e que faço agora com o teu pedido. não é
justo. mas não é mesmo.  sempre a embaraçar
a vida do corpo que gosta de escrever – e eu perdido nesta escrita maluca. coberto
por roupa esfarrapada – ainda sou um emaranhado de coisas que nem sei se
existem – às vezes não sei ler. outras. não sei escrever. e também não sei
ouvir. fico perdido de mim – quando me encontro. vejo-me a contemplar o que já
passou. digo: imagino porque não sei por onde me perdi – o tempo é uma coisa
estranha. andamos sempre encravados nas suas roldanas. mas no alinhar dos
ponteiros. na hora de todas as verdades. percebemos que a carne foi comida. e os
ossos estão presos por um fio. cobertos por uma pele enrugada. engelhada. encarquilhada
– é o desânimo. o corpo cai no silêncio. e o desespero é agora uma folha de
jornal de um ano que já não temos em memória. as novidades são velhas. desfeitas
pelo tempo. e as palavras outrora lustrosas. esmorecem sob os ultravioletas. algumas
rasgadas. digo: mortas para sempre. e quando queremos relembrar um pedacinho de
uma história. é tarde. desapareceu no tempo. para sempre – o desespero de nada
serve. o desaparecimento de palavras não tem remédio. resta a resignação –
paramos então pela primeira vez no tempo certo. o tempo da meditação. da
reflexão. arrastamos o certo à coluna da direita e o errado à coluna da
esquerda. o deve e o haver. e as contas são agora feitas com a ajuda dos dedos:
e vai um. e vai nove. e vão sete. e vão sete e tira um. e tira nove. e tira
dois. e tira três. e a verdade do tempo gasto aparece sem magia. cru. e sem necessitar
da prova dos nove – agora só me resta fazer um acordo de cavalheiros com o
tempo. amarrar nas recordações. ano por ano. uma a uma. sem pressa. sem prazo. e
voltar a descobrir tudo com um novo olhar. um novo toque de sensibilidade. com
um pouco mais de sabedoria. a exigir responsabilidade ao tino. para finalmente restaurar
o que restou das memórias perdidas – calmamente. reconstruimos as cores. as
palavras perdidas. os abraços esquecidos. os afetos. os cheiros. os lugares. e
os olhos pregados ao presente preparam o futuro com cautela. voltam finalmente a
dizer coisas em silêncio. e o tempo deixa então de ser tempo humano. onde tudo
é inexplicável à luz da física. e tudo é agora presente presente. e o tom da
pele. a voz. o riso e até os nomes voltam a fazer sentido. e o farol acesso. e
o caminho é a ponta do dedo a dizer: sou dali. dali mesmo. onde tudo se explica
pelo amor – é possível restaurar pedaços de tempo. recuperar parte do que
perdemos. mas nunca voltará a ser como foi. como com a gata borralheira. à
décima segunda badalada a carruagem volta a ser abóbora. e o sapato de vidro
perdido na correria do tempo nunca mais encontrará o seu pé – demoramos anos a
carregar coisas para dentro de nós. e o corpo a abarrotar de saber. de sobranceria.
de vaidade. de palavras. de tanta bugiganga que sabiamente encaixamos em
espaços ínfimos. e tudo é ouro. e tudo é valor. e tudo nos pertence eternamente
– esta é a maior mentira. crueldade do tempo. que no dia certo faz questão de nos
mostrar com dor como estamos errados. de um dia para o outro tudo é um vazio.
um deserto onde o único sentimento que sobrevive é o nosso arrependimento – há
partidas que nos deixam vazios para sempre. restam-me as palavras que ficaram
por dizer. e são elas que ecoam no vazio do corpo – agora sei que ainda sou eu.
sou uma luta contra o tempo e abrigo uma vontade enorme de um dia partir sem
uma única palavra por dizer 
nota
de autor – “o que a Bíblia já sabia…” texto dedicado pela minha companheira
vânia lopez ao meu texto “ainda sou” – em gratidão escrevi este meu texto /
comentário – obrigado vânia pelo teu excelente e carinhoso poema – há entre nós
uma estima que apenas o sagrado das palavras compreende
o que a Bíblia já sabia...
ah, se eu pudesse
desfronteirar o verbo e o profano
semicerrar os olhos no apocalipse
amansaria léguas de bem querer
de seus lábios que reclamam
e fazem crer em Deus novamente
ah, se eu pudesse
ensinar a memória das palavras
na rota da tua boca messalina
viver o tamanho de um isso
escondido no meio do ar
fazendo o violino cantar
até que dele possa tirar o último
sorriso
ah, se eu tivesse
a sacra palavra
como hóstia na língua
confessaria em uma folha de papel
coisas esquecidas
falaria alto junto ao guia das ruas de
São Paulo:
“Arrume todas as nossas coisas,
é hora “de fazer cumprir a lei”
vânia lopez

 
 
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