.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

02/08/2012

carne. lembra-te que és mortal - I




     pintura de 1894 intitulada 'o cadáver',
exposta no museu alemão da higiene em dresden
– não me foi possível identificar o pintor

1.
este mundo não me larga e eu sem saber o que fazer com tudo o que está dentro dele – acredito na morte como grande libertação do corpo. como dizia hamlet: “a morte é um sono sem sonhos” – não há nela nada de trágico. o destino certo de quem nasce é morrer – a morte é também descanso. serenidade. calma. silêncio. sempre gostei do silêncio calmo – faz tempo que não tenho esse silêncio calmo. faz tempo que não tenho onde deitar a cabeça. faz tempo que não tenho um sono inteiro – há uma coisa na morte que me aborrece: aparece quase sempre sem avisar. disfarçada de desastre ou doença. como se não houvesse outras formas de levar o corpo – não gosto deste formato de levar o corpo. soa-me a cobardia. deslealdade. traição. ninguém merece morrer assim. rápido. ninguém merece morrer com o corpo em ferida. ninguém – depois da voz morta sei que já não será possível reclamar. protestar ou escrever um manifesto anti esta forma de morrer – protesto em vida. bem sei que já não é uma vida plena. uma vida de forcado. com o barrete campino caído para sul. peito para fora. mãos na cinta. pés a arribar. enquanto os olhos emparelham com os gestos e a voz engrossada pela inconsciência desafia a morte. e os pés para trás e para a frente. e o peito a arfar de força e as mãos a fazer ranger os ossos da cinta de sobrançaria. e o desafio sem contar o tempo por ter a certeza de que a morte só traz glória – mas o tempo passa. mesmo que no pulso a ampulheta seja agora uma pilha automática. capaz de fazer reverter qualquer pedaço de tempo que não seja real. e os ponteiros rodem então em sentido contrário ao do relógio e 2012 já não existe – estou na idade das trevas. acusado de bruxaria por fazer desaparecer o medo da morte de todos aqueles que viveram tempo suficiente para desistir de rezar – enquanto a água benta tenta apagar o fogo que me consome a alma. grito bem alto. para que fique cravado no tempo que ainda há de chegar. que a morte é insolente. mal cheirosa. víbora. ingrata. sim. ingrata. porque precisa de gente viva para poder sobreviver – só há morte porque há gente viva. e sendo assim. a morte deveria levar os corpos com dignidade. morrer de corpo são. sem dor. sem arrependimento. sem aquela sensação de que perdemos a vida e não somos também merecedores de uma morte justa – o direito à vida é também o direito á morte. porque a morte faz parte de a vida – viver deveria ter esta opção. principalmente quando percebemos que o que fazemos é já uma subtração ao que conseguimos somar – partiríamos então em paz e sem sermos banidos do céu ou excomungados por uma sociedade que se limita. na maior parte das vezes. a ver morrer – deveria ser permitido que cada corpo escolhesse o dia da sua partida


continua




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