15/11/2025

as gerações são assassinas das gerações anteriores

 





nota de autor

este texto é um espelho gasto. onde o reflexo não procura beleza mas vestígios – escrevo como quem tenta perceber onde começa o meu e acaba o dos meus pais – escrevo para não perder o nome – para que o silêncio deles continue a respirar em mim – as gerações são assassinas das gerações anteriores – mas eu quero ser apenas o eco do que ainda vive. não o carrasco – cada palavra que deixo é um fragmento do que fui – não escrevo por vaidade. escrevo para lembrar. para dar forma ao que o tempo desfaz – e se um dia o esquecimento vier. que ao menos encontre esta nota. e saiba que aqui alguém amou o nosso nome antes de desaparecer

 

nascemos. e os nossos pais são a glória do universo dentro de nós – crescemos com eles. e deles trazemos as ferramentas para construir a nossa própria vida: um bisturi. um martelo. e um nível – não precisamos de mais nada. apenas as mãos se transformarão. cada ferramenta a fronteira entre o que herdámos e o que criamos – um dia olhamos o espelho e perguntamos: sou mais do pai ou da mãe – não interessa. sou o que ficou na peneira do barro com que me moldei – às vezes um pires raso. sem valor. escarrador de memórias e vaidades – outras um jarro para flores da vista alegre. onde deposito o meu próprio jardim – duas rosas. porque vida é espinhosa. um girassol. porque a vida é luz. e uma urze que me vergasta sempre que me envergonho de não ter crescido mais – é quando pego no bisturi e delicadamente. como cirurgião. retalho-me em pedaços de silêncio e memória. depois olho novamente o espelho e pergunto: sou mais parecido com a mãe ou o pai – crescemos à procura da verdadeira identidade. nada é nosso. só o corpo de empréstimo. só o gesto que se gasta. tudo o resto em nós cheira a fim. a desaparecimento. a esquecimento – quantos eus foram precisos para esta versão de mim? corremos para o espelho novamente. olhamos. e de dentro uma raiva destemida. sem medo. como se thor em nós erguesse o martelo a estilhaçar o que vemos – e no chão. o desespero – as concordâncias não se fazem de raiva – a vida é uma selva. não fora de nós. dentro de nós. ou dos eus. onde o certo é quase sempre incompleto. e o incerto teimoso – tens que saber – precisas de saber mais de ti – e as mãos -- que moldam e desfazem -- de quem são? a minha mãe pinta as unhas. e nem pinga de verniz verte fora do frasco – eu não consigo ter nada dentro do frasco. talvez vento norte. ou a síndrome de ménière. talvez tudo junto – arte descuidada – talvez – o meu pai é um gentleman. não usa bengala e muito menos cartola. mas anda hirto. com os olhos postos em quem passa. e dobra-se em vénias para cumprimentar o inesperado – eu pelo contrário. caminho curvado. e nunca aprendi para que servem as vénias – a última vénia foi na igreja. mas cristo já tinha fugido. no altar. uma coroa de espinhos com o meu nome – e pergunto-me: ando por aqui pelos meus antepassados? ou finjo-me no que sou para agradar o passado? não sei – será bom saber a verdade? a dos meus pais talvez. afinal sou o reflexo moldado. os olhos do meu pai. o génio da minha mãe. e pronto. o molde que ninguém vê. apenas eu. por caber dentro do espelho – por isso. e porque me quero dentro dos dois. uso o nível. e a bolha de ar sempre aos saltos. umas vezes o andar do pai. outras a voz da mãe – e à noite. quando me deito. e os fantasmas são todos meus. digo eu que já os batizei. ponho o nível sobre o peito. acerto a bolha ao centro como quem afina a respiração. o paquímetro a comandar com mestria cada milímetro – é quando chamo pelos meus fantasmas – o velho honrado na mesinha de cabeceira. sentado no abajur. com os pés numa lâmpada de quarenta velas. coça a cabeça como quem coça o mundo. e pergunta-me para que serve um nível – a honra está na fusão. no amor com que fazemos história. cada filho é um universo de séculos. de tempo que não se consegue contar. porque ninguém sabe quem deu corda ao relógio – a seguir ao silêncio chamo o palhaço. ri-se por tudo e por nada – se estou calado. ri-se – se falo ri-se – se durmo desaparece – não percebe que a vida é feita mais de silêncios do que das falas – o que penso é o que sou. e tudo o que penso é o que me faz erguer. às vezes império. outras mendigo. e geralmente. nada me faz rir. porque sou sério demais com tudo que trago dos meus pais. porque eles foram a única verdade em que acredito. e mesmo calado. reconhecia que era ali a fonte do amor. e um homem sem amor é foguetão perdido para marte – o interrogação – fantasma que. por se ter perdido dentro de si. nunca sabe quem o alimenta. e todas as noites pergunta: é hoje que vamos acabar com o medo? e eu. preso ao que sou. porque foi assim que os meus pais me teceram. enrolo-me num novelo de enredos. e entre travessões e exclamações. garanto-lhe que viver será sempre um mistério – onde pensar é sangrar – fixo o instante. porque é nele que existo. tal como as estrelas no céu – vejo-as. mas não lhes toco – toda a minha noite é uma tela. o que pinto é o dia. pois é nele que existo. de noite sou espaço. buraco negro – ventre-pulmão onde a respiração é desabafo do que engoli a viver – interrogações no pincel. destreza para sobreviver – por perto. o fantasma. filho do mundo. ouve-me – o silêncio também. porque todo eu sou esse nada onde respira a boca muda – como vestir o nome -- se dele sou feito -- e do tanto que me deu. nunca me levou pela margem do mundo. todo eu sou longe. tudo em mim está onde não sei – se soubesse o valor da água parada tinha nascido peixe. e se o vento me pudesse levar. eu ia. mesmo sem saber o que ainda em mim vale – mesmo vivendo num aquário – vivo na distância do que sou e do que deveria ser – nascer é um encargo. ser filho uma tarefa interminável. uma viagem sem destino. porque tudo o que acontece é comparação – mas -- ser filho é gostar de mim. porque gosto de onde venho --gostar é a palavra para mesmo assim amar o vazio – eu não posso ser assassino de quem me deu forma. mesmo que em segredo eu ame mais a placenta do que as pernas que me carreguem – amanhã. serei apenas lembrança. e outra geração matar-me-á ao esquecimento. e todos os silêncios que fui nunca mais serão terra. e o longe nunca será perto. porque a distância das palavras será silenciada por outro nascer – por isso gosto de mim. porque enquanto eu gostar de mim. o espaço dos nomes nunca será esquecido – obrigação mais vazia? não. eu sou passado. morro no presente. já que do futuro não tenho medo – sou apenas um espaço no tempo. todos somos um espaço no tempo – se fosse encontrado. talvez pedra. ou uma estrada sem nome. coisa nenhuma que tivesse origem – quando o sol amainar. a partida será silêncio. e o beijo que carrego -- como guitarra no tempo -- soará só para o vazio. e o que importa isso a quem já é lembrança? por isso escrevo. para que o gesto da criação. num dia de amor ao acaso. com o perfume de quem ama. tenha gerado o meu nome – e é esse nome que não quero perder – deixo o nome aos filhos. e será deles a obrigação de não esquecerem as outras gerações – sobretudo estas. do mundo onde tudo é captado e guardado. eu só não quero ser o assassino dos meus pais. nem os meus filhos os assassinos de mim e dos avós – é preciso guardar o que fomos. pois nós somos esse fomos – acredito que as gerações só se consolidam ao fim de cinco ou seis linhagens – considero o renascer da nossa com os meus pais. depois de um início que não traçamos – não tivemos palavra. nem foto. nem diário para consultar o que cada um mereceu. nem castigo guardado para o futuro – sou silêncio partido. mesmo que me esconda em risos cansados – sou eu o mestre do passado. sou eu que tenho que fazer o que não foi feito – sou eu que tenho que escrever os feitos. que quase sempre são mais rápidos do que as vozes – mas principalmente o que nos fez sofrer – as dores. os ossos quebrados. o coração agitado. o amor guardado da terra prometida e nunca alcançada – nós somos crescimento. fizemos do amor um fado. e dos abraços. a certeza: todos viemos da mesma placenta – guardiões do sacrifício. fizemos estrada para o futuro. somos a ponte entre átomos – este é o meu amor aos meus pais. sou agora servo deles. e se um dia a porta se abrir. é por eles que os meus passos hão de procurar – se o merecer – e só então. porque ser filho. e pai. é fardo de luz que dá sentido à existência – não falarei das vossas obras. nem dos ganhos. nem das ilhas onde habitais. falarei do amor -- da comunhão do nome -- porque em boa verdade. tudo o que somos é apenas um nome. e mesmo que não saibamos quem lhe deu o primeiro sopro.  carregamo-lo há séculos – falarei dos meus heróis até que uma voz me chame


10/11/2025

o porquê das causas

 




 

nota de autor

escrevi este texto como quem volta a uma conversa interrompida. não para refazer o passado. mas para o entender. há memórias que nunca se apagam – ficam à espera de uma voz que as nomeie. “o porquê das causas” nasceu desse impulso: o de falar com o meu pai. mesmo depois de tantos anos de silêncio. é uma tentativa de reconciliar o tempo. de agradecer o que ficou dito e o que não foi possível dizer

 

 o que leva um pai a ter uma conversa com o filho sobre casamento? talvez a irreverência do filho. talvez o amor. ou o medo de o perder – talvez tudo junto numa única fala – escrevo-te. pai. porque a tua memória ainda vive em mim. e agora. que estou mais perto da idade sábia. começo a encontrar o desígnio terreno que me coube. preciso entender o porquê das causas. descobrir nas tuas razões. o caminho que me trouxe até hoje – já não falamos há vinte e sete anos. ouço dizer que é uma vida. para mim é silêncio – e o silêncio tem sempre um princípio. mas nunca saberemos quando acaba. porque dentro de mim guardo um nó de perguntas que não foram feitas – quando fico mais comigo. saco de uma daquelas falas que ficou por dizer e interrogo-te. mas como não me respondes. respondo eu por ti – é a forma de te manter ao pé de mim -- fazes-me falta -- e mesmo que eu vá envelhecendo. tu estás igual – é assim que te guardo. a mastigar. uma nódoa na gravata. e aquele jeito de andar a sorrir – como se a luz que trazias vestisse o corpo – uma daquelas noites em que fico a conversar contigo. lembro-me bem. ali na praça conde de agrolongo. o vento a cortar a fala. e tu. a certa altura. disseste: porque não te casas – tens uma miúda que me parece uma boa menina e é muito bonita – sim. era a maria joão – depois continuaste. precisas de acalmar. teres horas para te deitar. dedicar-te mais à fábrica. tens agora mais responsabilidades – pensa nisso – ouvi-te em silêncio – quando cheguei a casa deitei-me e comecei a digerir a conversa contigo – naquela noite foi um emaranhado de lençóis e pensamentos – confesso que nunca me passaria pela cabeça ter uma conversa sobre casamentos – durante dias as palavras dele ficaram presas em mim. como se procurassem sentido – e sim. tinhas razão – estava na hora de me acertar com as responsabilidades – precisava de deixar de emendar as noites com os dias. acalmar. e de voltar a colocar a família no centro do meu universo – era um miúdo – mas a família sempre me ancorou ao certo – sempre senti que era a seu lado o meu porto seguro – quanto ao casamento. tinhas toda a razão. aquela seria para sempre a mulher da minha vida. passaram quarenta e um anos. e ainda acredito que foi o meu pai que me deu aquele pequenino empurrão que faltava – tenho muitas saudades tuas – ficaram tantas coisas por dizer – a juventude é o nosso melhor tempo de vida. sobretudo para quem nada falta. que era o meu caso. mas trocaria tudo por mais uns anos a seu lado – eu ficaria mais adulto. saberia contar melhor o tempo. e teria mais tempo para te explicar o caminho que fiz – para ti seria igual – eras um ser de luz. e provavelmente ririas de todas as palermices que inventava

 


04/11/2025

sou apenas instante

 




nota de autor

“sou apenas instante” nasce da convicção de que a vida só é verdadeira quando se vive no agora — nesse espaço frágil e absoluto onde tudo acontece e tudo se perde. não há passado nem futuro que nos definam: apenas o instante. esse breve milagre em que existimos por completo. o texto é um espelho dessa procura — uma tentativa de dar corpo àquilo que não dura. mas que. por um segundo. é tudo

 

estou incrivelmente suspenso – neste instante não sei se me tenha perdido de mim ou achado o que me faltava – sinto-me como um miúdo que encontra uma moeda de dez réis no meio da terra – olha o brilho e interroga-se: o que fazer com o milagre? – sou neste instante a fúria dentro da ideia que me descobre – de tudo o que o corpo esqueceu mas a alma recorda – a razão é feita de memórias. e estas alimentam-se de símbolos – cada uma. uma alegoria do que fui – mastigo o tempo enquanto o silêncio pensa – eu carrego uma cruz. que bem podia ter outro nome. o peso seria o mesmo. com as mesmas dúvidas e interrogações. a mesma pressa de agarrar o futuro – mas é o futuro que me agarra a urgência – trazê-la para o hoje. e plantá-la na avenida principal da minha terra. porque é aqui que estou ligado ao ser – sou o instante. dentro da minha caixa de pandora – onde guardo o que ainda não se fez palavra – fecundada com todos os meus pensamentos que só têm valor por serem muitos – o que existe vive só dentro de mim. pequenos instantes que respiram sem nome -- silêncio que mutila -- à procura do seu criador. é como chuva no verão que não retém caminho – eu não passo de uma caixa de rapé. pó de pensamentos. que se cheira para aliviar o medo e obrigar a boca a falar para o papel – cresci suspenso em asas de anjos. gabriel ou outro nome qualquer – não interessa – são todos de barro – nelas a fé enganou-me -- por isso não descem do céu. sobem do meu medo – não importa quem é o dono dos limites. o céu nunca foi direção. só ruído – eu não tinha caminho. o presente era o já. e o já é como um rio em fúria que desaparece na cascata – com a queda fica ali. à espera de todas as gotas que lhe pertencem – nada chega ao mesmo tempo. decompomo-nos. tornamo-nos espera. como a estrela na noite – sou o fruto maduro desse tempo. que junta cada instante da memória. e pela manhã. abro as portas do cansaço. como quem entra num templo. onde só o pensamento é satânico – sei que nunca haverá fim para quem pensa. só a morte aprende a fechar os olhos – credos feitos em trouxas malucas. enquanto os santos me esperam na igreja do pensamento. e me absolvem de um qualquer pecado venial -- um pai nosso à minha gestação -- pecado que nunca foi meu. mas deles. que me ensinaram a temer – depois de morto ressuscito – e volto a duvidar – nunca me disseram que um homem morre milhares de vezes durante a vida. e ressuscita sem ter um único santo a seu lado – cresci em demasia e perdi-me nas ideias. criei as minhas. dei-lhes a forma de pirâmide. e sentei-me no cimo de mim – onde sou deus dos meus eus -- procurei-me em todo o lado. e em todo o lado me encontrei – e o rio a juntar cada gotícula de água para me dar outra forma – nada é certo na nossa vida. apenas o instante comanda. como um general sem tropas. o que foi ontem não se repete. nem o pensamento. somos feitos de dúvidas. e o que estava certo ontem. hoje não está. e o azul que cobria o céu. é agora um manto negro. que nos envolve em silêncio. invisíveis sem papel – apenas o instante traduz a emoção verdadeira – depois acrescentamos o tempo. essa invenção maldita feita de ponteiros. e tudo em nós é vazio e arrependimento. um buraco acabado num não sei – não sei como fui capaz de me aceitar no tempo sem espera – e a promessa de ser íntegro. suspensa num fio de luz – não posso desistir de mim. mesmo não me reconhecendo. eu sou o instante passado. uma luz a clarear o rio da cascata preso a margens que me guiam. e que nunca me compreendem – o amanhã não existe para quem não espera por mim – não comandamos o que nos move -- apenas seguimos -- tal como diana de éfeso. somos feitos de seios. alimentando todos os instantes em eus que dormem dentro do tempo. porque o amanhecer não traz o que sobra – e agora? posso reinventar-me com cada instante? tudo a que me dou é volátil. álcool destilado numa ideia de terra prometida – a vida continua. mesmo que não encontre abrigo. eu escrevo. mesmo que ninguém me compreenda. eu sou as palavras. porque elas habitam em mim. e alguma haverá de encontrar o lugar certo para fazer-se verdade – por isso não posso ser castigado pela mudança. afinal eu apenas nasci. o resto foi feito pelo instante – foi o futuro que me enganou. e se um dia fiz estrada. foi por ser fiel ao pensamento. e a boca… apenas serviu para chamar quem nunca escutou – às vezes deslizo por mim. e o que encontro é amor -- desgovernado -- procuro o certo em cada armadilha – um homem certo é muito mais esguio. passa pelo vento sem que a brasa o acenda – um homem certo volta sempre para os seus braços. não há nenhum lugar melhor do que aquele em que se chamou pelo nome – e o meu nome… é instante – tudo o que tenho está dentro da minha cabeça. é o único lugar onde eu sou tudo. porque cada instante é uma explosão de eus que se multiplicam. e por mais que queira ser outra coisa. mesmo que seja insignificante. a verdade não deixa – sou uma estrada de ideias – o mundo todo mora lá dentro. e desse mundo nasce o universo. que explode a cada instante. fabricado por cada faísca que me incendeia – em recantos que desconheço. mora a dor que grita. o sorriso que ilumina. a incerteza que me caracteriza. porque para cada pensamento. há uma porta aberta. uma meditação. e cada amigo ou inimigo. preso ao que sou. só nasce quando escrevo. ou quando sofro. porque ser ou não ser. só vai depender do mistério que desbravar – e os átomos são a dor em movimento. e o corpo a caminhar para fugir das certezas absolutas. e eu sem saber se me belisco. ou acredito. que desta vez a prova dos nove é resto zero – alimentar o instante é a razão da minha existência – frio. aconchego-me. quente. refresco-me. a vida é feita de frio e calor. e o corpo a migrar para os polos da procura – sou garimpeiro de mim -- e em nenhum lado. há um instante que me fixe para sempre – sou apenas uma nota de piano em busca da sua melodia – e o sangue a ferver por não ser corrente. não traz paz. e lá no fundo. onde já não me reconheço. grito para que me ouça – é quando procuro um basta. e o corpo dói para resistir. e o instante põe-me vazio. como se soubesse que se paro… morro – alimento-me de mim. e morro com tudo o que os olhos me dão – sou a ruína. uma descoberta sem carbono catorze. com as mãos a pedir menos medo. e o equilíbrio cada vez mais difícil. a vida como gelo fino. cristal de murano – abraço-me e pergunto: que gesto faria de mim outro ser – aquele que se dissolve nos elementos: terra – ar – fogo – água – o tempo é a minha palavra. é estrada que fala com o infinito. e qualquer que seja o desejo. é no espelho que me reconheço: o nariz do meu pai. os sapatos ao contrário. e as mãos a abraçar o impossível – neste instante o que peço é tempo. não tenho medo da morte. é do tempo que tremo – tenho medo dos comboios que passam a correr. da água que não chega ao mar. da palavra que não sai da boca. do silêncio que nunca responde – quero acreditar que a morte é apenas uma porta. um silêncio para além do instante – a mente cala. os braços vão tocar no invisível. o chão ruirá. e nas costas as asas de uma gaivota livre -- levanto-me do corpo -- desenho de mim sem mapa e sem fome do inesperado – a luz é a certeza. a sombra é descanso. e corpo finalmente. com o passaporte carimbado para a desistência. para o perdão. para a palavra sem valor – os sonhos sem cumprir. esses malditos. serão vento. santo graal. ou hóstia. papel. assinatura de sangue -- nunca serão dor -- para trás. a palavra escrita reinventa-me a cada instante dos outros. e mesmo sendo o que cada um quiser. eu estou noutro mundo. onde o que quero está sempre certo – cheiro a anjo. mesmo que os olhos me ignorem. este sou eu – perdido no inferno que criei no instante em que nasci    

 


27/10/2025

dentro da toyota hiace 18 anos – eu. tiago. e quim

 





esta é a última crónica de cinco passagens de ano que me ficaram em memória – à medida que envelhecemos. cresce em nós a necessidade de guardar em papel o que tivemos de melhor e de pior durante o nosso crescimento como pessoas – essa necessidade é. agora tenho a certeza. a presença da finitude no nosso acordar –deixamos de fazer projetos a longo prazo – agora. tudo é para o dia em que vivemos – escrever estas crónicas foi a forma que encontrei de doar aos meus descendentes o que eu e a maria joão vivemos: um mapa onde um dia se poderão rever. e assim perceber melhor o que nos liga. independentemente do tempo e das vivências pessoais

 

quando somos jovens. todas as festas acendem os dias por dentro. nós já somos alegres pela ausência de passado. e quando não há passado. não há pecado. por isso. nada bate uma overdose de gargalhadas. uma mão cheia de palermices. e uma constelação de sonhos na palma da mão. prontos a partir ao ritmo de um mundo que ainda nos era estranho – quando a leveza dos anos nos faz acreditar que já somos homens feitos. especiais não pelo que fizemos. mas pela certeza do que ainda vamos alcançar. a vida torna-se numa correria tonta. corremos em todas as direções e raramente chegamos a algum lugar -- foi o que me aconteceu -- eu era um miúdo cheio de sonhos – quem não os tem aos dezoito anos – sempre que olhava para as mãos. pensava: o que vós não podereis fazer? e a resposta era sempre a mesma. nada – deixei a luz do dia pela sombra da noite. frequentava o regime noturno – nas salas uns quantos como eu. deslumbrados da vida. sonhávamos que o dia morria no anoitecer. fechava os olhos e nada ficava para o dia seguinte – como estava enganado. como era tolo. mas também era um rapaz encantado. porque só os bons rapazes é que acreditam num mundo sem lamentos. com uma borracha capaz de apagar o que há de menos bom – eu despertava sem culpa. sem sombra. com a inocência dos que ainda não sabem o que perderam – depois. havia aqueles que na altura eram para mim velhos. e pensava: o que fazem aqui. com mais três quartos da vida gasta – para que precisam eles de conhecimento? hoje sei que um homem apenas pode morrer com o que sabe. nunca com o que possui – sempre amei os meus amigos. sempre os achei mais inteligentes. mais bonitos. mais íntegros. mais capazes de adivinhar o futuro – eu não sabia nada do futuro. para trás eu não existia – e quanto mais me apagava do rasto. mais o pouco de mim brilhava – e era tão pouco – os olhos castanhos a cair para a incerteza. o cabelo virado a norte. os braços presos aos bolsos. e as pernas a correr sem destino. só o coração batia. compassado. como se marchasse numa parada militar – hoje era dia de mexer no calendário. ano novo. estávamos em mil novecentos e oitenta. e eu com dezoito anos feitos – bem sei. numa urgência. mas era adulto – tinha tirado a carta de condução. que naquele tempo era quase um mestrado em tráfego rodoviário – e um carro capaz de chegar a moscovo -- nem que fosse ao empurrão -- pela noite. eu e mais dois amigos. o tiago e o quim. vagueámos pela cidade de braga numa toyota hiace de três lugares. e com o aproximar da meia noite. parámos o carro onde diariamente parávamos a vida – na praça do comércio – e fizemos a contagem decrescente para a entrada no ano novo – com a última badalada abrimos uma garrafa de espumante. e celebrámos o ano novo como se estivéssemos na times square. e a bola de cristal a cair devagar sobre nós – e por incrível que pareça. desceu mesmo dentro da hiace – jurámos amizade para sempre. e rimos de todos os disparates que inventámos para o futuro – seríamos ricos. famosos. e ilustres cidadãos do mundo – talvez até com direito a um mount rushmore. e as nossas faces talhadas na pedra – por baixo. a inscrição: “os melhores amigos na melhor passagem de ano de todo o universo” – aqui cozinharam-se os sonhos mais idiotas. mas também os mais belos do mundo

 

P.S. falei acerca desta passagem de ano com o meu amigo tiago. que me garantiu que foi a sua melhor passagem de sempre – confirma-se assim como a juventude pode criar as mais belas imagens. aquelas que acabam por ser as fundações de um entardecer sereno 


21/10/2025

passagem de ano com os meus pais – memórias de uma 4L

 




tinha eu os meus dezasseis anos. e pela primeira vez fui com a família passar a passagem de ano fora – era hábito juntar a família em casa e contar em decrescente os últimos dez segundos do ano. depois… uma barulheira infernal. como se o planeta terra tivesse sofrido um novo big bang – ano novo e tudo continuava velho – mas não. neste ano. íamos estrear uma passagem de luxo. o meu pai levava a família para um hotel. com direito a jantar. gaitas e confeites para receber um ano com pressa de nascer – lá me vesti com a melhor roupa. eu e a minha família – a minha mãe chiquérrima. com um vestido bronze comprido sarapintado de dourados. a tapar os pés – mas ainda deixando adivinhar o salto alto – o meu pai de fato e gravata. com o bigode à henry flynn. aparado a fio prumo. certíssimo. camisa branca e gravata a dizer: estou aqui. sou o chefe desta família. sou de braga. divertido. este é o meu mundo – o dia correra em azáfama para os meus pais. mas para mim. o essencial era simples: estar com os meus amigos – e rir. afinal. no próximo encontro já não os veria desde o ano passado – assim foi. da parte da tarde encontrámo-nos todos debaixo do alpendre do mercado municipal. era ali que passávamos as noites. protegidos da chuva. do orvalho. e da idade adulta que nos rondava – contava-lhes a minha expectativa para a noite do réveillon. e apesar de ir para um hotel chiquérrimo. com banda de música e cantante para animar. tinha preferido ficar debaixo daquele coberto de risos – no entanto. o mais certo era também não ter amigos. naquele tempo era natural ficarem em casa dos pais – eu ficava suspenso. como lâmpada sem corrente. sem luz – mas para que houvesse emoção na juventude. ao fim da tarde. fui buscar uma carrinha de trabalho do meu pai. renault 4L. e sem que ele soubesse. e obviamente sem carta. meti um grupo de amigos dentro da carrinha – lá fomos dar a última volta do ano que morria num vagar nostálgico – a 4L era uma carrinha sem confortos que hoje já damos como garantidos: ar condicionado. suspensão aceitável. rádio. e outras coisas a que já nem ligamos – dentro da carrinha o barulho era ensurdecedor. todos aos tombos. com as palavras e a alegria também. e em cada curva. a certeza de que a qualquer momento poderíamos ficar de rodas para o ar – mas que importava isso. afinal tudo o que acontecesse ficaria no ano velho. e mais umas horas. ninguém se lembraria do que ficou para trás – metemos o carro pelos campos e veredas de terra batida. e logo ficou preso nas valas. o peso aninhou a 4L. enterrou-se e não havia meio de a tirar dali. tivemos de tirar carga amiga. mas como estávamos numa cangosta as portas não abriam. saíram todos por detrás – porque na juventude somos todos por um – empurraram a 4L para o novo ano – como se fossemos uma irmandade de heróis – entre risos e gargalhadas o tempo esgotou-se mais do que devia. e a hora de chegar a casa atrasou-se – entrei em pânico – felizmente a minha mãe também se atrasou. ainda deu tempo para um banho rápido e para me aperaltar – lá chegámos ao hotel. e a noite correu como tinha de correr. uma animação frouxa. a banda a tocar. o povo a bater palmas por cortesia. o marisco a chegar à mesa já cansado da espera – à meia noite o espumante. as uvas passas. as cornetas e os confeites – por um instante tudo parou – contamos… 10. 9. 8. 7. 6. 5. 4. 3. 2. 1. 0 – e os decibéis subiram até ao espaço – dois minutos alucinantes. vivas. abraços. desejos de saúde e dinheiro – foi logo o cansaço a cair sobre todos. o ano novo mal respirava e já todos pareciam esgotados – mais umas danças. uns goles de espumante. e por volta das três da manhã voltei a casa com o mesmo peso do ano anterior – para mim o ano novo tinha sido com os meus amigos. eu amava-os. eram os confeites da vida. e a sua barulheira. as gaitas e os assobios – o tempo passou. e hoje sei que mais nenhum ano novo trará de volta esse tempo – tenho saudades dos meus amigos. tenho saudades de mim. tenho saudades dos meus pais – e se um dia encontrasse uma lâmpada com um génio. e me desse três desejos. saberia bem o que lhe pedir: um ano novo com os meus pais. mesmo que fosse no hotel mais rasca. os amigos todos para a 4L. e o terceiro desejo… que nenhum de nós envelhecesse. e que o génio tivesse um ano igual ao meu. talvez então me compreendesse. talvez também ele soubesse que ser jovem não é idade – é um instante que o tempo rouba sem pedir licença


17/10/2025

duas passagens no mesmo ano

 




nunca dei grande importância à passagem de ano. para mim. o dia mais importante do ano sempre foi e será o natal – a passagem do ano é apenas um momento. condensa-se a um único segundo. faz mudar o calendário. e ao acrescentar um instante. permite que o ano mude. mas nem sempre muda o ciclo de quem a vive – dividir o nosso tempo. é apenas a forma que o homem encontrou para arquivar as memórias mais facilmente. uma gaveta para cada ano. encaixadas em outra gaveta maior. como as bonecas russas. as matrioskas. e em cada uma delas uma parte específica da nossa caminhada terrena: a infância. a adolescência. a plenitude. a meia-idade. a velhice. e por aí fora. até não haver mais gavetas – o homem tem uma necessidade profunda de se renovar. de fechar ciclos – fazemos isso regularmente. sem festejos nem fogo de artifício. a sexta-feira traz um fim da semana. a segunda-feira renova-se a esperança de uma nova semana de trabalho – deitámo-nos à noite e encerramos o dia. acordamos pela manhã. renovados de energia – o homem é tecido. feito de linhas de recomeço. e não percebe que para recomeçar é sempre necessário encerrar ciclos. porque todo o começo pede um fim. e todo o fim esconde um recomeço – ressoam as doze badaladas. o ano velho despede-se em silêncio. às vezes. sem deixar saudade. e entra o ano novo. carregado de esperança – celebra-se em quase todo o mundo. nem sempre à mesma hora. nem sob o mesmo céu. onde milhões de pessoas. em contagem regressiva. dão vivas de alegria enquanto o céu se acende com a luz dos foguetes. iluminando o novo ano de esperança – o recomeço dentro de outro recomeço. despertar. todos os dias. para a vida – para trás ficam os dias em que apenas resistimos. alguns em alegria. outros em agonia – o novo ano não é mais do que uma porta entreaberta para o futuro. e a esperança de que a felicidade se apresente com maior constância – no nosso país. comemos doze passas – representam os doze meses do ano. e para cada passa pedimos um desejo. sabendo que o mais certo é que nada se altere só porque a calendário mudou. mas por breves momentos. entre gritos eufóricos nada lúcidos. fazemo-nos acreditar que será tudo diferente – a passagem de ano é o momento em que somos. de verdade. e o momento em que ainda seremos. e por mais que teimemos em ser plenamente honestos. acabamos sempre por depositar no ano novo uma esperança que depende mais de nós do que do próprio calendário – eu e a maria joão entramos no ano novo. creio que em 2005. duas vezes – primeiro tivemos uma passagem de ano portuguesa em viagem. a caminho de bayona. na galiza. onde uma parte do percurso foi feito à luz dos foguetes – um pouco mais tarde voltámos a renovar a esperança de um ano novo mais próspero já em bayona. com a vila então completamente deserta. os espanhóis estavam todos recolhidos em suas casas. e eu e a maria joão. por aquelas ruas sem encontros. caminhávamos felizes. uma vila inteira suspensa só para nós. como se o tempo tivesse parado para nos esperar. como se o mundo tivesse adormecido. e a certeza de que. em algum dos anos. havíamos de ter sorte – aos poucos. as ruas foram-se enchendo. os bares começaram a abrir. os encontros foram acontecendo. e uma onda de gente tomou cada recanto da rua. as bebidas começaram a rodar de bar em bar. e nós também. rodávamos com elas. corremos e brincámos com o ano novo. estávamos felizes por ter a certeza de que se não estivéssemos lá as ruas permaneciam desertas e tristes – nós éramos. em si. o ano novo. a pura felicidade. a renovação em carne viva. nós encarnávamos o ritual de transição mais antigo e genuíno da terra – éramos a estrela central. e até o sol girava à nossa volta – dormimos de frente para o mar. e pela manhã voltámos a casa. com a certeza de que até poderia ser tudo igual. mas nós já estávamos diferentes. éramos muito mais do que apenas dois seres felizes. éramos um casal feliz. inteiro. luminoso. invencível – a nossa casa tornou-se. também ela. mais feliz – a verdadeira passagem de ano não estava no calendário. estava em nós. e fomos nós que a tornámos inesquecível. inquebrável ao tempo. refém da memória até hoje. dois seres capazes de renascer na leitura do tempo passado. mas sempre tão presente



13/10/2025

a primeira passagem de ano sem o meu pai

 




o meu pai morreu no dia 17 de março de 1998. foi sepultado no dia 19. dia do pai – o dia dele e o meu – nesse dia percebi que um homem só se torna adulto depois do pai sucumbir à luz – a nossa vida a seu lado é como estar no topo de uma montanha. virados de frente para o ocaso – crescemos com o nascer do sol – não o vemos. mas sabemos que existe. está ali. sentimos a emissão da sua luz. e sempre que há luz há segurança. os medos recuam para o escuro. e a coragem para viver é apenas claridade – um dia levantamos a cabeça e vemos aquela esfera de luz sobre nós. admirámo-lo. e perguntamos: como é possível emitir luz? de onde veio esta presença luminosa? não temos ainda resposta. mas não importa. o importante é aquecer-nos. viver. iluminar com certezas o caminho que percorremos – vamos envelhecendo. mesmo sem dar por isso. e acabamos a perceber que o sol perdeu força. já não aquece como antes. nem ilumina o que escondemos. somos jovens e julgamo-nos senhores de toda a luz do universo. tornamo-nos mais exigentes com os outros. e menos connosco. vulgarizamos a virtude. pedimos à honra que se modere. ridicularizamo-la. e seguimos em frente como se a luz nascesse apenas de dentro de nós – egocentrismo. e todos os planetas orbitam à volta de nós – e continuámos a envelhecer. e cada dia é um ano de corrida. e sem que o relógio nos alerte. num ápice. quando estamos a olhar o horizonte. que agora é cada vez mais perto. às vezes é já ali. percebemos que a todo o momento o sol vai pôr-se. e o escuro permanecerá em nós sempre. olhámos em volta e tudo não passa de suposições – será que vou conseguir ser como ele? será que o meu feitio é igual ao dele? será que vou envelhecer como ele? e no meio das interrogações o sol desaparece. apenas uns raios de luz perdidos aceitam lutar com o escuro – mas o escuro vence. instala-se em nós para sempre. e nunca mais sentimos o sol nascer pelas costas. já não aquece. no seu lugar chega a saudade. já não ilumina. clareia o dia para sobrevivermos – o mundo tornou-se num lugar estranho e por mais anos que passem nunca compreendemos a sua perda – nasci e cresci com ele. como é possível perdê-lo? não é – é como aqueles que são amputados de uma perna. podem ter uma muleta. prótese. até correr ao pé coxinho. mas há noite. quando a tristeza desce. é a sua falta que persiste. às vezes até dói o que já não existe. como aos amputados. que sentem a dor da perna ausente – na passagem de ano de 1998. todos sabíamos que nunca seria igual às anteriores. à décima segunda badalada. sobrou em mim um beijo. e a certeza de que nunca mais nada seria igual – o natal nunca mais se repetirá  – podemos falar dele. recordá-lo. contar os seus feitos. até dizer-mos que temos muito dele. que o seu neto também tem muito de si. mas ao deitar a dor fantasma volta. e magoa – ele não está mais entre nós. e eu nunca serei como ele. nunca serei o seu exemplo – nunca serei como ele porque para o ser teria que fazer o certo no momento certo. e eu não fiz. eu não me construí a partir do todo. escolhi as partes que me davam jeito. e só mais tarde é que percebi que sou como um lego. e para me construir precisava das peças todas – não as tinha. ninguém consegue pôr uma laranjeira a dar laranjas no mês de agosto – naquele ano. enquanto esperava pela passagem de ano viajei para dentro do meu pai. instalei-me nele. e em silêncio. sentei-me na minha montanha de emoções e deixei que o sol me voltasse a aquecer – as saudades fizeram de mim um novo homem. e jurei que nunca mais deixaria de falar dele aos netos. dizer-lhes que os miúdos inteligentes não são aqueles que tiram as melhores notas. mas os que fazem o que está certo no momento certo. não daqui a uma hora. um mês. ou um ano. o que está certo só tem um momento: é aquele momento – depois. são apenas remendos. e o que está roto não volta a ser novo

 

07/10/2025

1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio








 

prólogo

este é um ciclo de cinco passagens de ano que vivi – tive muitas. estas são as que guardei na memória porque de alguma forma se tornaram mais marcantes – viajar no tempo é sempre especial. às vezes são viagens para sorrir. noutras o sorriso não chega. apesar disso é um retalho da vida mesmo que amargurado – ainda assim. porque amo a minha família. os meus filhos. escrever a minha vida é a única forma que encontrei para que eles saibam mais de mim. de nós – ainda não sei como escrever o amor que sinto por eles. mas sei quanto me deram para ser o homem que sou hoje – sem eles nada seria – com eles sei que um dia serei estrela. e quando olharem o céu. encontrarão sempre uma que me chame – e depois. a minha companheira. por mais que escreva. e escrevo muito. nenhuma palavra é forte. gentil. ou sábia bastante para a dignificar – o mais importante. e é isso que tento. é levar aos meus filhos a medida do amor e do sacrifício com que ela viveu as suas vidas – já são gratos. mas a idade ainda não lhes revela o seu inteiro valor – espero que o tempo. como me aconteceu. lhes traga a sabedoria para reconhecer que nada na nossa vida seria igual sem ela – por fim. e nunca é demais dizê-lo. o prazer de partilhar estas viagens com quem me segue nesta jornada diária de escrever – sempre que escrevo. imortalizo-me

 

1 - 2016. renascer das cinzas no ano do silêncio

passagem de ano 2016 – só nós os dois. eu e a maria joão. sozinhos. encrostados no sofá. à décima-segunda badalada engolimos doze bagos de sobrevivência. cada um mais amargo que o anterior – abrimos a garrafa de espumante. a rolha foi um tiro. atravessou-nos o medo e a dor – desejámos um ao outro um ano-novo feliz. cumprimos o protocolo das multidões – dentro de nós não havia nem uma centelha de luz. estávamos moribundos. o escuro moldou-nos – amarrámo-nos a chorar e fizemos prova de existência com as lágrimas – ficámos presos num tempo que já não contava tempo – se por um lado ouvíamos o lacrimar profundo. por outro os corpos apertavam-se num desespero nobre. honroso. porque dentro de nós não havia um único arrependimento. teríamos feito tudo igual. eu escolheria a mesma família. a mesma mulher. os mesmos filhos. a mesma vontade de fazer tudo certo – o sofrimento era mais forte que a solução – a aflição esticava cada segundo até virar horas – olhar para o céu não era recurso. só tinha as mãos para pedir perdão. no fundo de mim o breu absoluto. negro. a cheirar a morte. nem um único pirilampo a acender-me – se tivesse apenas um. talvez a sua luz exígua me fizesse acreditar que era um farol – morrer era fechar os olhos. eu fechava-os até desaparecer. deixava de me ver. escondia-me na parte mais distante de mim e do mundo – as feridas dilacerantes. o grito pintado nas searas. e o ventinho do inferno a perguntar-me se ainda queria continuar com a mutilação –  no meu interior já pouco espaço havia para a redenção. nem um único lugar que não estivesse em carne viva. nenhum vestígio de esperança. tinha ingerido todo o ácido da vida. corroía-me ao microssegundo. na minha cabeça o sussurro ecoava – perdoa-me – eu tinha obrigação de ser mais. tinha jurado que para o bem e para o mal eu estaria presente. mas as pernas fugiram. os braços caíram. a boca envergonhou-se. e os olhos cavaram escuro. e eu moribundo. sem que uma única palavra me salvasse. me desse um recomeço. me trouxesse de volta a dignidade – que mais precisa um homem na hora da morte senão dignidade e honra? nada mais – e a cabeça a estilhaçar-se. e o tormento a rasgar-me em pedaços que nunca mais se juntariam – na caverna que sou uma única vontade: desaparecer. mergulhar no tártaro corrosivo e tornar-me labareda para sempre. incendiar-me com o horror das palavras que me mordiam a mente. uma régua de fogo a deslizar em mim por culpas imerecidas – que deus me suportaria? nenhum – talvez o diabo – e nem esse eu carregava. eu era o próprio inferno. o dono das labaredas. o senhor das trevas – quando acabámos de chorar disse: este ano tudo vai ser diferente. vai correr tudo bem – sempre renasci das cinzas. e a dilaceração foi a única fonte de energia que me fez aguentar a sorte maldita – resta-me apenas o destino como companhia. por mais estradas que escolha. vive em mim a chaga aberta. e ela sabe sempre o momento certo para fazer de mim um sobrevivente. ela. os meus pais. a minha companheira. e os meus filhos – são o fogo que me consome. a cinza de onde renasço

 

música de rodrigo leão no poema minha cabeça estremece de herberto helder


03/10/2025

amor: o altar onde o sol nunca se despede



crescemos a tentar entender o amor. criámo-lo primeiro na cabeça. alimentámo-lo com as necessidades do nosso corpo. talvez da alma. se realmente a tivermos – mais tarde fomos atrás dele. modelámos a forma de barro e enchemo-la de desejo. às vezes luxúria. às vezes apenas um beijo. e nos dias mais soalheiros demos-lhe também um abraço – no que somos. o desejo a pulsar. a fabricação a trabalhar por dentro. o cheiro a cera quente a subir. pó de barro nos dedos. sfumato das sombras a dissolver-se na luz – a deusa pronta – é quando mudamos o amor para o espaço. ele torna-se infinito. como se fosse um pedaço de terra a entrar no mar. ou no próprio universo – pintámo-lo. e a forma ficou perfeita. porque nada esmorece a luz natural de uma escultura nossa. que é sempre aquela que julgamos trazer nos olhos – damos então tratamento anticorrosivo. selámo-la contra as intempéries da alma. guardámo-la para sempre nas íris de olhos apaixonados. que são apenas as janelas do que julgamos ser certo. a fusão do universo num único ponto de luz – por fim dei altura. maneirinha para caber num abraço ainda que pequeno. teci o cabelo com os únicos fios de ouro que encontrei em mim. dei-lhe gestos e formas de andar. igual ao caminho que percorremos no íntimo de nós. desde que soube que viver sozinho não podia ser solução – depois. dei-lhe um sorriso. da boca nasceu o éden onde as deusas descansam para serem apenas resgatadas por amor – e por ali fiquei à espera de que a palavra mágica nasça: amo-te – quando a deusa ganhou forma. pedi-lhe que me moldasse segundo o seu desejo – e erguemos o altar onde o sol nunca se despede – quando temos uma casa. quase sempre igual àquela onde eu nasci. nunca onde as deusas nascem. encontrámos o local onde a devoção se torna incondicional. em destaque. como uma montra virada para o mundo das sensações. ajoelhámo-nos. rezámos para que ela nos compreenda: uma toalha branca na mesa. joelhos no soalho frio. e as mãos a pedir mais um dia de si – às vezes. nos momentos em que não sei escrever. peço-lhe que entre apenas uma vez mais dentro de nós. e que se deite no lugar do amor. lugar que lhe pertence. porque é ali o único sítio onde sei apresentar o amor que nasceu em mim. e peço que me dê um pouco dela para preencher o que falta. para que a possa amar ainda mais – as letras só servem para que as multidões se reconheçam. o amor de duas pessoas é um universo inteiro. onde todos os astros vivem do que dizemos: às vezes é só te desejo. outras… preciso de ti. faz amor comigo – um homem simples. que não sabe escrever. ou que saiba. precisa da sua criação. porque dentro dele apenas existe o que criou. e muitas vezes não sabe se criou demais ou de menos – -- é preciso que a palavra amo-te não se esqueça de mim. necessito de ti. quero-te. és o amor da minha vida -- – o tempo reza connosco e faz a oração da vida – por isso a urgência – é preciso correr de encontro ao amor. andar também é solução. mas correr traz urgência. traz a vontade de ganhar cada segundo à distância. de poder segurar apenas mais um segundo nas mãos do que cresceu dentro si: o relógio torto na cozinha. o casaco ainda húmido a pingar no cabide. e por não saber o que é. porque o amor também se confunde. precisamos de nos fundir nele para que o corpo. ou a alma se a tivermos. saiba que tudo valeu a pena – amar é simplesmente uma criação humana. porque sem o amor nunca haveria consciência. nunca saberia que perder é tão dolorosamente real. o que amamos é nosso. o que é nosso nunca se perde. é sempre para sempre – um homem. na minha idade. já não vive apenas das primaveras. ou de ver o mar. nem do sonho de ser gaivota. e para que serve uma gaivota sem vento – um homem da minha idade anseia ouvir um amo-te ao chegar. um homem precisa de entrar na casa. mais ou menos igual à dos seus pais. e encontrar o mesmo sorriso que viu na mãe. porque a mãe simboliza a virtude do certo. o cordão umbilical continua ali. um nó que nunca se desata – um homem que é feito de amor. precisa de prova acústica. ou de toque. ou apenas que os olhos repousem no universo da sua escultura. porque o tempo corre para o esquecimento – precisa de um abraço à porta. de um olhar que acende a cama. e pela noite. mesmo com o silêncio a pesar no corpo e a alma suspensa no medo da perda. o leito. aquele retângulo feito de nós. onde um dia a morte nos surpreenderá. seja o prelúdio de uma viagem sem pressa. onde a ressurreição do amor compense o desalento da espera – o amor foi a escultura mais preciosa que criei. mesmo sabendo que as mãos eram pequenas. mesmo sabendo que o que traziam de nascença era apenas para caminhar de mão dada. ou falar se fosse preciso para a perturbação abrir caminho – um homem da minha idade precisa de mais do que ficar no miúdo que foi. porque o amor não é um papagaio de papel. nem uma viagem em volta do mundo. o amor é vida. e a vida é interminável quando se ama. a vida é a luz da criação – fui eu quem fez o amor dentro de mim. e fiz o melhor que pude. e juro que ninguém saberia fazer melhor do que eu. porque tu és tudo o que sonhei no corpo. ou no invisível. mas agora. principalmente nesta idade. o que quero mesmo é saber que ainda me desejas. correr para o amor. porque o amor não corre sozinho. precisa sempre de quem o acompanhe por isso digo-te o que preciso. agora. nesta idade em que me tornei homem – -- eu também sou a tua criação-- – ontem foi a nossa história. amanhã será descoberta. ama-me com urgência. hoje

 

quarenta e quatro anos juntos. três filhos. três noras. três netos. a nossa história parece longa. mas na verdade começou ontem – o que falta em tempo é mistério. e mesmo assim. por mais labirintos que atravessemos. encontraremos sempre o caminho que nos trará até aqui – o universo há de conspirar a nosso favor – o nosso matrimónio é altar. família. e a luz do amor que soubemos criar. dentro e fora de nós


29/09/2025

6. eu no boom – sei que vou voltar

 





e assim continuaram os dias. o boom é exatamente como as grandes metrópoles. noite e dia as pessoas revezam-se. umas dormem. outras seguram os astros sob o sol – quando escurece há nova romaria. chegam os festeiros com energia renovada. acendem estrelas e cometas. a lua incha de luz e a música corre pela imaginação de todos. os corações batem ao ritmo de cada vida. alegre ou melancólica – quando cansados os corpos estendem-se pela relva enquanto as almas continuam a saltar nas tendas: trance psicadélica. música eletrónica. até música dos anos sessenta. um espaço em forma de ovo. onde a única entrada é feita curvado. de gatas. entra-se e encontra-se um espaço com uma bola de cristal no teto – batida de discoteca. completamente insonorizada do exterior. e a surpresa é que quando te consegues endireitar dás contigo no meio de trinta ou quarenta pessoas num outro ritmo. outro mundo. que tu jamais esperavas encontrar ali – mas que em jovem conheceste e habitaste – o boom foi uma experiência transformadora. num espaço onde a liberdade  reúne as pessoas. toda a expressão é individual. e quando ligadas cria uma conexão humana incapaz de ser descrita. direi que se cria um núcleo de gente muito diversa. mas toda se sente una. livre. sem julgamentos – há pessoas de todo o mundo. e isso cria um movimento heterogéneo de culturas em partilha – música. arte. ligação à terra. à natureza. bem-estar. vive-se um estilo de vida minimalista. que bem aproveitado mostra que o mundo está inundado de coisas supérfluas. abrindo espaço à renovação interior. à limpeza da alma e do corpo. permitindo à mente descobrir novos eus. e expandir-se para lá do que a circunda – estar no boom significa também fazer parte de uma nova geração que se preocupa com os valores ecológicos. se entras no boom sem essa consciência. à saída já sentes que fazes parte dessa comunidade – sei que vou voltar. não por nostalgia. mas porque há lugares que se tornam espelho – e no boom vi o reflexo do que quero que continue a acontecer na minha vida: reconheci-me livre. inteiro e vivo – o boom não termina quando as luzes se apagam. fica em cada batimento. como já escrevi. senti e vivi. basta fechar os olhos. e nos meus silêncios. posso sempre preenchê-los com as suas batidas – estas batidas nunca se calam. e a água continua a ondular – por isso sei que vou voltar – há viagens que não se encerram. apenas recomeçam – voltar ao boom é voltar a uma aldeia sem fronteiras. o que faz de mim um homem também sem fronteiras. sem medo. sem guerras. e sem fome. onde cada rosto é diferente. mas todos se sentem parte da mesma tribo – eu encontrei esse mundo aberto – por isso sei que vou voltar


26/09/2025

5. eu no boom - 2ºdia

 




 

a felicidade é o presente. não é o regresso ao passado nem fuga para o futuro – não está num interruptor nem numa cartola mágica. pelo contrário. é superação das dificuldades. dos traumas. das noites sem dormir. dos objetivos cumpridos. e dos que ficaram por cumprir. dos amigos que perdemos. dos que chegaram. a felicidade é perda. mas também caminho – e é no caminho empedrado que muitas vezes nos encontramos despidos de ilusões – nesse instante deixamos cair as camadas que nos escondem – e sentimos o alívio de reconhecer quem somos – precisamos de soltar essas camadas. para que se dissolva a matéria que nos prende à forma – a felicidade acontece apenas porque caminhamos. porque tivemos coragem para procurar. às vezes não sabemos o que. como um tabuleiro de xadrez que pode ter todas as peças. mas se faltar um peão… já não há jogo –  o dia de hoje é o mais importante da nossa vida. porque fomos capazes de refazer o que somos quando o mais fácil era desistir – a sociedade exige muito de nós. é preciso fabricar homens de um sucesso global. para que possamos ser aceites: carro. casa. relógios. doutoramentos sem conhecimento. a lista seria interminável – levantar e caminhar é felicidade. isso é a única verdade. depois. estar onde queremos estar. respirar a divindade que entra em nós. e partilhar do vento que mantém as gaivotas no ar: liberdade – é obrigatório dar-nos ao agora. no boom não podemos estar noutro lugar – ali sentimos a consciência a saltar connosco. estamos todos interligados. um emaranhado de cordas. e essa interligação. talvez cósmica. faz de nós um pouco de cada ser. ligados pela consciência. vibrantes e cintilantes. e o planeta que se chama terra. um mero condutor. a esticar-nos pela gravidade. e pelo sim. sim. é esta gente o dínamo da terra – ligados por essa energia comum. percebemos que o mesmo magnetismo que nos une também nos desafia – a física diz que polos iguais repelem-se. mas nós ligámo-nos. existe dentro de nós uma porta que se abre ao desconhecido. ou é a própria energia do planeta que a abre. e as suas pessoas empurram-nos porta fora – mesmo que não compreendamos o mundo físico. é a nossa consciência. com os seus mecanismos ainda desconhecidos. que nos diz: este é o teu momento. despe-te de preconceito e vai. liberta o teu espírito. cumpre-te pelo chamamento. edifica-te nos desaires. liberta-te dos sucessos. recupera a estrada que deixaste marcada – dostoievski dizia: torna-te consciente de ti mesmo. mesmo que tenhas de enfrentar a tua verdade interior. mesmo que sofras – eu acredito que o gerador da felicidade é a dor. a desilusão. a perda. o medo. o fracasso. o trauma. a dúvida. o terror de não podermos voltar atrás e emendar o erro. é também a decisão de percorrer caminho. do movimento. e tal como um astro rodamos. e criamos o nosso próprio campo magnético. atraímos o que em nossa volta roda. num outro campo magnético. e sem que o corpo saiba trazemos para dentro de nós a consciência de alguém. a sua vontade de nos inundar com o que é seu – e quando superamos essas debilidades. somos felizes – bem sei que por pouco tempo. os desaires ficam para toda a vida. a felicidade é efémera – porque será que a felicidade é passageira? porque enquanto os desaires se contraem no corpo. e a nossa capacidade de armazenamento é quase ilimitada. a felicidade expande-se. não a conseguimos reter. esvai-se. como água com consciência – o corpo serve apenas para nos diferenciar uns dos outros. as pernas para saberem que chegamos. os braços para saberem que abraçamos. os olhos para saberem que reconhecemos. e a boca para gritar ao universo que nos devolva a luz – e vamos à procura de mais felicidade. e depois ainda mais. precisamos dela para sobreviver. e quando não a encontramos. na maior parte das vezes por nossa culpa. o trabalho cega-nos. as distrações dos amigos. a família consome-nos. e sem dar conta estamos perdidos no tempo. não do universo. esse não se perde. está em nós desde o nosso primeiro dia. mas de nós. passamos a ser o que na verdade não somos. vestimos a armadura de aço e resistimos. morremos de olhos abertos – e a felicidade logo ali. tão perto. tão simples. tudo se resolve com uma equação de três simples: despoja-te. liberta o peso. entrega-te ao desconhecido. acredita no invisível. entrega-te a ti. e vive inteiro – foi assim que cheguei ao boom – a minha consciência fundiu-se com outra. e com mais cem mil que tiveram o mesmo desejo que eu: ter uma nova experiência de vida. iluminar-me por conta dos seus astros. da estrela a que cada um pertence – com a minha idade pensei: vais sofrer. aquela malta vai-te trucidar – mas não. fui eu que me trucidei. abri a porta e as cordas partiram em debandada. interligaram-se. teletransportei-me para cada uma daquelas consciências. e todas. me entregaram o melhor de si – tornei-me o núcleo do universo. porque só quando somos muitos temos força suficiente para nos tornamos um núcleo. ligamo-nos como se juntam os átomos. talvez da água. e balançamos – depois subimos como bolinhas de sabão ao universo… e por ali ficamos. a ver-nos como somos. e na verdade. somos muito menos do que uma bolinha de sabão. inexplicavelmente perdida entre estrelas sem nome – e talvez bóreas. sentado numa galáxia distante. tenha percebido. quanto pode ser importante uma pequenina bolinha de sabão. e levantou um ventinho fininho. que me levou para o infinito de mim. e percebi que ainda hoje não sei onde termino. sou muito mais do que pensava. e muito menos do que uma bolinha de sabão – tirou-me a pele. e senti o frio de viver livre. dancei como os meus ancestrais dançavam. e tornei-me no peão que faltava no tabuleiro de xadrez. e o jogo começou. e compreendi que sem mim. sem peão. não haveria boom. mesmo invisível as cordas deram-me forma. tornei-me espírito. e saí do meu corpo sem medo de não voltar – isto é liberdade. isto é consciência. isto é dar a mão ao mundo. e tal como paulo de carvalho. cantor português. fiz uma fogueira dentro de mim. e dancei numa consciência coletiva – e fiquei com a certeza de que pelo menos uma estrela daquele céu era minha – eu estava no único lugar onde poderia estar e com as pessoas que deveria estar. a minha conexão era total. percorri mil vezes cada uma daquelas pessoas. e todas me visitaram mais de mil vezes. dei e recebi. e nenhuma teoria física seria capaz de resolver esta equação. só a consciência tem a fórmula – neste segundo dia vagueei pelo espaço – era tudo tão novo – às vezes parecia que durante o sono as fadas tinham mudado tudo. as pessoas tão diferentes e tão iguais. famílias com crianças. pais jovens. amigos em bando. solitários. velhos que pareciam novos. namorados apaixonados. todos a girar. como se fossem planetas. talvez caminhassem por si. ou pelo chamamento da consciência. talvez coletivo. ninguém levava mapas. não havia guias no chão. nem setas: olha ali uma tenda gigante. uma escultura. uma árvore. estas formas simbólicas. relembrando uma conexão profunda com o sagrado e o ritual. luminosas. às vezes abstratas. mas tão parecidas comigo. identificámo-nos com tudo. porque tudo é o que somos – para onde quer que se olhe os olhos giram. a consciência gira. e as luzes a cores pintam a nossa tela interior: era como se dissesse em silêncio: não me levem daqui. quero aqui ficar para sempre – a massa do corpo não altera com o lugar. mas aqui eu não me peso. a alma não pesa. a consciência não pesa. vive. sonha. ri. sossega. é feliz. sem dores e sem medo. afinal. talvez sejamos imortais. talvez só a carne apodreça. apenas viajamos. talvez o tempo seja relativo. talvez só aqui todos nós estejamos certos com o que somos – e assim andei. até deparar com uma projeção de imagens em vapor de água – no lago um repuxo enorme lançava água a dezenas de metros de altura. que no seu processo descendente. já em gotículas pequeníssimas. recebia a projeção de frames de várias imagens. que com a gravidade se deformavam aos poucos. até desaparecerem no espaço dos olhos. enquanto outra imagem se sobrepunha. e assim sucessivamente – sentei-me na relva com a minha maria joão. os meus amigos e desconhecidos – todos absorvidos. todos sugados para dentro da viagem animada de um preto e branco nostálgico – silêncio absoluto – apenas a água e a música de fundo – estávamos suspensos. entre vida e silêncio – deixei-me embalar pela magnificência daquele cinema em tela de água. e quando dei por mim chorava copiosamente. não sei quanto tempo chorei. sei que foi o suficiente para voltar ao passado e encerrar um momento da minha vida que sempre imaginei estar fechado – este é o único retalho da minha vida que partilho aqui. haveria muitos. mas cada um deve viver as suas viagens em solidão. ou então encontrar as pessoas certas para partilhar – há vinte e sete anos o meu pai faleceu. e a minha família. como uma outra qualquer. estava em pranto absoluto. devastados. eu era o mais novo. mas velho o suficiente para ser forte. tinha trinta e oito anos – eu sabia que era o mais resistente. quando somos novos pensamos ser sempre o que em verdade não somos – não deitei uma lágrima à frente da minha mãe. irmãos. esposa. e filhos – foram três dias de superação interior – pela noite. descia para a rua e entrava no carro. punha a cassete a tocar. charlie haden & pat metheny – spiritual. e chorava copiosamente. berrava até que os ouvidos serem só ruído. a dor era tão forte que dilacerava-me o corpo. a alma em pasta. retorcida. e assim estava horas aos murros ao volante. a insultar deus e o universo de tudo o que pudesse magoar. a água escorria-me dos olhos – corpo ensopado de mim – de raiva. de ira. de revolta e jurava nunca mais lhes perdoar – pois bem. naquele espaço mágico chorei as mesmas lágrimas. senti as mesmas dores. exatamente a mesma dor. a mesma raiva. tudo era tão real. tão daquele dia. o corpo sentiu a mesma vontade de morrer. de destruir o mundo. o mesmo sentimento de perda. o meu pai ali deitado. e eu de pé. sem que a dor pudesse mexer em mim um músculo. uma lágrima – quando acabei tinha enterrado definitivamente o meu pai. tinha cicatrizado uma ferida que não sabia que estava aberta. por fim. depois de tanto tempo. fiz as pazes desse dia – quando me levantei disse aos meus amigos que tinha que me recolher. estava cansado. estava completamente vazio. oco. não sentia nem o corpo. nem a mente. mas senti paz. senti que estava no meio do universo. sem peso. sem nada a reclamar de mim e do mundo – se tinha dúvidas foram todas dissipadas. se não fosse por mais nada a minha ida ao boom tinha sido recompensado com algo que nunca imaginei que fosse possível – fiz as pazes desse dia – é preciso acreditar na evolução do mundo. das pessoas. e da sua consciência – é preciso compreender a física – há cem anos a física explicava menos do que hoje. se não acreditarmos. só nos resta a teologia – foi isso que a física quântica nos trouxe. a oportunidade de trazer para dentro de si a consciência – nós somos alma. energia revestida por um corpo – estamos emaranhados num universo de energia – assim podemos sentir-nos ao mesmo tempo em vários lugares. dentro ou fora do corpo. as batidas marcam o ritmo das viagens. e os lugares ligam-se pela velocidade das vibrações – podemos viajar por vários lugares ao mesmo tempo. mas no boom aprendi a ficar onde estava feliz. se viajei. isso foi apenas porque as forças do universo me levaram. cintilante fiz-me estrela. iluminei os que comigo preferiram ficar ali. e todos nos ligamos ao universo por cordas que vibram em nós – e assim fechei mais um dia no boom – e abri mais uma estrada em mim – envelhecer tem a sua vantagem. o corpo mirra. mas a mente já não me trai – voa em viagens de reconhecimento. para um dia saber. qual a estrela que me pertence desde o nascimento

 


22/09/2025

4. eu no boom – 1ª dia

 





pois bem. depois de cerca de trezentos quilómetros de caravana e de muitas horas de expectativa para entrar na quinta da herdade – uma noite de espera e parte do dia – lá chegamos – eu. maria joão. minha companheira há quarenta e quatro anos. os amigos luís e mariana ainda a começar a contar os anos de ligação.  e maddy. minha amiga há quase vinte anos – uma vistoria rápida na entrada para garantir que cumpríamos as regras. zero tolerância para vidro. álcool e drogas. e lá nos indicaram o local onde estacionar. no topo do monte que protege a norte o espaço do boom – já era noite. e à nossa volta apenas eucaliptos. pó e o desconhecido pela frente – de noite todos os gatos são pardos – uma refeição rápida. um banho e toca a descer para a festa. a expectativa era imensa. perder a primeira noite não era opção – lá fomos. e seguimos a regra de quem viaja sem mapa. seguir quem já caminha com sentido – uma descida íngreme de quase dois quilómetros. e a meio já se ouviam as batidas. e ao longe uma constelação de luzes mágicas – com a aproximação ao recinto começamos a sentir a grandeza do espaço – o primeiro olhar colado ao rosto – o espanto na alma – a intuição instantânea de que ia ser feliz – confesso. a minha escrita não alcança. não chega. não toca o que me foi oferecido. era muita luz a invadir-me os sentidos. com cores e projeções que nunca tinha imaginado – diria que é a disney dos adultos –  era luz. era música. era cor. era tudo a acontecer de uma só vez – era tudo a acontecer em mim – para ser verdadeiramente feliz basta perder o preconceito e lançarmo-nos sem medo para cada apelo da alma – e havia muitos apelos. o problema era saber para onde olhar e caminhar – pela primeira vez senti-me verdadeiramente livre. ligado às pessoas. ligado à natureza. ligado às galáxias. fazia parte de um organismo uno que me recebia inteiro no ser. como se renascesse ali naquele instante – o corpo e a mente deixaram de magoar. e partimos à deriva para cada bolha artística. um oceano de luz. um oceano de música. um oceano de vibração. um oceano de vida. um oceano sem fim. ligado às pessoas. ligado à natureza. ligado às galáxias. ligado a tudo. e eu a navegar à bolina – preso e solto ao mesmo tempo – como se o ar fosse água. como se eu já não tivesse corpo. como se fosse apenas alma. apenas vibração – e as ninfas do lago em chamamentos para sair de onde estava. porque o outro lugar chamava mais forte – senti-me mágico. também eu tinha mordido a maçã do encantamento – a questão era quanto tempo ia durar o efeito – para minha surpresa dura. dura até hoje – revisitar o boom é apenas necessário fechar os olhos – em cada esquina um misto de estruturas iluminadas. algumas do tamanho do adamastor. talvez maiores – nenhuma cabia inteira na cabeça. nenhuma cabia inteira no peito. olhar para uma parte era deixar outra de fora – e eu a mergulhar nas luzes de cada escultura. algumas abstratas. cintilantes. que nos lançavam para o espaço sem nunca tirar os pés do sagrado – figuras antropomórficas que nos prendiam. nos sacudiam de todas as maldades do mundo – e em cada passo a sensação de já não caminhar. mas voar preso a cada feixe de luz – talvez peter pan. talvez um duende – uma alma transfigurada por um sentimento de felicidade que nunca tinha conhecido – e ainda hoje vibra – de seguida entramos nas tendas gigantes. eram três. separadas por um manto sagrado. apesar dos decibéis. nenhuma batida fugia para outra tenda. como se houvesse um muro invisível. uma mão que separasse as notas de música. e dentro delas milhares de jovens e não jovens a baloiçar os corpos. iguais aos de beach party by nova era. o corpo para um lado. e o cardume inteiro em movimento. todos em transe. e a cada batida uma perna para a frente. logo outra para trás. ninguém sai do sítio. e todos caminham pela imensidão do espaço sideral – e eu ali. a caminhar com eles. primeiro a medo. depois já no cardume. deixei-me apanhar pela música. deixei que ela me levasse para onde o meu espírito se encontrasse com o que sou verdadeiramente. sem medo. sem preconceitos. nunca deixei de ser quem sou. mas passei a ser mais. mais do que sabia. mais do que pensava. mais do que sonhava ser. e completei-me. trouxe dos outros o que pude. e em vez de me sentir cheio. senti-me vazio do que pensava ser essencial. e passei eu mesmo a ser um ser tribal. feito de batidas e sentimentos que desconhecia – as gavetas abriram-se. as janelas abriram-se. as portas abriram-se. tudo se abriu. eu também me abri. e fiquei apenas água. a ondular. a amar tudo o que me rodeava. e a certeza mais uma vez de que havia escolhido a mulher certa para a vida – estávamos felizes. estávamos os dois livres. e livres. nunca nos conseguimos separar. voamos para o luar. iluminamos o caminho que escolhemos. e brilhamos como dois pirilampos. como duas centelhas no escuro. como dois sóis a nascer – beijamo-nos como adolescentes. e dissemos: os nossos filhos deveriam um dia experimentar esta liberdade – por fim. cansados. já depois das cinco da manhã partimos à procura do descanso. subimos em direção ao céu. e dormimos como anjos – tínhamos a certeza de que tínhamos feito a opção certa. estar no boom fez-nos bem. aproximou-nos. e fez-nos recordar o que de melhor trouxe a nossa união: os filhos. nossos deuses. nossa glória. nossa virtude. nossa eternidade. nossa razão de ser. nosso infinito. nosso além-túmulo dentro de nós



20/09/2025

3. o que é o festival boom

 




esta terceira parte será preenchida com uma das maiores experiências da minha vida. o festival boom. bienal. em idanha-a-nova. herdade da granja – não será fácil descrever esta minha participação no boom. para ser honesto nem sei bem por onde começar. mas vou com coragem. vou com tudo – o que é o boom? bem. o boom é muito mais do que música. arte e cultura: é uma experiência internacional. um evento de carácter único e transformador. celebrado como um dos maiores e mais originais da europa – centrado na trance psicadélica goa. acabou por evoluir para um festival multidisciplinar que abraça música eletrónica. artes visuais. performances. workshops. conferências. cinema. manifestações culturais diversas. meditação e práticas espirituais. oferecendo uma experiência holística e sensorial – a organização do boom não aceita patrocínios. talvez por isso seja tão pouco divulgado nos nossos canais de informação – todos sabemos que as companhias de telecomunicações. todas juntas. faturaram no último verão mais de sessenta milhões de euros. estamos a falar de um negócio muito lucrativo. e obviamente. com o seu ramo poderosíssimo junto das estações de TV. tudo fazem para não ser divulgado. e quando é. acaba quase sempre por ser por motivos pouco nobres – o boom promove a consciência ambiental. a sustentabilidade. a multiculturalidade. a espiritualidade. a liberdade. e a diversidade artística – eu. no meu trabalho estou ligado ao ambiente. e sinceramente. fiquei muito satisfeito com o seu compromisso ecológico: energia solar. energia eólica. sanitas ecológicas. reciclagem. tratamento de águas. tudo está pensado em favor da natureza – o boom reuniu participantes de 220 países. sendo os festivaleiros estrangeiros a grande maioria. cerca de 85%. com diferentes faixas etárias. famílias. crianças. todos em harmonia. como se o tempo nestes oito dias parasse de existir – junta mais de cem mil pessoas. os bilhetes esgotam rapidamente. mas podia ter o dobro ou o triplo de participantes. não o permitem apenas porque. no seu entender. o espaço. 225 hectares de terra deserta. apenas ocupada pela natureza. seria seriamente afetada pelo excesso de gente – pode chegar ao boom apenas com um cobertor. acampar. ou se preferir estar mais cómodo chegar de caravana. e não se preocupe com comida. há tendas com todo o tipo de pratos. de todas as partes do mundo. e se for vegan ou vegetariano. também encontra – se entender criar as suas próprias refeições. há também um supermercado para o ajudar e locais próprios para cozinhar – vidro e fogões de campismo a gás são proibidos – há um hospital de campanha. com primeiros socorros em permanência. médicos e enfermeiros vinte e quatro horas por dia. e uma tenda especial para testar drogas. a prioridade é a sua segurança. saber o que consome é fundamental para que a sua experiência seja uma boa recordação – o boom é um universo vivo de cultura e partilha. onde cada experiência abre caminhos de transformação interior. no qual os laços humanos se entrelaçam e a terra é celebrada com consciência – o boom acontece sempre no final de julho ou início de agosto. durante a lua cheia. com o luar a servir de holofote. junto a um lago refletido no deserto da beira baixa. a dar brilho aos corpos em transe. como se o céu descesse para dançar – os bilhetes geralmente são postos à venda no fim do ano que precede o festival. e a sugestão que deixo. é se quiser participar neste grande evento. incluído entre os dez melhores festivais do mundo. e considerado o melhor da europa. esteja atento. e corra. pode mesmo assim não chegar a tempo – o boom não é apenas um festival a que se vai. é um lugar dentro de nós a que se regressa sempre – mas por mais que se fale do boom. nada se compara a estar lá – e é isso que vou partilhar a seguir. mostrar-vos que o boom é uma arca de noé erguida sob a lua cheia. onde as pessoas se encontram consigo mesmas: para dançar. meditar e contemplar a diversidade do mundo e. por fim. para acolher cada uma dessas partes como sua. sem preconceito. sem temor. sem medo do amanhã e das suas diferenças

 


16/09/2025

2. – a preparação do corpo e da alma

 




há pouco mais de um ano. mais propriamente em 28 de junho de 2024. um amigo. luís silva. convidou-me para ir a um festival de música eletrónica. beach party by nova era. em leça da palmeira. na praia do aterro. a sua empresa hoteleira era um dos patrocinadores. e deste modo. tínhamos acesso aos lugares VIP – não era o meu tipo de música. muito longe disso. mas quando um amigo convida. é nossa obrigação dizer presente – uma coisa é certa. não o acompanhava pela música. mas sim pela companhia. ainda para mais sou avesso a multidões – em local privilegiado. pensava eu. em cima de um palanque com vista direta para DJs. e ali ficamos um pouco a beber uma cerveja – algo de que também não morro de amores – sem perceber muito bem a ligação daquela juventude. ligada a ritmos sincronizados das batidas. entreguei-me em consciência – e interroguei-me. o que faz esta malta vibrar com estes graves barulhentos? de um momento para o outro. o meu amigo sugere que fossemos para o meio dos festivaleiros. e assim fizemos. descemos as escadas. o medo também. e misturámo-nos na multidão – eu nas massas sinto-me sempre despido. prensado. e fico sem saber o que fazer comigo – ao princípio estranhei. depois entranhei. estava preocupado com a minha presença. pensei: vou desarrumar esta malta. todos tão jovens. e eu. sénior. ali metido no meio deles – aos poucos fui-me sentido mais tranquilo. e comecei a dar a minha atenção à música. mais especialmente ao movimento dos jovens. aos seus comportamentos. à forma como se agitavam. particularmente tentar perceber se os seus movimentos estavam ligados de alguma forma ao ritmo das batidas – ali fiquei em busca da razão destes juvenis. deixei cair o preconceito e pensei: se esta massa humana está toda a vibrar e são milhares. tem que haver uma razão sólida e válida para esta agitação. e  para que mundialmente haja cada vez mais adeptos deste tipo de música. não pode ser apenas a juventude a influenciar este movimento – e no meio daquelas batidas loucas. com as luzes psicadélicas a fermentarem a minha íris. como se os olhos fossem depósitos de cores em agitação. senti os graves. ligados entre si por uma cadência ritmada. envolvente. ao ponto de criar uma ondulação. também ela com ritmo. dentro do corpo. que como todos sabem é setenta e cinco por cento água – ao fim de algum tempo percebi que os festivaleiros moviam-se todos eles de uma forma sincronizada. quando tombavam para a direita. todos tombavam. se atiravam o corpo para a esquerda. mais uma vez todos tombavam para esquerda. e a cabeça em oposição sempre a contrariar o corpo. como se quisessem deixar os pensamentos fora do desequilíbrio. talvez o que tivessem em mente não pudesse ser abanado. talvez tivessem medo de perder a felicidade. talvez com medo de voltarem para as azafamas do mundo – ser jovem nem sempre é fácil – no meu tempo era mais fácil – ao fim de algum tempo criei uma analogia. eram cardumes invisíveis. ondas de carne e respiração em geometria perfeita. possivelmente para enganarem os predadores. moviam-se como se todos fizessem parte de um bailado de rudolf nureyev. talvez marguerite and armand criando um movimento sincronizado. belo. que no seu limite. criava ilusão de segurança. ou de fuga para um outro planeta – talvez estes jovens. com os seus movimentos ordenados. criem esse tipo cardume. todos fazem parte de um todo. um organismo uno celular. e assim capaz de se defenderem deste mundo desengonçado. um mundo onde todos somos desconhecidos uns dos outros – foi uma grande experiência. e durante muito tempo deixou-me a pensar: porque não fui eu capaz de entender esta malta radical? a resposta é simples. por preconceito. por ter envelhecido. e por achar que esta música era para os jovens. e que eu. adulto envelhecido. já não tinha direito a invadir o seu espaço – o que aprendi. e hoje sei o bem que me fez. é que música é música. tal como um livro é um livro. não podemos dizer que não se gosta sem pelo menos tentar compreendê-la. sem lhe dar uma oportunidade de nos ocupar – o mundo só é perfeito pela sua diversidade. de outra forma não haveria evolução. ainda estaríamos  a fazer fogo com duas pedras – este festival viria mais tarde a proporcionar-me um dos momentos mais fantásticos da vida – eu mereci-o. derrubei os meus próprios muros. e encontrei um novo mundo. encontrei a liberdade inteira. sem preconceito. a baloiçar o meu corpo de água – e por fim. estou grato ao meu amigo por me oferecer uma parte do seu conhecimento. da sua vida – é essa coragem que todos nós precisamos em algum momento da nossa existência. nada mais fantástico do que chegar por alguém que me conhece bem – é nesse transe de palavras que vou contar como a música me encontrou. e como me levou ao boom. festival em idanha-a-nova


13/09/2025

eu no festival boom – antes de leres. sente

 




nota introdutória

 

nos próximos dias vou partilhar convosco seis capítulos de um mesmo texto – eu no boom festival – não é apenas o relato de um evento de música – é a história de uma viagem interior – onde cada batida. cada encontro. cada silêncio. se transformaram numa das experiências mais marcantes da minha vida – escrevi para que se leia como quem ouve música – no ritmo das palavras. no compasso das pausas. no fluxo das emoções – espero que encontrem nestas páginas não só a descrição de um festival único. mas também ecos de liberdade. de pertença. e de descoberta – convido-vos a acompanhar esta aventura comigo – que a leitura vos seja tão intensa quanto foi a vivência – e que de algum modo vos inspire a procurar os vossos próprios caminhos de vibração e consciência 

 

 

1.   1. ler é sentir

não uso vírgulas – os pontos tomam-lhes o lugar e seguem o compasso do que escrevo – também não uso pontos finais – são os travessões que me servem de pausa – algumas mais longas outras mais breves. mas sempre abertas como o tempo – deixo ao leitor a liberdade do ritmo – é ele quem dita a cadência da leitura – como numa peça de música clássica onde as notas se soltam conforme a emoção de quem ouve – e de quem sente – escrevo para que me leiam como se ouvissem uma balada – se será triste ou luminosa não me diz respeito – a escolha é de quem lê – o meu papel é oferecer-lhe o caminho – um caminho feito de palavras que vibram. assim partiram de mim – não uso maiúsculas – essas guardo para os nobel e para os que precisam de gritar para serem ouvidos – prefiro o sussurro – o sussurro que entra pelos olhos e acorda a água que vive dentro de nós – escrevo para essa água. os 75% do nosso corpo. para que se mova e liberte serotonina. e devolva ao leitor aquilo que o corpo mais pede: bem-estar – também não separo os parágrafos. porque a vida não se separa em blocos – a vida é fluxo. contínuo – mesmo quando estamos parados ela avança. e o texto deve acompanhar esse fluxo – como um rio onde não se repete margem – apenas corrente – escrevo com essa corrente – ora mais prosa ora mais poesia – sem lhe dar nome – apenas som – a minha escrita nasce do mesmo lugar onde nasceu a música dos nossos ancestrais. quando ainda não havia letra nem palavra – só ritmo – só pancadas – só batimentos – uma música psicadélica-transe tribal – feita de pulsações constantes – de movimentos hipnóticos – de vibração que se ouve com o corpo antes da mente – é essa música que procuro recriar com as palavras – um transe silencioso que se lê – e que ecoa no interior de quem ousa escutá-lo – e porque tudo o que escrevo nasce do ritmo. todos os textos são acompanhados de áudio – é no som que se completa o que ofereço – por isso sugiro sempre que se ouça pelo menos uma criação – para que quem lê compreenda não só o que lê. mas o que sente – para que a nossa água ondule. vibre. e leve ao cérebro outra parte do invisível que vive connosco – para que entenda o gesto que lhe é dado. um gesto de escuta – um abraço invisível feito de palavras em vibração

 

 

06/09/2025

recomeço

 



ao fim de quarenta e um anos voltaremos a ser novamente dois. eu e maria joão – este sábado. o meu filho mais novo. joão antónio. vai desposar a minha nora sofia direito – será um dia perfeito para eles e para nós – nunca pensei. nem desejei que os filhos fossem pertença dos seus progenitores. sempre sonhei em filhos livres e independentes dos seus pais – a nossa tarefa essencial era dar-lhes condições para que. um dia. pudessem abandonar a casa sem medo do futuro – nunca. eu ou a mãe interferimos no seu percurso de vida – sempre o vimos como algo sagrado – o seu caminho foi e será sempre o que escolhem – a nossa interferência resumia-se apenas aos seus estudos – foi a única preocupação. terem um percurso de aprendizagem dedicado ao conhecimento. não lhes pedia estudo pela obrigação. mas conhecimento pela vida – porque o conhecimento já carrega dentro de si estudo. dedicação. e afirmação da sua personalidade – outro ponto em que nos focámos na sua educação. para além dos seus estudos. era prepará-los para também. um dia. serem pais – ser pai é a função que mais enobrece um homem – a felicidade não está em possuir. mas em libertar – assim foi com os meus três filhos. e também nós pusemos de parte a nossa vida para que nada lhes faltasse. vivemos a escolaridade deles com muito sacrifício. mas também com muito orgulho pelo que alcançaram – merecemos a nossa família. honrámo-la tanto quanto nos foi possível. e hoje. vivemos este último matrimónio com a sensação de dever cumprido – cedo percebi que o meu desígnio nesta minha passagem terrena era ser pai. adoro ser pai. e tenho a certeza de que será a minha única obra que permanecerá para além do túmulo – hoje já quase não os consigo recordá-los. primeiro como recém-nascidos. depois crianças e adolescentes – a memória controla-nos os desejos. e se o meu foi que eles nunca dependessem de nós. ela castigou-me. resumiu tudo a duas linhas. e o que guarda agora são os homens que criei: bons. honrados. trabalhadores. e para dois filhos. excelentes pais e maridos – assim se cumprirá com o joão antónio – durante este último ano fartei-me de brincar com o meu filho dizendo-lhe que já faltava pouco para sair de casa. ou para que finalmente voltássemos a ter sossego. paz – mas a verdade. é que é este casamento que mais me está a custar viver. não será fácil entrar em casa e saber que ninguém nos espera. que não haverá mais ninguém a fazer-nos companhia no descanso. ou mesmo poder chamar pelo seu nome e ouvir: dá-me cinco minutos – eu e a mãe estamos um pouco perdidos. agachados um no outro. sabendo agora que só nos teremos a nós os dois – bem sei que os filhos são para toda a vida. e os medos que aprendemos a silenciar. continuarão silenciados. mas presentes. estão encrostados na carne. saber que está tudo bem é e será sempre a nossa paz – por isso estamos felizes com a sua felicidade. pois apenas assim faz sentido. sem a sua felicidade. dos três filhos. a nossa vida não faria sentido – três irmãos que se adoram. respeitam as diferenças. amigos. cúmplices. com três noras que os completam. e tudo isto numa harmonia celestial. quando juntos a nossa casa parece um conto de fadas – construímos este lar com muito sacrifício. com muitas noites sem dormir. em terror e em lágrimas. que eu e a mãe segurámos um ao outro. mas se voltássemos atrás. se o mundo tivesse marcha-atrás. faríamos tudo na mesma. colocaríamos cada pedra no mesmo lugar – nós estaremos sempre aqui. no lugar onde os críamos. viveremos as suas alegrias. e pediremos ao universo que lhes dê tudo o que merecem – essa será a nossa maior recompensa – nós recomeçaremos de novo. viveremos agora um para outro. sabendo que as noites encontrarão silêncio mais cedo. e que as únicas falas serão as nossas – também não será difícil. os meus filhos sabem que amo a sua mãe. desde os seus quinze anos. eles não poderiam ter uma mãe mais bonita. que sempre foi a deusa encantada dos filhos e. agora. dos netos – não há forma de não gostarem da minha maria joão – mérito meu que soube escolher. talvez o meu maior feito – foi assim que começou a minha epopeia – o que peço ao meu filho é que ame a sua mulher até a exaustão. e que nos dias mais encobertos que nunca desista da sua companheira. que fale sem nunca se calar. que nunca durma uma única noite ofendido sem a perdoar. ou sem se perdoar. que adormeça de mão dada. e mesmo quando dormir. que lhe diga ao ouvido que é o amor da sua vida – o casamento é uma estrada. e só o casal a pode construir. colocar todos os dias uma pedra. pequena ou grande. mesmo sem sentir no momento que cresce. um dia. quando olhar para trás. não verá o princípio. mas saberá que é a sua estrada. e em cada pedra verá um ato de amor. de partilha. de comunhão. de companheirismo. e poderá também ele dizer. esta é a minha única obra. a que me honrará. a que permanecerá para além do túmulo – espero que o dia seja abençoado. sagrado. para sempre. nós somos homens de uma única mulher. assim foi com os vossos avós. assim foi com os vossos pais. e sei. que assim continuará – gostava muito que o avô e a avó estivessem presentes. quem sabe os desígnios do universo – de alguma forma estarão. levaremos dentro de nós o estandarte da família. que agora será apenas vosso

 

bênção

filho meu – hoje deixas a nossa casa para construir a tua – não partimos contigo mas caminhamos ao teu lado – o teu caminho é sagrado e só a ti e à tua companheira pertence – ser pai foi a minha maior obra – e agora a minha herança é ver-te marido – peço-te apenas que ames a tua mulher até à exaustão – que nunca te deites ofendido sem perdoar ou ser perdoado – que adormeças de mão dada – que mesmo dormindo lhe digas ao ouvido: és o amor da minha vida – o casamento é uma estrada – pedra a pedra se constrói – cada gesto pequeno é amor – cada partilha é comunhão – quando olhares para trás não verás o princípio – mas reconhecerás a vossa obra – e ela será eterna – somos homens de uma única mulher – assim foram os teus avós – assim fomos nós – assim serás tu – que o universo vos abençoe – hoje e sempre