31/08/2012
27/08/2012
o verbo e o profano
e que faço agora com o teu pedido. não é
justo. mas não é mesmo. sempre a embaraçar
a vida do corpo que gosta de escrever – e eu perdido nesta escrita maluca. coberto
por roupa esfarrapada – ainda sou um emaranhado de coisas que nem sei se
existem – às vezes não sei ler. outras. não sei escrever. e também não sei
ouvir. fico perdido de mim – quando me encontro. vejo-me a contemplar o que já
passou. digo: imagino porque não sei por onde me perdi – o tempo é uma coisa
estranha. andamos sempre encravados nas suas roldanas. mas no alinhar dos
ponteiros. na hora de todas as verdades. percebemos que a carne foi comida. e os
ossos estão presos por um fio. cobertos por uma pele enrugada. engelhada. encarquilhada
– é o desânimo. o corpo cai no silêncio. e o desespero é agora uma folha de
jornal de um ano que já não temos em memória. as novidades são velhas. desfeitas
pelo tempo. e as palavras outrora lustrosas. esmorecem sob os ultravioletas. algumas
rasgadas. digo: mortas para sempre. e quando queremos relembrar um pedacinho de
uma história. é tarde. desapareceu no tempo. para sempre – o desespero de nada
serve. o desaparecimento de palavras não tem remédio. resta a resignação –
paramos então pela primeira vez no tempo certo. o tempo da meditação. da
reflexão. arrastamos o certo à coluna da direita e o errado à coluna da
esquerda. o deve e o haver. e as contas são agora feitas com a ajuda dos dedos:
e vai um. e vai nove. e vão sete. e vão sete e tira um. e tira nove. e tira
dois. e tira três. e a verdade do tempo gasto aparece sem magia. cru. e sem necessitar
da prova dos nove – agora só me resta fazer um acordo de cavalheiros com o
tempo. amarrar nas recordações. ano por ano. uma a uma. sem pressa. sem prazo. e
voltar a descobrir tudo com um novo olhar. um novo toque de sensibilidade. com
um pouco mais de sabedoria. a exigir responsabilidade ao tino. para finalmente restaurar
o que restou das memórias perdidas – calmamente. reconstruimos as cores. as
palavras perdidas. os abraços esquecidos. os afetos. os cheiros. os lugares. e
os olhos pregados ao presente preparam o futuro com cautela. voltam finalmente a
dizer coisas em silêncio. e o tempo deixa então de ser tempo humano. onde tudo
é inexplicável à luz da física. e tudo é agora presente presente. e o tom da
pele. a voz. o riso e até os nomes voltam a fazer sentido. e o farol acesso. e
o caminho é a ponta do dedo a dizer: sou dali. dali mesmo. onde tudo se explica
pelo amor – é possível restaurar pedaços de tempo. recuperar parte do que
perdemos. mas nunca voltará a ser como foi. como com a gata borralheira. à
décima segunda badalada a carruagem volta a ser abóbora. e o sapato de vidro
perdido na correria do tempo nunca mais encontrará o seu pé – demoramos anos a
carregar coisas para dentro de nós. e o corpo a abarrotar de saber. de sobranceria.
de vaidade. de palavras. de tanta bugiganga que sabiamente encaixamos em
espaços ínfimos. e tudo é ouro. e tudo é valor. e tudo nos pertence eternamente
– esta é a maior mentira. crueldade do tempo. que no dia certo faz questão de nos
mostrar com dor como estamos errados. de um dia para o outro tudo é um vazio.
um deserto onde o único sentimento que sobrevive é o nosso arrependimento – há
partidas que nos deixam vazios para sempre. restam-me as palavras que ficaram
por dizer. e são elas que ecoam no vazio do corpo – agora sei que ainda sou eu.
sou uma luta contra o tempo e abrigo uma vontade enorme de um dia partir sem
uma única palavra por dizer
nota
de autor – “o que a Bíblia já sabia…” texto dedicado pela minha companheira
vânia lopez ao meu texto “ainda sou” – em gratidão escrevi este meu texto /
comentário – obrigado vânia pelo teu excelente e carinhoso poema – há entre nós
uma estima que apenas o sagrado das palavras compreende
o que a Bíblia já sabia...
ah, se eu pudesse
desfronteirar o verbo e o profano
semicerrar os olhos no apocalipse
amansaria léguas de bem querer
de seus lábios que reclamam
e fazem crer em Deus novamente
ah, se eu pudesse
ensinar a memória das palavras
na rota da tua boca messalina
viver o tamanho de um isso
escondido no meio do ar
fazendo o violino cantar
até que dele possa tirar o último
sorriso
ah, se eu tivesse
a sacra palavra
como hóstia na língua
confessaria em uma folha de papel
coisas esquecidas
falaria alto junto ao guia das ruas de
São Paulo:
“Arrume todas as nossas coisas,
é hora “de fazer cumprir a lei”
vânia lopez
25/08/2012
chove feio
a chuva e o frio entraram-me fundo no
corpo – em frente. a janela. entregue a uma película de água escorregadia. deixa
passar suavemente a noite feia. batida pelo vento – chove feio – não há forma
de escapar a uma noite assim com uma chuva assim. ficamos então também feios. tornamo-nos
inverno. as mãos gelam e o coração começa a bater em retirada para um agasalho
tecido no silêncio – e todos aqueles que partiram regressam – falta o pingo no nariz. as meias de lã. e
aquele esfregar das mãos. uma e outra enrodilham-se. cruzam-se. esfregam-se.
fazem calor. suportam-se e partem. cada uma para seu lado – retomo a escrita.
acelero as palavras. e a fábula da cigarra e da formiga muda de forma – sempre
gostei mais da cigarra. arteira. manhosa. astuta. esperta. atiçada. enfim. com
todos os predicados para um dia contar as suas próprias memórias – então. para
afastar a maldição das noites de verão feias. escrevi este desabafo noturno a
que dei o nome de “chuva” – a minha interrogação é se o título não deveria ser “chove
feio” – também eu me sentia feio e afundado na chuva
24/08/2012
chuva
hoje. na minha cidade chove feio. tão feio
que parece inverno – e eu imerso nesta chuva feia – a fortuna foi ter feito de cigarra.
amealhei um pouco de sol quando era tempo – e a formiga cigarra? não sei.
talvez esteja agora a juntar chuva para quando vier o sol - veremos. mas algo
me diz que sim
salomão
nada será igual – não tenho dúvidas de que
o silêncio faz de mim alguém melhor – hoje. este silêncio. ao qual me habituei
a ouvir. disse-me de forma crua o que já sabia: não há boas famílias sem
grandes sacrifícios. não há bons filhos sem grandes sacrifícios. e não há amor
sem grandes famílias e grandes filhos – saber escolher o mais certo. no momento
certo. é capital – não basta inteligência. não basta ser melhor. não basta abraçar.
não basta rir. não basta fingir que está tudo bem. não basta. é necessário que
nos façamos acompanhar sempre de bom senso. juízo. siso. perdão. mas. acima de
tudo. de gratidão – ninguém pode ter o
sol na eira e a chuva no naval. a vida não é uma festa diária. nem o telhado de
um lar se estende sobre todo o mundo inteiro – em nossa casa. somos sete à
mesa. sete pratos. sete copos. sete cadeiras – setembro está aí
08/08/2012
e assim comecei a escrever
escrever foi a minha maior descoberta. tão
importante como o fogo para o homem pré-histórico. para mim. reforço – a partir
do momento em que comecei a escrever. ganhei voz. corpo. volume. e trouxe por
fim algum descanso ao silêncio barulhento que habita comigo este pré-cadáver –
no entanto. este ruído que só eu sei ouvir. não para de me lembrar que. por
mais palavras inventadas. fabricadas. engendradas. este não silêncio terá
sempre o seu lugar cativo no meu desespero. mesmo que eu teime em tornar a
minha descoberta na solução de todos os males – bem sei que sou ainda egoísta.
interesseiro. talvez até de mau carácter. pois escrevo sobretudo para mim – mas
isto está a mudar aos poucos. um dia destes. acordo diferente. não sei se
perdido ou encontrado. passarei a escrever tudo o que deslindo nos outros e não
mais o que esta carcaça guarda – penso que isto não seja possível. mas. por
agora. façamos de conta que sim – por isso digo para mim. escritor de meia
tijela. escrever é um ato de desespero. em que a minha verdade se prende às
palavras que chegam ao papel – escrever é fazer sobreviver um corpo muito para
além de uns lábios que só sabiam beijar. dizer obrigado. nomear a alegria. ou
simplesmente reconhecer presenças – confesso que gosto deste falar silencioso
das palavras – ainda não há terra à
vista. mas o tempo corre sempre a favor dos náufragos. quanto mais tempo
conseguir manter as palavras à tona da água. maior chance há de que estes
textos sobreviverem ao seu autor
06/08/2012
ainda sou
5
de agosto. tu.
sentado nas traseiras da casa. na aldeia.
rodeado de gente em dor – mais um aniversário passou sem vela acesa – nos ouvidos
guardo o som do último beijo de parabéns que te dei – com os olhos desarrumados
pelo tempo. tentei encontrar em ti um pedaço quente
onde deixar o calor dos meus lábios. estavas gelado. perdido na escuridão do
corpo e já não conhecias nada do que era teu – eu era teu. sou ainda – estávamos
os dois dispersos. tu pela doença e eu a fingir que tudo era apenas um resfriado
– as palavras trémulas já não remendavam a mentira com que cantámos esse feliz
aniversário. com muitos anos de vida e muitos amigos – todos sabíamos que seria
o último ano. menos tu. tinhas sido pilhado do saber – parabéns. pai. cantarei
em silêncio sempre o teu dia até que também me pilhem as recordações que guardo
de ti – às vezes imagino que chamas por mim – e eu vou. sem hesitar…
03/08/2012
02/08/2012
carne. lembra-te que és mortal - I
exposta no museu alemão da higiene em dresden
– não me foi possível identificar o pintor
1.
este mundo não me larga e eu não sei o que
fazer com tudo o que está dentro dele – acredito que a morte é a grande
libertação do corpo. como diz hamlet: “a morte é um sono sem sonhos” – não há na
morte nada de trágico. o destino certo de quem nasce é morrer – a morte é
também descanso. serenidade. calma. silêncio. e eu sempre gostei do silêncio
calmo – faz tempo que não tenho. nem onde deitar a cabeça. faz tempo que não
tenho um sono inteiro – o que mais me aborrece na morte é que aparece quase
sempre sem avisar. disfarçada de desastre ou doença. como se não houvesse
outras formas de levar o corpo – não gosto deste formato de levar o corpo. soa-me
a cobardia. deslealdade. traição. ninguém merece morrer assim. rápido. com o
corpo em ferida – depois da voz morrer com o corpo. sei que já não será
possível reclamar. protestar ou escrever um manifesto antimorte. falo apenas da
morte covarde – protesto em vida. bem sei que já não é uma vida plena. uma daquelas
vidas de forcado. com o barrete campino caído para sul. peito para fora. mãos
na cinta. pés a arribar. enquanto os olhos emparelham com os gestos e a voz
engrossada pela inconsciência desafia a morte. e os pés para trás e para a
frente. e o peito a arfar de força. e as mãos a fazer ranger os ossos da cinta em
sobrançaria. e o desafio sem contar o tempo por ter a certeza de que a morte só
traz glória – mas o tempo passa. mesmo que no pulso a ampulheta seja agora uma
pilha automática. capaz de fazer reverter qualquer pedaço de tempo que não seja
real. e os ponteiros girem então em sentido contrário ao do relógio. e de
repente. 2012 já não existe – estou na idade das trevas. acusado de bruxaria
por ousar fazer desaparecer o medo da morte – o medo de todos aqueles que
viveram tempo suficiente para desistir de rezar – enquanto a água benta tenta
apagar o fogo que me consome a alma. grito bem alto. para que fique cravado no
tempo que ainda há de chegar. que a morte é insolente. malcheirosa. víbora. ingrata.
sim. ingrata. porque precisa de gente viva para poder sobreviver – só há morte
porque há gente viva. e sendo assim. a morte deveria levar os corpos com
dignidade. morrer de corpo são. sem dor. sem arrependimento. sem aquela
sensação de que perdemos a vida e não somos também merecedores de uma morte
justa – o direito à vida é também o direito à morte. porque a morte faz parte
de a vida – viver deveria ter esta opção. principalmente quando percebemos que
o que fazemos é já uma subtração ao que conseguimos somar – partiríamos então
em paz e sem sermos banidos do céu. ou excomungados por uma sociedade que se
limita. na maior parte das vezes. a ver morrer – deveria ser permitido que cada
corpo escolhesse o dia da sua partida