.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

27/08/2012

o verbo e o profano



albert samuel anker


e que faço agora com o teu pedido. não é justo. mas não é mesmo.  sempre a embaraçar a vida do corpo que gosta de escrever – e eu perdido nesta escrita maluca. coberto por roupa esfarrapada – ainda sou um emaranhado de coisas que nem sei se existem – às vezes não sei ler. outras. não sei escrever. e também não sei ouvir. fico perdido de mim – quando me encontro. vejo-me a contemplar o que já passou. digo: imagino porque não sei por onde me perdi – o tempo é uma coisa estranha. andamos sempre encravados nas suas roldanas. mas no alinhar dos ponteiros. na hora de todas as verdades. percebemos que a carne foi comida. e os ossos estão presos por um fio. cobertos por uma pele enrugada. engelhada. encarquilhada – é o desânimo. o corpo cai no silêncio. e o desespero é agora uma folha de jornal de um ano que já não temos em memória. as novidades são velhas. desfeitas pelo tempo. e as palavras outrora lustrosas. esmorecem sob os ultravioletas. algumas rasgadas. digo: mortas para sempre. e quando queremos relembrar um pedacinho de uma história. é tarde. desapareceu no tempo. para sempre – o desespero de nada serve. o desaparecimento de palavras não tem remédio. resta a resignação – paramos então pela primeira vez no tempo certo. o tempo da meditação. da reflexão. arrastamos o certo à coluna da direita e o errado à coluna da esquerda. o deve e o haver. e as contas são agora feitas com a ajuda dos dedos: e vai um. e vai nove. e vão sete. e vão sete e tira um. e tira nove. e tira dois. e tira três. e a verdade do tempo gasto aparece sem magia. cru. e sem necessitar da prova dos nove – agora só me resta fazer um acordo de cavalheiros com o tempo. amarrar nas recordações. ano por ano. uma a uma. sem pressa. sem prazo. e voltar a descobrir tudo com um novo olhar. um novo toque de sensibilidade. com um pouco mais de sabedoria. a exigir responsabilidade ao tino. para finalmente restaurar o que restou das memórias perdidas – calmamente. reconstruimos as cores. as palavras perdidas. os abraços esquecidos. os afetos. os cheiros. os lugares. e os olhos pregados ao presente preparam o futuro com cautela. voltam finalmente a dizer coisas em silêncio. e o tempo deixa então de ser tempo humano. onde tudo é inexplicável à luz da física. e tudo é agora presente presente. e o tom da pele. a voz. o riso e até os nomes voltam a fazer sentido. e o farol acesso. e o caminho é a ponta do dedo a dizer: sou dali. dali mesmo. onde tudo se explica pelo amor – é possível restaurar pedaços de tempo. recuperar parte do que perdemos. mas nunca voltará a ser como foi. como com a gata borralheira. à décima segunda badalada a carruagem volta a ser abóbora. e o sapato de vidro perdido na correria do tempo nunca mais encontrará o seu pé – demoramos anos a carregar coisas para dentro de nós. e o corpo a abarrotar de saber. de sobranceria. de vaidade. de palavras. de tanta bugiganga que sabiamente encaixamos em espaços ínfimos. e tudo é ouro. e tudo é valor. e tudo nos pertence eternamente – esta é a maior mentira. crueldade do tempo. que no dia certo faz questão de nos mostrar com dor como estamos errados. de um dia para o outro tudo é um vazio. um deserto onde o único sentimento que sobrevive é o nosso arrependimento – há partidas que nos deixam vazios para sempre. restam-me as palavras que ficaram por dizer. e são elas que ecoam no vazio do corpo – agora sei que ainda sou eu. sou uma luta contra o tempo e abrigo uma vontade enorme de um dia partir sem uma única palavra por dizer

 

nota de autor – “o que a Bíblia já sabia…” texto dedicado pela minha companheira vânia lopez ao meu texto “ainda sou” – em gratidão escrevi este meu texto / comentário – obrigado vânia pelo teu excelente e carinhoso poema – há entre nós uma estima que apenas o sagrado das palavras compreende

 

o que a Bíblia já sabia...

 

ah, se eu pudesse

desfronteirar o verbo e o profano

semicerrar os olhos no apocalipse

amansaria léguas de bem querer

de seus lábios que reclamam

e fazem crer em Deus novamente

 

ah, se eu pudesse

ensinar a memória das palavras

na rota da tua boca messalina

viver o tamanho de um isso

escondido no meio do ar

fazendo o violino cantar

até que dele possa tirar o último sorriso

 

ah, se eu tivesse

a sacra palavra

como hóstia na língua

confessaria em uma folha de papel

coisas esquecidas

 

falaria alto junto ao guia das ruas de São Paulo:

“Arrume todas as nossas coisas,

é hora “de fazer cumprir a lei”



vânia lopez


25/08/2012

chove feio



bia

a chuva e o frio entraram-me fundo no corpo – em frente. a janela. entregue a uma película de água escorregadia. deixa passar suavemente a noite feia. batida pelo vento – chove feio – não há forma de escapar a uma noite assim com uma chuva assim. ficamos então também feios. tornamo-nos inverno. as mãos gelam e o coração começa a bater em retirada para um agasalho tecido no silêncio – e todos aqueles que partiram regressam  – falta o pingo no nariz. as meias de lã. e aquele esfregar das mãos. uma e outra enrodilham-se. cruzam-se. esfregam-se. fazem calor. suportam-se e partem. cada uma para seu lado – retomo a escrita. acelero as palavras. e a fábula da cigarra e da formiga muda de forma – sempre gostei mais da cigarra. arteira. manhosa. astuta. esperta. atiçada. enfim. com todos os predicados para um dia contar as suas próprias memórias – então. para afastar a maldição das noites de verão feias. escrevi este desabafo noturno a que dei o nome de “chuva” – a minha interrogação é se o título não deveria ser “chove feio” – também eu me sentia feio e afundado na chuva

 

24/08/2012

chuva



leonid afremov


hoje. na minha cidade chove feio. tão feio que parece inverno – e eu imerso nesta chuva feia – a fortuna foi ter feito de cigarra. amealhei um pouco de sol quando era tempo – e a formiga cigarra? não sei. talvez esteja agora a juntar chuva para quando vier o sol - veremos. mas algo me diz que sim

 


salomão




nicolas poussin - julgamento de salomão


nada será igual – não tenho dúvidas de que o silêncio faz de mim alguém melhor – hoje. este silêncio. ao qual me habituei a ouvir. disse-me de forma crua o que já sabia: não há boas famílias sem grandes sacrifícios. não há bons filhos sem grandes sacrifícios. e não há amor sem grandes famílias e grandes filhos – saber escolher o mais certo. no momento certo. é capital – não basta inteligência. não basta ser melhor. não basta abraçar. não basta rir. não basta fingir que está tudo bem. não basta. é necessário que nos façamos acompanhar sempre de bom senso. juízo. siso. perdão. mas. acima de tudo. de gratidão –  ninguém pode ter o sol na eira e a chuva no naval. a vida não é uma festa diária. nem o telhado de um lar se estende sobre todo o mundo inteiro – em nossa casa. somos sete à mesa. sete pratos. sete copos. sete cadeiras – setembro está aí 



08/08/2012

e assim comecei a escrever




tolstoi por nicolai ghe


escrever foi a minha maior descoberta. tão importante como o fogo para o homem pré-histórico. para mim. reforço – a partir do momento em que comecei a escrever. ganhei voz. corpo. volume. e trouxe por fim algum descanso ao silêncio barulhento que habita comigo este pré-cadáver – no entanto. este ruído que só eu sei ouvir. não para de me lembrar que. por mais palavras inventadas. fabricadas. engendradas. este não silêncio terá sempre o seu lugar cativo no meu desespero. mesmo que eu teime em tornar a minha descoberta na solução de todos os males – bem sei que sou ainda egoísta. interesseiro. talvez até de mau carácter. pois escrevo sobretudo para mim – mas isto está a mudar aos poucos. um dia destes. acordo diferente. não sei se perdido ou encontrado. passarei a escrever tudo o que deslindo nos outros e não mais o que esta carcaça guarda – penso que isto não seja possível. mas. por agora. façamos de conta que sim – por isso digo para mim. escritor de meia tijela. escrever é um ato de desespero. em que a minha verdade se prende às palavras que chegam ao papel – escrever é fazer sobreviver um corpo muito para além de uns lábios que só sabiam beijar. dizer obrigado. nomear a alegria. ou simplesmente reconhecer presenças – confesso que gosto deste falar silencioso das palavras  – ainda não há terra à vista. mas o tempo corre sempre a favor dos náufragos. quanto mais tempo conseguir manter as palavras à tona da água. maior chance há de que estes textos sobreviverem ao seu autor 



06/08/2012

ainda sou




jean-michel folon



5 de agosto. tu. sentado nas traseiras da casa. na aldeia. rodeado de gente em dor – mais um aniversário passou sem vela acesa – nos ouvidos guardo o som do último beijo de parabéns que te dei – com os olhos desarrumados pelo tempo. tentei encontrar em ti um pedaço quente onde deixar o calor dos meus lábios. estavas gelado. perdido na escuridão do corpo e já não conhecias nada do que era teu – eu era teu. sou ainda – estávamos os dois dispersos. tu pela doença e eu a fingir que tudo era apenas um resfriado – as palavras trémulas já não remendavam a mentira com que cantámos esse feliz aniversário. com muitos anos de vida e muitos amigos – todos sabíamos que seria o último ano. menos tu. tinhas sido pilhado do saber – parabéns. pai. cantarei em silêncio sempre o teu dia até que também me pilhem as recordações que guardo de ti – às vezes imagino que chamas por mim – e eu vou. sem hesitar…



02/08/2012

carne. lembra-te que és mortal - I




     pintura de 1894 intitulada 'o cadáver',
exposta no museu alemão da higiene em dresden
– não me foi possível identificar o pintor

1.

este mundo não me larga e eu não sei o que fazer com tudo o que está dentro dele – acredito que a morte é a grande libertação do corpo. como diz hamlet: “a morte é um sono sem sonhos” – não há na morte nada de trágico. o destino certo de quem nasce é morrer – a morte é também descanso. serenidade. calma. silêncio. e eu sempre gostei do silêncio calmo – faz tempo que não tenho. nem onde deitar a cabeça. faz tempo que não tenho um sono inteiro – o que mais me aborrece na morte é que aparece quase sempre sem avisar. disfarçada de desastre ou doença. como se não houvesse outras formas de levar o corpo – não gosto deste formato de levar o corpo. soa-me a cobardia. deslealdade. traição. ninguém merece morrer assim. rápido. com o corpo em ferida – depois da voz morrer com o corpo. sei que já não será possível reclamar. protestar ou escrever um manifesto antimorte. falo apenas da morte covarde – protesto em vida. bem sei que já não é uma vida plena. uma daquelas vidas de forcado. com o barrete campino caído para sul. peito para fora. mãos na cinta. pés a arribar. enquanto os olhos emparelham com os gestos e a voz engrossada pela inconsciência desafia a morte. e os pés para trás e para a frente. e o peito a arfar de força. e as mãos a fazer ranger os ossos da cinta em sobrançaria. e o desafio sem contar o tempo por ter a certeza de que a morte só traz glória – mas o tempo passa. mesmo que no pulso a ampulheta seja agora uma pilha automática. capaz de fazer reverter qualquer pedaço de tempo que não seja real. e os ponteiros girem então em sentido contrário ao do relógio. e de repente. 2012 já não existe – estou na idade das trevas. acusado de bruxaria por ousar fazer desaparecer o medo da morte – o medo de todos aqueles que viveram tempo suficiente para desistir de rezar – enquanto a água benta tenta apagar o fogo que me consome a alma. grito bem alto. para que fique cravado no tempo que ainda há de chegar. que a morte é insolente. malcheirosa. víbora. ingrata. sim. ingrata. porque precisa de gente viva para poder sobreviver – só há morte porque há gente viva. e sendo assim. a morte deveria levar os corpos com dignidade. morrer de corpo são. sem dor. sem arrependimento. sem aquela sensação de que perdemos a vida e não somos também merecedores de uma morte justa – o direito à vida é também o direito à morte. porque a morte faz parte de a vida – viver deveria ter esta opção. principalmente quando percebemos que o que fazemos é já uma subtração ao que conseguimos somar – partiríamos então em paz e sem sermos banidos do céu. ou excomungados por uma sociedade que se limita. na maior parte das vezes. a ver morrer – deveria ser permitido que cada corpo escolhesse o dia da sua partida 


continua