lídia póvoa
1.
5 de agosto.
o teu dia. todos têm um dia para nascer. apenas um. tu nasceste quando minguam
os dias. ao contrário. em mim os dias nunca param de crescer. nasci numa
primavera tua – o calor de agosto é único.
sufoca no pico do sol. mas com o cair da noite. desdobro o primeiro casaquinho
de lã. agasalho-me na primeira pele. encolho a face. guardo metade dos
sorrisos. arrumo o corpo a favor do vento e caminho devagar ao encontro do
tempo orvalhado – a melancolia dos dias pequenos está para chegar – quando
agosto acaba. setembro surge sempre a
correr. a primeira humidade toca nos ossos. a solidão começa a substituir as
pessoas. e as palavras quentes acabam por desaparecer – os dias escurecem mais
cedo. e o corpo recupera a memória. precisa de sombra. de silêncio. de solidão.
de cadeira. de borralho. de encostar o corpo aos olhos. e rever tudo de novo. reencontrando
noutro nas recordações perdidas um outro tempo – nada pode ficar para trás.
nada pode ficar esquecido para sempre – um dia. sem que o corpo reconheça
emoção. quando a chuva se fizer ouvir nas telhas de vidro. levo-o à janela.
descubro mais um natal. sei-o porque as casas estão enfeitadas com lâmpadas às
cores. desejam boas-festas num ritmo cadenciado. apagam e acendem as luzes – também
tenho uma memória assim. que se acende e
se apaga ao ritmo da saudade. só não tem luz às cores. tem abraços apertados
que ficaram perdidos em fotos a preto e branco – envelheço por cada natal . envelheço por
cada agosto. envelheço ancorado a um passado de palavras por dizer – o meu passado
sempre foi agosto e natal. agora é mutilação. é ausência. é palavra cortada ao
meio. é história sem fim – só a morte voltará a alinhar os corpos lado a lado.
os nossos lados
2.
mas hoje
é 5 de agosto. e todos os 5 de agosto são frios. ainda que o orvalho não tenha
força para gelar o coração – hoje é o teu aniversário de nascimento – um pai tem
sempre aniversário. mesmo depois de partir. quando as palavras e as velas com
números já não iluminam. não há sopro. nem abraço. nem beijo – parabéns pai – hoje não há velas. nem bolo para
as segurar de pé. nem as bocas que ensinaste a rir e que neste dia gritavam:
parabéns. por muitos anos – hoje há saudade. há memória do bolo cortado em mil
pedaços. dizendo que a vida é feita de migalhas – no canto do prato de vidro
rendilhado. retirado da vitrina de cristais para dias especiais. as velas
deitadas. apagadas para sempre. com os números tombados ao acaso – números. uns
fizeram tempo. outros. nunca o farão – imagino como seria se ainda hoje tivesses
aqui os olhos feitos de fé. se vestisses aquele polo azul de manga curta. com uma
risquinha branca no colarinho. e repetisses aquele tique de mastigar com a boca
vazia. as mãos arrumadas à calça vincada. e o corpo a rir com a crença de que
no próximo ano. com a graça de deus. o sopro apagaria mais um número – os
números fugiram contigo e agosto ficou ali. para sempre parado – foram as últimas
velas acesas. para o teu último sopro – nesse ano. já não reconhecias os
números e o sopro já não foi teu. foi nosso. fomos nós que apagamos o teu último
tempo – as velas cumpriram o seu objetivo. iluminaram o momento. as últimas migalhas
da vida – cumpriram o destino – tu também cumpriste o teu destino [e eu
acredito no destino]. nasceste para ser doce. cor. alegria. bondade. nasceste
para ser pai de família – muitas vezes. estupidamente. exigia-te mais.
queria-te diferente. talvez menos açucarado. menos colorido. menos bondoso.
menos gesto. menos dos outros e mais meu – mas tu nasceste algodão. algodão-doce
– hoje. quando vou a uma romaria procuro sempre o homem do algodão doce. descubro
um recanto vazio. fecho os olhos e espreito o passado. e lá estás tu. sempre
enorme. e eu a teu lado sempre pequeno – o tempo não mata a saudade – sei que
já não te lembras desse dia. mas estavas feliz. como sempre parecias estar.
afinal. era das tuas mãos que nascia algodão – depois partimos de mão dada. e
passo a passo. cortávamos a multidão ao meio – tu e eu num silêncio-festa. sorríamos
felizes. eu levava aquele pauzinho. com o algodão colado à mão para sempre. e
tu levavas ao futuro a minha mão – hoje
é 5 de agosto. tomara que te lembres deste dia de algodão. acredito que sim – afinal
estás num sítio onde a memória é eterna
3.
agosto. 5
de agosto e o verão continua a tombar para norte. só as noites sabem que mais dia. menos dia. todas
as folhas serão chão. e o verde será castanho-ouro. e a chuva cairá devagarinho
para lavar as feridas deixadas pelo tempo alegre – não há verões como antes – nos
dias quentes. busco refúgio nas memórias da praia para aliviar o corpo da
aflição – volto ao passado: a praia. os gelados olá com as miniaturas
escondidas dos heróis da banda desenhada. o homem de branco a gritar: olha o
pãozinho de leite. o furo na caixa dos chocolates regina com bolas coloridas. as
barracas listadas de azul e branco fechadas a norte. os para-ventos alinhados
ao mar. os corpos deitados em toalhas coloridas. com as cabeças serenas viradas
a sul. e eu ali. enchendo o areal com vida. a sorrir. com a maré a ir e a vir –
no passeio alegre os altifalantes acompanham com música o sorriso dos
veraneantes. sempre com sugestões comerciais. especialmente para os escaldões. hidratar
a pele é essencial. e para isso. nada melhor do que um boião de nívea – no ar. a
bandeira verde sorri. sinónimo de banhos. o que me aborrecia eram as horas
perdidas na digestão das almoçaradas de uma mãe teimosa. insistia em dizer que
o ar do mar puxava corpo. tinha que comer – coisas do iodo que só havia nas
praias do norte – valiam os novos amigos de verão. na partilha do relógio
tartaruga. os minutos arrastavam-se lentamente até às cinco horas da tarde.
hora do mergulho – no último mergulho. já sem o calor do sol. a água gélida
cortava os ossos. os dentes rangiam. a pele enrugava. e o bronzeado tornava-se
azul – saía da água como um náufrago sai da tempestade. esgotado com os braços
pendurados aos ombros. arrastava-me pelo areal como um zombie – no cimo. de
toalha na mão. a minha mãe esperava a felicidade dos meus olhos. e o calor cercava
o corpo com braços quentes a rabujar: “estás gelado. já te tinha dito que
saísses da água. se ficares doente quero ver como vai ser” – era assim que se
era feliz – com a noite o banho quente arremessava-me para a cama. cansado.
quase morto. adormecia ao som da sarronca. sinal de mau tempo no mar – mas eu
estava em terra. feliz. aconchegado aos cobertores. imaginava o próximo dia e
adormecia com a certeza de que a manhã traria um novo raio de sol – mas agora o
agosto é março. e o sol não é o mesmo. nem a praia. nem há corpo a brincar no
areal. a saudade apagou todos os agostos – naquele dia sem data [nenhuma data
importa quando alguém parte para sempre] tu partiste. sabias que era uma partida
definitiva. nós também – sabíamos que agosto nunca mais voltaria. o calor seria
sempre uma memória de março. saudade. dor. perda – noite. na casa que era nossa.
havia lágrimas escondidas em todos os cantos. cada uma tombavam de forma diferente.
e o barulho não parava de magoar – os corpos dobravam-se sobre si. talvez para
o chão ficar mais perto. e as lágrimas demorarem menos a fugir da dor – desesperado.
pedia que deixassem de ser barulho. de ser barulho-dor. não podíamos continuar
a chorar como se já não houvesse corpo para beijar – não merecíamos esta dor –
esta dor vinha de tão longe. ao princípio. nem demos conta. mas depois cresceu.
e por último. já não cabia nos nossos corpos –
estávamos todos a morrer há tanto tempo. e o sofrimento sempre a agigantar-se.
e os olhos a cair. com as mãos rasas de força – já não tinhas energia para te amarrares
à vida – noite. noite escura. e eu ali. sem poder dobrar o corpo. sem poder chorar.
sem poder interromper a dor daqueles que seriam vida no dia seguinte – apesar
da dor-luto. dentro dos corpos magoados. ainda éramos uma família – a minha mãe
de olhos pretos. não chorava. agonizava em água. afogava-se. e eu. sem encontrar
um abraço com palavras que aliviasse a dor – eu sabia que. naquela hora. nenhum
abraço consola. nenhum abraço adia a partida. nenhum abraço alivia a dor.
nenhum abraço mata o luto – naquela noite era preciso gritar. precisávamos de gritar.
gritar alto. gritar para sobreviver ao adeus. como se a dor diminuísse com a
força dos soluços – sabes pai. eu não queria chorar por ti à frente de tanta
gente. não podia. queria ser como tu. forte. a tua vida não podia acabar em
lágrimas. há tanto para dizer. a dor não me podia roubar a memória – nessa
noite. prometi que seria forte. como tu. e terias paz. partirias. finalmente.
para um lugar que te merecesse – orgulhoso de ti. aconchego o nó da gravata. sacudo
o pó dos sapatos. aprumo o corpo e digo: a minha família é esta que te chora –
o corpo escurecia com a noite. e o passado chamava cada vez mais por nós – não
posso chorar. um dia saberei encontrar o momento certo para o fazer. hoje. não
posso. a mamã precisa de sossegar. os irmãos. de reaverem o sossego. a ua.
diminuitivo de lourdes. de retomar as orações. e os netos. aceitar a vida assim
como é – não quero chorar. alguém tem de estar com a face limpa – sabes. pai. importante
agora é saber que. depois do beijo. a mãe. a matriarca da tua casa. recobre a força
para continuar a agasalhar o teu lugar. o teu perfume. o teu andar. a tua voz. a
tua gaveta das meias. as tuas gravatas com nódoas que nunca reparavas. as tuas fotos
penduradas – estou em agosto. e esta noite de março não tem fim. e eu sem saber
o que fazer com a primavera que sempre chega por estes dias – talvez a culpa
seja da escrita. das palavras. que nunca dizem exatamente o que sinto. ou talvez
seja desta mania que tenho de pensar. passei a vida toda a pensar. penso por
tudo e por nada. e nunca chego a lado nenhum – sabes. pai. ando perdido com o
corpo às costas desde sempre. e não sei o que fazer para te dizer que gostava
de ter mais boca. mas não tenho. só a uso para dizer coisas que nunca dizem
nada. e os sentimentos. estes que me definham por dentro. nunca se chegam aos
lábios – malditos sejam – mas está sossegado que não vou chorar. boca que não
sabe falar. também não sabe soluçar
4.
agosto – 5 de “agosto toda a fruta
tem o seu gosto” – neste dia há luto de um tempo cruel – agosto guarda a despedida
como se o ontem sobrevivesse ainda dentro do hoje – o relógio não para. e o
tempo envelhece. os olhos veem ainda o corpo quase quente. e as mãos trémulas a
encobrir meio defunto – o tule branco aconchega a fazenda que cobre os ossos
partidos pelo homem vestido de preto. disfarça marcas de dor. e recebe flores
como se existisse primavera – há tão pouco de ti. a doença comeu-te. restam apenas
pequenos traços teus. pendurada no lábio. a última palavra sem som. morta como
tu pelo tamanho da dor – no canto dos olhos. lágrimas feitas pedra. guardam o
dia em que te vi chorar pela última vez. imaginei que chorasses por mãos doces que
te amparavam. mas não. choravas o adeus – sabes pai. tenho medo que um dia me
roubem a memória. não quero perder o passado. quero os agostos com nome. com
dor. com saudade – no meu agosto quero recordar o último momento. sentir o corpo
dobrar sobre ti. o beijo a cair. e um nunca mais nos nossos olhos. os teus.
fechados – quero guardar o barulho do encontro das portas a selar a escuridão.
a chave a rodar e a sombra do sol caída no chão para sempre. o nunca mais feito
buraco – nunca me tinhas dito que havia chaves só para fechar – sabes. pai. fui
eu que guardei a chave. essa que nunca dá para abrir. nunca mais quero outra. ainda não encontrei lugar para a sossegar. pousei-a no móvel da entrada. quem sabe para
alguma emergência – acabou. a partida era a tua. nossa libertação – acabou.
agora não morres mais – os gritos passaram a descanso. o peito guardou o último
ar e os olhos partiram para sempre da aflição dos que te viam – acabou. agora não
mais levantarás esse braço doente a pedir socorro – acabou. morreu contigo essa
dor que não parava de crescer. todos os dias ficava maior e tu todos os dias
mais pequeno. definhavas. escondias-te atrás das almofadas. escudos contra as
escaras – acabou. já não há mais dor a entrar e a sair do quarto. já não há mais
sofrimento nesse corpo encolhido –
acabou. pai. bem sei que estavas só há muito tempo. os olhos já não guardavam a
nossa voz. já não viam as palavras sussurradas. nem sentiam as festinhas feitas
com a palma da mão – tudo era feito devagarinho. tínhamos medo de te magoar. nunca
sabíamos se estavas a dormir ou apenas a enganar a dor – estávamos ao teu lado
e não tínhamos forma de te dizer. sempre estivemos. nunca te abandonamos. todos
– bem sei que partiste dentro daquela casa enorme. branca. com pessoas vestidas
de branco. luzes brancas e as janelas fechadas. como se tu ainda pudesses sair
a voar com uma das minhas gaivotas – tu já não querias voar. não podias.
estavas cansado e o corpo já não tinha forma de se atirar ao vento – queríamos
todos mais um dia. estávamos obcecados. perdidos no desespero. egoístas. e
foste sem uma mão que te segurasse o último suspiro – perdoa-nos pai. mas nós também
estávamos doentes – não devias ter descido à terra no nosso dia [dia do pai].
mais dois dias e chegava a primavera. e as andorinhas. e o verde. e a esperança
das flores a dar cor aos campos que ainda ontem eram terra escura – se eu tivesse
envelhecido mais depressa pai. se eu tivesse sido um pouco mais sábio. tinhas
partido da tua casa. abraçado aos teus. que somos tantos – mas não foi assim.
partiste sozinho. e agora nunca saberei se chamaste por alguém – tínhamos ainda
tanto para partilhar. finalmente. eu estava a envelhecer mais depressa do que
tu. mas não esperaste por mim. desististe. e eu. com as palavras presas ao
tempo que não aproveitei – sabes. tenho medo do tempo. nunca tinha ouvido o
nome de alzheimer. nem sabia que roubava os filhos aos pais. os dias ao tempo.
as mãos aos abraços. a boca aos sorrisos
– tenho medo. tenho muito medo. não quero este nome nunca mais no futuro. não quero
ver o negro nos olhos dos teus netos. e eles estão enormes. se visses como
cresceram. se visses como eles têm tanta coisa nossa. tua. porque o que eu
tenho é teu e por isso tudo o que temos é teu – ah. se tu um dia encontrasses
uma forma de dizer que estás a vê-los crescer. eu ficaria contente. ficaria mais
tranquilo – sei que onde estás só acontecem coisas boas. talvez encontres uma
maneira de me dizer que ainda ocupas a tua cadeira naquela mesa feita de pão e
sorrisos – nessa noite de março. não podia chorar onde todos choravam – nessa
noite fiquei homem. como nunca tinha imaginado poder sê-lo de um momento para o
outro – sabes. li ainda há pouco tempo num livro de lobo antunes que um homem
só se torna verdadeiramente num homem depois de perder o pai – é verdade.
naquela noite percebi que uma família é feita de homens de família e estas
nunca acabam com as partidas dos homens – hoje somos todos cada vez mais tu –
nesta casa já tens netos que brevemente serão homens – nesse dia voltaremos a
falar. tenho comigo um montão de coisas guardadas para te levar. vai ser uma
conversa e tanto
5.
nesta casa
lágrimas não sossegam as horas e os corpos deambulam sem saber como esconder a
dor – fugi. passo a passo desci pelas escadas que sempre fiz a correr – porquê
correr se o tempo está parado – abro a porta de madeira pesada. pintada de
vermelho bem-estar. tão antiga como eu. os vidros protegidos por ferro forjado.
mantêm-se em harmonia com o tempo passado. resguardam o interior com curvas e contracurvas apertadas – num dos
vidros um postigo. abro-o de tempos a tempos. espreito o mundo – noite cerrada.
caio na rua que sempre foi minha. não há vida no passeio das pessoas. nem carros
a ziguezaguear – na rua que me viu crescer não há nada. nem tristeza. nem dor.
nem lágrimas. nem flores enroladas em círculo. tudo está como ontem. silencioso.
até o vento corre em bicos de pés para não ser barulho – o silêncio é cada vez mais silêncio – as casas
paradas de persianas fechadas anunciam recolha. talvez os vizinhos tenham
resolvido morrer um bocadinho por ti. reconfortados nos seus sofás. isolados na
dor. revivem os sorrisos com que davas bons dias. dobravas sempre o corpo em forma
de vénia – havia alegria nos teus bons dias – bom dia sr. manuel. como está – e
o sol caminhando para a vertical – também eu deambulo de um lado para o outro.
olho o céu. a estrela polar mudou-se para trás da casa – ao cimo da rua a cassiopeia.
perdida nos seus esses habituais – resistem os candeeiros de luz a cair
devagarinho em chão desenhado por pedras coloridas – hoje a luz é diferente. está
ali unicamente para esconder as sombras. não quer iluminar amargura. escutou a
dor do outro lado da porta. sabe que o corpo está cansado e as lágrimas presas por
um fio – olho o tempo no meio de nada. cigarro na mão. a cinza cai pela força da gravidade. e a
nicotina amarela-me as memórias – tudo parece que já foi há tanto tempo – sento-me
no meu carro. os assentos vazios. motor
parado. o limpa para-brisas estático. luzes apagadas. o pé no travão e a vida
engrenada em marcha atrás – as mãos amarradas ao volante equilibram o corpo em
curvas feitas de dor. conta-quilómetros a zero – sufoco. o peito encolhe. os olhos incham. a
boca treme. o corpo vacila. o coração bate nos ouvidos e o desespero atinge as defesas
de quem tinha prometido não chorar – não sei o que fazer. não há espaço entre mim
e o volante para dobrar o corpo. só posso olhar em frente – estou desesperado. destroçado. devastado.
com toda a força amarro o volante – a noite não abranda a dor. sei que estamos
sozinhos. eu no carro perdido entre beatas e tu numa sala escura. sem deus. sem
santos. sem nenhum bater de coração – não acredito em mais nada. não há deus capaz
de me convencer que as partidas fazem parte da vida. que a dor purifica o homem.
e todo o filho tem que sofrer como deus sofreu pelo seu. não acredito neste
deus – desespero brutal – não quero
continuar em silêncio . ligo o rádio. ouço
aquela que será para sempre a nossa música. “spiritual”. charlie haden &
pat metheny. e os gritos aparecem com lágrimas. eu e a música gememos sem tempo
– a dor afinal também pode ter melodia – e o que ainda ontem era vida descansa agora
dentro de quatro tábuas. à espera de um último beijo – um sermão. quatro
lampejos de água benta. uma benção a deus. beijo. um cortejo. a chave. com uma pá de terra tudo para sempre acaba –
vivemos para sofrer e fazer sofrer – dentro do carro a noite e a dor têm agora
melodia. aqui guardarei todo o meu luto
– sinto-me em paz. entre recordações e música – as notas musicais voam como
borboletas. é tudo tão suave. tão doce. tão algodão e os gritos meros sopros
que mantêm as borboletas a dançar – esta música foi inventada para os corpos
partirem serenos – todas as despedidas são menos dolorosas com música. com o contrabaixo
nascem borboletas – os instrumentos choram comigo. o corpo cambaleia desesperado.
braços rompem aos murros o volante que já não me guia para lado nenhum. e
grito. grito. grito. insulto deus. insulto o universo. os santos e os médicos.
eu. insulto-me. também andava noutro mundo quando a doença destruía a tua vida
pai. comeram-te o último olhar – queria tanto um adeus. um abraço e agora não
resta nada. só o corpo de olhos fechados. nenhuma fotografia minha dentro – choro. dor. desespero. raiva e o corpo sem
força para resistir à promessa de encontrar o dia certo para chorar – também já
não temo a morte. não cumpri a palavra. não devia chorar no dia em que as dores
acabaram para ti. para nós – as borboletas só aparecem na primavera e ainda
faltam quatro dias – choro. os olhos a gritar. os gemidos abafam o bater do
coração – estou esgotado – choro. esta música será minha para sempre. é nosso
pai. é uma música feita para fazer nascer borboletas. de todas as cores.
livres. a engolir vento para rodopiar de alegria por terem nascido belas. um
dia também quero ser assim. livre. a dançar de alegria por ter nascido em ti –
choro. a música. cada vez mais música. a dor. cada vez mais dor – as lágrimas continuam
a cair pelas primaveras passadas. e choram os pássaros. as flores. o mar. a
floresta. o cheiro. os abraços. os animais. as estrelas. as nuvens. as
borboletas. o que continua a nascer nos olhos. choro a vida. choro também eu. porque
vivi o suficiente para te ter para sempre dentro de mim. choro porque me
ensinaste a ver borboletas. até nas noites de luto – esta é a minha rua. para sempre. a minha
casa. para sempre. e para sempre haverá uma família que chora – um dia choramos
saudade. outro dia. choramos recordações – choro. hoje choro eu. amanhã os meus
filhos – devem ser os filhos a chorar os pais. basta aprenderem a encontrar
borboletas – deus me ajude
epílogo
escondo-me. apago-me.
disfarço-me. calo-me. exteriormente encubro estes lados-nossos – o tempo passa.
e estes lados-nossos desconhecem o tempo. feito relógio – tudo desapareceu velozmente
– um dia era criança noutro outono – mas a boca inventou papel. palavra. poesia.
prosa. a ampulheta marca um novo tempo – agora sei o que falta dizer – se soubesse
escrever palavras aprumadas. mesmo acanhadas. seriam gigantescas. diriam tudo.
e o silêncio seria abril e agosto cálido. e os lábios livres suspirariam
largueza para um novo desejo: falar sem medo – mas não sei dizer tudo o que
penso. o que sinto. o que faz de mim um dos: lados-nossos – não basta saber o
que falta dizer – sobra o restauro do tempo estragado em forma de texto – tu
sabias deste meu lado silencioso – o trabalho fez-me barulhento. agitado.
determinado. ousado. e a vontade de conquistar afeição juntou-nos nas diferenças
– havia tanta história de antepassados na tua boca. tanto orgulho. e eu tão
longe de ser um dos nossos – tu querias
viver. eu queria vencer – agora é tarde. e as palavras que escrevo são prosas
que nunca tiveram ouvidos – este silêncio maldito – o trabalho roubou-nos a
linhagem – somos o que somos e já somos assim desde outro tempo. somos gerações
que caminham com serenidade pelo tempo – mas a boca teima em continuar fechada
e o sofrer não reconhece o corpo que carrega palavras agrilhoadas – para este
silêncio não há vida na boca – no dia da terra preta. a que te protege na tua
casa eterna. regressei a casa feliz. sabia que finalmente tinhas encontrado paz
– também eu agora procuro paz. gostava de a encontrar em vida. não acredito. há
coisas que são nossas. e nós nunca saberemos encontrar o que só aos outros
pertence. estes lados-nossos. não nos deixam – descansar seria deixar de pensar
–pela primeira vez em muito tempo não haverá dor em casa. e a saudade ainda é fado.
música que trauteio entre a dor de ontem e o sorriso que levo dentro de mim. tão
desconhecido – sinto sossego. por ti. por mim. pela mãe. por todos aqueles que
te amavam – mas o tempo passou e a dor chegou. não imaginava que viesse tão
depressa e as lágrimas-chumbo penduram-se no corpo – chegou o sétimo dia. o
mês. o meu aniversário. o teu. o da mãe e por fim o natal e os anos a repetir
sempre os mesmos dias – nada é como antigamente. nunca nada será igual. o mundo
é diferente. eu sou diferente. estou velho. conheço a cor da morte. conheço os
dias por onde andavas – a minha tarefa está quase acabada. os teus netos já
sabem destes lados-nossos. não mais terei de te escrever – nesse dia. nesse dia
de sol. de sossego. de paz. em que deixarei de pensar. a boca não será
importante. serei só silêncio-paz – partirei sem palavras por escrever – deve
ser bom saber que nada mais há para escrever – será bom. eu sem medo