.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

30/04/2012

trapézio




 heidi taillefer



noite-escuro
a meia-noite são 12 badaladas
noite-silêncio
a voz do meu pai aparece
noite-dor
a metamorfose acontece
noite-doce
a criança ressurge no homem
noite-esperança
a fantasia está de volta
noite-real
a manhã saqueia as estrelas
dia-luz

a normalidade
anormal

não sei
sei

notícia de última hora:
o desemprego desceu





27/04/2012

retalhos – número de série 27042012s(r)ego02




eduardo ferreira




todos os corpos são gaivotas. vivem pousados em vento. o destino é feito pelo tamanho das asas



na hora de pôr a mesa




josé luís peixoto




na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.


josé luís peixoto


26/04/2012

almanaque




foto do autor




lembro – as caras sorriem. os olhos falam e a mesa redonda maior que o mundo que deixei em espera á porta da rua – tudo na mesa é perfeito. a  toalha branca anuncia a vontade dos espíritos para aquele encontro. as palavras são feitas de sorrisos e a conversa é conforto –  as perguntas aparecem: estás bem? tudo vai bem? como estás? a saúde? e a cabeça  acena que sim contra o peito que dói. um homem nunca pode dizer não quando o corpo repousa numa toalha branca – os olhos apertam. as mãos tocam. os pulmões respiram baixinho. só as vozes ocupam espaço. e a toalha é agora feita de palavras que não param de mexer de um lado para o outro às cores como se fossem arco-íris. caminham como se estivessem á mercê de uma corrente de ar e tudo é abraço. e eu ali preso ao que vive dentro de mim e as palavras sempre meigas como se tivessem inteligência e soubessem que é assim que magoam – só estas ainda são capazes de me magoar – e a cabeça abana. e sim. e sim. e sim. e a cabeça para baixo e para cima – esta coisa de não saber falar é dor – nunca digo o que deveria dizer. nunca olho como deveria olhar. nunca sou capaz de desobstruir aquela rua que desaproveitei nas primeiras palavras que aprendi a escrever. era uma criança. numa escola feita de pedra. talvez por isso fiquei feito de palavra-pedra. não falam. nunca falam quando preciso delas – e o corpo cada vez mais pequeno para a alegria – há momentos na vida em que perdemos a memória. e o que era bom deixou de ser e o que era bondade é fel e a crença é demónio e a dor é hábito como quem faz do fumo do tabaco o cheiro do corpo – somos para sempre este cheiro que não é perfume e a primavera são silvas e o meu ano o pior dos últimos duzentos anos. e o vinho a pior colheita. e os pomares vazios pela tempestade feita de chuva-pedra e tudo a meu lado pisado pela fome de quem não sabe alimentar o corpo a não ser com sorrisos que não passaram da flor. e o fruto perdido para sempre – confesso. tenho ainda alguns adjectivos por usar na sinopse da vida - sem querer forçar muito a memória ainda dorida com o embate do corpo contra a idade. lembro com ajuda de bach. que toda a melodia necessita de vida para ser ouvida. adjectivar a minha vida seria desastroso. ainda há gente que me vê como eu não me consigo ver. ainda há gente que me beija como se os lábios fossem milagre. e o pão são rosas e o toque da mão diz-me que estou vivo. e a dor do que perdi esqueço. a gaivota voa e as asas cortam o tempo. a palavra chega aos poucos para dizer um pouco do que não consigo dizer – não sou capaz. nunca serei feito de palavras na boca – dentro de mim esta rua que me corta ao meio é feita de gente que me fala ao ouvido com vontade de viver –  desiludir os que nos tocam com a suavidade que o tempo não destrói é agora mais uma palavra – gratidão – 1962. afinal nasci em 1962. havia almanaques em 1962. quem havia de dizer – nunca me tinha passado pela cabeça que havia gente a fazer vida acontecer em 1962. curioso. nunca encontrei nada de relevante nesta data. talvez “malapata” do ano. também nunca encontrei nada de valioso no que sou ou no que faço – percebi porquê – o santo do meu dia chama-se aniceto, décimo primeiro papa. proibiu os padres de deixar crescer o cabelo para este não ser motivo de vaidade. e tudo se resume a um par de tesouras e gadelhas a bater nos ombros – nada em 62 é importante. nem santo. nem papa. nem eu que nasci depois das doze. já o sol estava a cair para o ocaso – Importante mesmo são aqueles que passados cinquenta anos me fizeram saber que a vida é consumida na sua totalidade. cinquenta anos mais tarde sei que antes de 62 havia outro ano capaz de dar ao meu ano a razão que eu desconhecia – no últimos anos da minha vida esqueci tanta coisa. tantas caras. tantos corpos que me eram familiares. e a vida sempre a caminhar e os séculos a passar em livros. e os jornais a dizer que em 1862 a vida e as casas tinham gente que faziam tempo e todo o tempo é importante para dar sentido ao meu – onde há um avô há um filho e depois outro e depois ainda outro e depois a rua cruza-se e o dia de chuva abre sol. e o sol é tudo o que preciso para viver – ninguém vive sem nascer. viver é um abraço que só se sente quando é saboreado – e a mão por cima da minha faz-me estremecer. afinal estou vivo e amanhã tenho que escrever mais do que hoje para poder voltar a dizer que em 1962 alguém nasceu para colher sorrisos cinquenta anos mais tarde



23/04/2012

no tecto do quarto onde escrevo há uma luz







károly ferenczy






no quarto onde escrevo tudo é incompleto. inacabado. imperfeito – no tecto a lâmpada contínua a luta – o filamento resiste em brasa. pequenas faíscas esbarram mortas nas paredes finas de vidro baço – dentro da lâmpada uma partícula do electrão resiste estoicamente à dúvida intermitente que avança ao olhar – apaga não apaga – há vida na luz e morte no escuro – a luz é movimento –  presa ao tecto o electrão dá vida às sombras. não há sombras sem luz como não há felicidade sem tristeza nem tempestade que não traga acalmia – na cadeira um corpo em espera. não há lugares inacessíveis para quem está preso à luz – só o tempo persegue a luz e o corpo viaja na imaginação à velocidade de uma gaivota – a morte não pode ser olhada de frente. a luz é a certeza da sua presença – a luz treme. o corpo vacila e a palavra aparece – escrevo –






18/04/2012

vânia lopez - amém







amém



é pra você esse poema
como girassóis pelo caminho
água contra a natureza
a primeira tragada da manhã

é pra você
toda palavra que voa
o pulso que treme
minha colheita de milho
tua alma canto baixinho
como pássaros na borda da veste
um punhado de beleza
que ronda o céu do seu peito

passo a vida com teu cheiro
para molhar meu bordado
de lembrar-te
num sentimento fino
do que quer ficar
enquanto você vai em tantos planos

na pausa da oração
... depois do amém


vânia lopez - dedicou ao meu aniversário



respondo:



se este poema fosse para mim
juntava ao girassóis um sorriso
pela terra
as pegadas de uma voz que não ouves
colhe palavra a palavra
na água
o orvalho das minhas manhãs

se este poema fosse para mim
o corpo diria
que todas as gaivotas sabem voar
no peito
o belo de um céu estrelado
na boca
o nascer da primavera

se este poema fosse para mim
fazia dele uma ponte
um braço a cair para dentro de ti
no toque
traçava ruas feitas
de nós
assim como somos
com este vai e volta
imaginário
de que a terra
é afinal
uma mão aberta de girassóis

se este poema fosse para mim
assim como só eu sei que sou
vou ser sincero
não sei o que faria com ele
talvez uma oração
a cair da boca
em forma de beijo

sampaio rego



16/04/2012

monólogo




                                               ´Sala Escura da Tortura´- trabalho coletivo:
                          Gontran Guanaes Netto, Julio Le Parc, Alejandro Marco, Jose Gamarra.



um descuido

uma cria
um parto
um abril
um 17
um choro
uma família
uma palavra
um deus
um baptismo
uma vela
uma concha
uma escola
um aprender
um caminho
um destino
uma renovação
uma comunhão
um recomeço
uma luta
uma revolta
uma rua
uma solidão
um 10


um livro
uma diferença
um destino
um amigo
um desconhecido
uma honra
uma desonra
um carma
um cristal
um futuro
um cravo
uma revolução
um cigarro
um liceu
um desnorte
uma loucura
um piquete
um manifesto
um partido
um calvário
um 16


um semideus
uma renúncia
um trabalho
um erro
um desafio
um silêncio
uma corrida
um 18

uma festa
um homem
um carro
uma paixão
um encantamento
uma loucura
uma viagem
uma ferida
uma ressurreição
um destino
um amor
um sonho
um casamento
um 22


um desígnio
um objectivo
uma certeza
um atalho
uma lida
uma luta
um guerreiro
uma vitória
uma madrugada
uma alegria
uma barriga
um coração
um sol
um rebento
um 23


um pai
uma jura
uma lida
um combate
um cansaço
um triunfo
uma esperança
uma regeneração
uma aurora
uma convicção
uma existência
um batimento
um gáudio
uma pancada
um choro
um 27


uma responsabilidade
um sucesso
um crescer
uma imagem
uma marca
uma vitória
um líder
um orgulho
um desassossego
uma fraqueza
uma visão
um deslize
um choro
uma preocupação
um rapaz
um 32

um abraço
uma pauta
uma alegria
uma europa
uma queda
uma áfrica
um emigrante
uma angústia
um desastre
um desespero
uma jornada
um louco
uma doença
uma dor
um silêncio
um adeus
um abraço
um beijo
um gelo
um 36


um recomeço
uma escola
uma universidade
uma escrita
um desespero
um farrapo
uma mãe
uma mãezinha
um amigo
uma amiga
um inimigo
um 40
um humano
um sábio
um caminho
uma família
uma (a)
um nó
uma certeza
um sorriso
uma luta
um destino
uma religião
uma (d)
uma renovação
uma união
uma prata
um 47


um doutor
um 48


uma nora
uma honra
uma partida
uma vitória
um projecto
uma alegria
um medo
um destino
uma (m)
uma certeza
um 50


13/04/2012

descansa em paz




                                                   michelangelo merisi da caravaggio



não sei qual é o dia certo para morrer – procuro – como garimpeiro que sou. peneiro insistentemente o que ainda sou capaz de pensar – resisto – vómito – há um rio na vida que não entendo. leva-me para onde não quero e sou o que os outros não vêem – as mãos abanam o corpo. os pés  enterrados em lodo e a cabeça pula de margem para margem onde moram abutres ocultos. vivem por detrás das silvas com que me pico todos os dias – negros e enormes. afiam os bicos em gargalhadas que anunciam festim – troçam – eles e eu sabemos o destino – na rede que me peneira. a sujidade disputa cada quadradinho minúsculo por onde escapa o que de mim resta – na água os peixes cantam canções de embalar e as harpas não deixam de anunciar a chegada do náufrago que não consegue morrer em paz na terra que o viu crescer – há dias em que a morte é a única solução para continuar a viver – encontrar o destino dentro do vazio é cada vez mais difícil e a pepita gigante do sossego. presa a uma parede de quadros que já só são recordações e a voz da saudade a dizer: o interruptor está por baixo da moldura da tua árvore genológica – descansa em paz



11/04/2012

uma questão de verbos




andrew newell wyeth



I.

entrelacei o braço num amontoado de palavras suspensas na vida e arranquei com elas para uma folha de papel – medo – há muita crueldade nos olhos de quem lê – o leitor. tal como o texto. é feito de palavras. e o seu sentido nem sempre é inteligível – quando escrevo pertenço ao mundo sensível. sombreados. sombras. silhuetas. medos e as palavras a nascer como se já soubessem que o mundo é bárbaro para quem gosta de escrever como pensa – a verdade. aquela que queremos como verdade. é muitas vezes só a nossa verdade. o nosso sentir. o nosso carma. o nosso génio de verbalizar sem som – aqueles que emprestam os olhos. aqueles que juntam as palavras com uma ordem que na maior parte das vezes desconheço ignoram que as palavras escritas são o que me resta para sobreviver. o que resta para me manter homem racional – as palavras. todas as minhas palavras escritas são uma tentativa cobarde de matar o medo e roubar às trevas a dor de um silêncio que nunca ninguém ouviu – mas papel sempre será papel – há um mundo do real onde vivo. um mundo de medo. um mundo onde se avaliam os sentimentos. e em cada dia que vivo meço o tamanho da dor [encontro sempre o passado]. das crenças [cada vez menores]. das virtudes [já não tenho]. e sem dar conta do tempo. sem dar conta do que me tornei. só trago dentro de mim palavras por escrever [para sempre. quero acreditar] – tudo o que se escreve é eterno. imortal – bem sei que a palavra não encerra em si nada de absoluto. é quase sempre ambígua. confusa. incerta. tão flexível que sempre se pode decompor pelo mundo das causas de cada leitor – um dia. alguém diz: essa palavra é cruel. essa palavra magoa. essa palavra é morte. eu olho. e volto a olhar. e vejo que a maldade não está na minha palavra. nem em quem a leu. a maldade está na vida que levamos a preencher os olhos e tudo o que os olhos veem cai para dentro do corpo e dentro do corpo tudo envelhece. tudo entra em putrefação. e as palavras suspensas ganham mais de mil sentidos num corpo de uma só vida – o meu mundo desconfia. há uma dor deitada dentro de mim. palavras – na noite as palavras incham. ficam maiores do que eu. e o sol da manhã não abre porque as palavras nasceram primeiro e colocam-se entre os meus olhos e o mundo – escrevo sem sol. mas escrevo. imagino o leitor a dizer: não. não posso ler porque estas palavras são minhas. eram o meu segredo. só os meus ouvidos sabem ouvir o silêncio das palavras no cérebro – as palavras concebem agora uma dor nossa. minha e do leitor. e a manhã é agora feita de sol. sol-palavra. sol-leitor. leitor e eu. eu e leitor. ligados para sempre – não há sol que sempre dure nem palavra que nunca acabe 



II.
escrevo. e o que era sol é agora palavra incompreendida – as palavras dizem o que querem e o que não querem. belas ou monstros dizem o que não dizem. e dentro dos olhos do leitor sou agora o mostrengo. o arrogante. o fedelho que se vestiu de escritor – como se o escritor tivesse um direito divino de dizer o que só o seu corpo sabe pensar – escrevo e dentro deste amontoado de palavras suspensas só uma sobrevive para ser história verídica: arrependimento – como deixei o meu silêncio transformar-se em palavra? e agora? o que vou fazer das palavras que o leitor nunca irá compreender? tinha as palavras seguras no verbo ser. sou: solitário. meditação. pensamento. sofrimento. sou árvore que um dia morrerá de pé. e neste silêncio tudo o que aprendi a ver nos que falavam demais – escrevo a esperança de que um dia encontrarei a felicidade na ausência a que devotei a alma do mundo que fala – e agora onde vou segurar as palavras? talvez no verbo entender. compreender. numa qualquer fantasia que tenha resistido ao crescimento do corpo e num dia próximo tudo isto possa ser som – a minha palavra é apenas uma palavra como outra qualquer. não é pedra. nem pau. nem sequer faca capaz de cortar a intenção de um desabafo – e é esta tristeza que mata as palavras. as palavras também morrem de desgosto. morrem porque dizem aos outros o que não foi escrito por mim. morrem de incompreensão – e as vozes que leem. pregam. e a semente que sou divide-se em pedacinhos de motivos que não encontro. e as vozes pregam mais. e a palavra que me dava nome deixa de ser palavra. e o som das gargantas a esquecer o nome que não tem voz. e agora já sou outro que não sei se existe. nem os outros sabem que mataram a minha verdade para dar vida a uma verdade que nunca lhes pertenceu – as palavras são minhas ainda. não as escrevo para serem julgadas. escrevo para ter voz – leitor. meu amigo leitor. se puderes ouvir a minha voz. se puderes perceber esta necessidade que tenho de dizer. se souberes encontrar-me nas palavras sossegadas que escrevo. talvez consigas descobrir as razões por que ainda vivo. os nomes que me amarram aos verbos trazem o futuro nas conjugações – dentro da palavra. nos contornos das linhas que lhe dão a minha forma de ser. onde a cabeça nunca está no corpo e o sossego é um enorme buraco escuro com uma luz que se acende e apaga. nunca percebi se me chamam ou se é um farol que me diz: não te aproximes em demasia. já outros aqui ficaram com mais palavras do que tu – uma palavra de nada vale. só palavras juntas fazem um corpo. e só muitas ganham direito ao entendimento e ao nome – tenho medo. mas o meu silêncio continua a ser feito de palavras por escrever


10/04/2012

noite




                                                               andy warhol



não há seres vivos no chat – que estranho – tudo isto por causa do movimento de rotação da terra



04/04/2012

fernando pessoa - autopsicografia





Autopsicografia



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.



insónia




théodore géricault



um altercação grave entre mim e a necessidade de dormir – com isto tudo quem ganha é a noite. contínua com a minha companhia





03/04/2012

o juízo dos juízos




albrecht dürer




onde está o interruptor deste comboio de corda a que chamam razão – não encontro descanso dentro do que vejo – os olhos. sempre abertos veem com realismo o que do alto desta janela imagino – o futuro está aqui ao meu lado. e eu sei o que não quero saber. e morro aonde outros vivem – não há esperança para o saber. só a dúvida tem força para fazer caminho e todo o caminho se faz caminhando – e a janela sem portadas. e os olhos do lado do vento caem por terra que nunca foi sagrada. e os corvos a bicar a única maçã resistente num monte de oliveiras. e as almas a sorrirem. e os mortos a falarem. e as pessoas vestidas de preto. e a urna de pé como se fosse um estandarte. feita de gritos que nunca ninguém ouviu. e o corpo a pensar se cai ou não cai na vida que não lhe pertence. e a dor a dizer não. não e não. deixa-te ir. é do outro lado que o sol se põe no mar e as gaivotas falam a língua dos homens. e os sermões não são aos peixes. e os tubarões estão sentados em bancos de pedra e todo o “pe” é de pedra. de pé. de pó. de porcos. de proscritos – todo o “pe” é de dor e seu anagrama. ror. dro. e esta palavra junta mata mais que qualquer peste negra. ratos e esgotos e suor manchado de tinta preta – desta vez serei eu a vender o judas por trinta moedas. cristo não existe dentro dos infelizes – a minha arca está cheia de pedaços de um eu que quero afogar para sempre. já só espero o dilúvio – um dia todos o “pes” serão sentados na balança da justiça. no contrapeso eu e os meus pecados. na guilhotina eu e o lobo vestido com pele de cordeiro – hoje não há história. nem lenda. nem poema. nem coisa nenhuma que as minhas mãos queiram escrever. amo o que é meu e o meu defeito será virtude e dentro desta luz. que ainda alumia a porta dos que me entram na alma







fernando pessoa – “comboio de corda”