-nos para uma outra etapa – e partimos. ficamos saudade. fazemo-nos fotografia para sempre. calamos os gestos. os sorrisos. os abraços. e se tivermos vivido com inteireza. em certos momentos. voltamos à vida nas lágrimas – a recordação é a única lápide que não se apaga – depois. fico a pensar. mas há exceções. como a teresa de calcutá. mahatma gandhi ou chico xavier. e interrogo-me... por que razão permanecem essas pessoas mais tempo entre nós? não sei. ninguém sabe ao certo. mas quero acreditar que essas almas são… um tipo de pastores. que conduzem as ovelhas pelos prados. dão-lhe um propósito. protegem-nas dos perigos. e juntam-nas para que. unidas. se tornem mais fortes. que não se tresmalhem. que não se percam por caminhos erráticos – são estes guias de bondade na terra que nos conduzem. sem nos forçar ao lado certo das coisas – são eles que nos ajudam a encontrar a sorte mais facilmente. a corrigir caminhos. e muitas vezes. são também eles que nos ajudam a encontrar os companheiros certos para a nossa jornada de evolução na terra – sem as pessoas certas nunca seríamos quem somos. nunca deixaríamos saudades. ninguém sentiria a nossa falta na hora da despedida. ninguém choraria por nós – nós chegamos a este mundo como semente. e semente deixámos. o que levamos connosco é o sentimento profundo de que um dia fizemos uma flor sorrir. às vezes um jardim – nada mais

 


16/05/2025

a inveja é um visa vencido

 

 


um invejoso nasce amargurado. cresce frustrado. e envelhece depressivo. para mais fácil compreensão. como li há uns dias numa publicação do facebook. diria que é um transocial: nasceu com alma de rico num corpo de pobre – haverá mal pior do que estar encarcerado num corpo sem um cartão visa? para o invejoso esse castigo é a mãe de todos os castigos – resta-lhe a mentira. a desculpa repetida. o azar constante. o casamento trágico. e mais uns quantos dissabores. com amigos. vizinhos e colegas de trabalho – o mundo é uma treta. sobeja apenas energia para não fazer nada. para encontrar um duende que não resolva a vontade de prosperar. mas a fuga para o futuro num sofá – felizes daqueles que nascem pobres num corpo igualmente pobre. como a maior parte dos humanos – este pobre. frequentemente ignorado e incompreendido. tem apenas um cartão de débito. e o hábito de ver o saldo todos os dias. não vá um vírus roubar-lhe a dignidade para o mês – com a barba por fazer. pelos crescidos e ensarilhados. tal como os dias. pele desbotada. pálpebras caídas. cabelo esgadelhado e a pedir chuva. resiste com a sua cruz – sorriso apagado em meia dúzia de dentes soltos ao único céu que conhece. falta de colgate? pouco importa. já não encontra necessidade de sorrir. a vida é apenas temor – calças esfarrapadas. mas na moda. sapatos cambados a fazer pandã com uma camisola tingida num amarelo desmaiado. como a sua pele. e um número estampado à frente: 176-671. parecida com aquelas que usavam os irmãos metralha nos antigos almanaques da disney – afirmaria com toda a amplitude da palavra: um homem amarrotado. por dentro e por fora – desanimado com a existência miserável que o cartão de plástico lhe oferece. quase sempre sem saldo mesmo trabalhando sol a sol. por onde passa o alarme ecoa sempre. como uma sirene a anunciar perigo. e quem se cruza com o pobre amarrotado. rapidamente deita a mão aos haveres. não vá o desgraçado sofrer do mal da mãozinha leve – bem podia ser um foragido da cadeia de vale de judeus. e nada ficaria a dever a uma noite de halloween. tudo nele é terror e medo – mas não. é apenas um dos muitos homens que trabalham duro. para poderem dar apenas mais um pouco aos filhos do que os seus pais foram capazes de lhe dar – mais um escravo da industrialização. da economia global. e agora da IA – o seu maior defeito é não ser invejoso. se fosse. possivelmente. já teria um visa dourado na mão – nada como ser invejoso. esta espécie sobrevive à custa do desenrasque.  da aldrabice. e da chico-espertice – um invejoso vive em permanente desassossego. numa raiva constante. e ao fim do dia descansa no inferno ao lado de satanás – se o amigo ou vizinho faz aviõezinhos de papel. é porque quer ser astronauta; se joga o euromilhões. é porque quer comprar o iate do abramovich e estacioná-lo na rotunda mais próxima; se assopra preservativos. é porque quer ser balonista; se abre os braços. é porque quer ser gaivota – um invejoso é uma alma extraviada. doente. vê nos outros o que realmente medra dentro de si – na vida de um invejoso só há ambição desmedida. doentia e perigosa – a cobiça medíocre de um invejoso nasce da sua vaidade – temam os invejosos. mas não se deixem desumanizar. é preciso viver. acreditar na solução da raça humana. e nos entretantos. proteger os bons do mau-olhado. um dente de alho pendurado ao pescoço e rezas ao zé pelintra – porque enquanto houver quem resista. haverá sempre um futuro possível

 


11/05/2025

deambulações noturnas LXVI



pintura - google

 

o escritor é um comunicador silencioso. um hermafrodita grávido de si no tempo – escrevo para que não desista de ser feliz. mas mais do que ser feliz. escrevo para existir além do tempo – só as palavras o encontrarão no futuro 

 


30/04/2025

nome absoluto





sou. absoluto

numa circunferência concêntrica

sem saber o que tange o raio

sem saber...

o que vale a sorte

no destino do ventre:

nove meses para parir

um atalho para a morte

talvez apenas peso

uma arroba. ou coisa que o valha

aos ombros

o nome estendido até ao fim dos olhos

a balançar. a perguntar:

o que fica mais perto

o céu ou a vergonha?

 

entre o deserto e o nada

o que sobra em peso?

uma grama

ou uma alcateia de lobos?

 

faço contas

é da balança ou de mim

esta fome de sangrar?

 

e eu

a olhar-me

nas entranhas do absoluto

com as pernas entre

as duas margens de um rio

que nunca me levou ao infinito

 

a dor em fuga

a correr

as palavras. mortas

a escamar

e o ultimogénito sem pele

sem defesa

e o pensamento a cortar. lâmina

 

o fígado. num frasco

mergulhado em formol

a medrar de medo

os olhos por fora

sem saberem o que veem

sem saber a verdade:

sou formol

ou o meu destino estava no fígado?

 

e a escada. degraus contados

semelhanças ocultas

nós sentados no alguidar

absoluto

com os pés na terra

sem perceber

nada:

nem como tudo se fez

nem como me fiz

 

se em mim o vazio

ainda não é esquecimento

é raiva

espelhos estilhaçados

de cada rosto que não conheço

 

que será de mim

e de vós. por obrigação

se tudo for esquecido?

que culpa me condena?

que absoluto me sobra

sem o teu nome?

que absoluto teu ocupa o meu corpo?

 

se sou

cada traço do teu mundo

cavado em ti. e em mim

 

e agora:

quem é dono do cosmos

se tudo

o que era nosso

estava no alguidar?

e os pés. a caminhar

num absoluto luto

a dor da perda

a marcar o pino do sol

e a luz absoluta

a pedir uma virgem maria

um milagre...

também absoluto

 

para uma família absoluta

numa escolha ferida

manter a vida

é morder o ventre da morte

só morre

aquele que conta os dias

e esquece os nomes do alguidar

 

se me tocassem por dentro

ver-nos-iam gravados

nos ossos

saberiam: nasci em ti

por ti

mas morrerei por minha vontade

num cansaço absoluto

irremediavelmente ferido

nesta luta de ter um nome

onde o teu já não tem lugar

 

para que serve o meu

se vives em mim sem nome?

 

por que quer o padre

a minha assinatura

se o nada é só meu?

nenhum papel arde em branco

na cruz em que existo

 

respiro voz absoluta

carrego rugas absolutas:

iguais às tuas

às nossas

que um dia

talvez depois do dia seguinte

serão descobertas

 

não nasci pitbull

talvez poeta. sonhador

não apontei caminhos

os atalhos estavam numerados

por ti. para mim

 

procuro-te

nas sombras que restam de ti

nem que morra da procura absoluta

 

e se tiver que renunciar

ao que sou

que seja no vale dos judeus

morto

como um pulha

 

e se a honra se prostituir

que zé pelintra me proteja

pois eu te encontrarei

 

o teu nome será sempre meu:

com pecado ou sem ele

 

sou escorbuto das noites ímpias

escrevendo-te páginas absolutas

desesperadamente absolutas

 

ressuscito-te nas palavras

e nos livros que um dia escreverei

 

minguarei o meu amor

em cada minúscula

para que cresças

 

e se fores sombra de eufémia

não ligues

ela pariu um poema do pessoa

nunca esteve grávida

 

eu. pelo contrário

estou grávido de nós

do nosso nome

 

falo divino

barro do verbo

moldado a punho

 

escrevo-te

procuro o quanto te quero:

assim

como sempre foste

bom

absolutamente bom

 

que mais pode um nome ter?

tu és o meu socorro

é em ti que me aceito

e quando te represento

sou o sol

 

e sempre que há sol

há um retrato teu na parede

e séculos a arder

porque um dia louvaste

a vida

e se a vida não bastar

que nome nos salva do silêncio?

 


dedicado à família:

para quem me deu o nome

tu [pais]  

que me fizeste ser

mesmo na ausência