I.
entrelacei o braço num
amontoado de palavras suspensas na vida e arranquei com elas para uma folha de
papel – medo – há demasiada crueldade nos olhos de quem lê – o leitor. tal como
o texto. é feito de palavras. e o seu sentido não é sempre claro – quando
escrevo pertenço ao mundo sensível. sombreados. sombras. silhuetas. medos. e as
palavras a nascer como se já soubessem que o mundo é bárbaro para quem gosta de
escrever como pensa – a verdade. aquela que queremos como verdade. é muitas
vezes só a nossa verdade. o nosso sentir. o nosso carma. o nosso génio de
verbalizar sem som – aqueles que emprestam os olhos. aqueles que juntam as
palavras com uma ordem. que na maior parte das vezes desconheço. ignoram que as
palavras escritas são o que me resta para sobreviver. o que resta para me
manter homem racional – as palavras. todas as minhas palavras escritas são uma
tentativa cobarde de matar o medo. e roubar às trevas a dor de um silêncio que
nunca ninguém ouviu – mas papel. sempre será papel – há um mundo real onde vivo.
um mundo de medo. um mundo onde se avaliam os sentimentos. e em cada dia que
vivo meço o tamanho da dor. encontro sempre o passado. das crenças. cada vez
menores. das virtudes. já não tenho. e sem dar conta do tempo. sem perceber no que
me tornei. só trago dentro de mim palavras por escrever. para sempre. quero
acreditar – tudo o que se escreve é eterno. imortal – bem sei que a palavra não
encerra em si nada de absoluto. é quase sempre ambígua. confusa. incerta. tão
flexível que sempre se pode decompor pelo mundo das causas de cada leitor – um
dia. alguém diz: essa palavra é fere. essa palavra mata. essa palavra sangra. eu
olho. e volto a olhar. e vejo que a maldade não está na minha palavra. nem em
quem a leu. a maldade está na vida que nos ocupa os olhos. e tudo o que os
olhos veem cai para dentro do corpo. e dentro do corpo tudo envelhece. tudo apodrece.
e as palavras suspensas multiplicam-se em mil sentidos num corpo que só vive uma
vez – o meu mundo desconfia. há uma dor deitada dentro de mim. palavras – na
noite as palavras incham. ficam maiores do que eu. e o sol da manhã não surge
porque as palavras nasceram primeiro e interpõem entre os meus olhos e o mundo
– escrevo sem sol. mas escrevo. imagino o leitor a dizer: não. não posso ler
porque estas palavras são minhas. eram o meu segredo. só os meus ouvidos sabem
ouvir o silêncio das palavras no cérebro – as palavras concebem agora uma dor
nossa. minha e do leitor. e a manhã é agora feita de sol. sol-palavra.
sol-leitor. leitor e eu. eu e leitor. ligados para sempre – não há sol que
sempre dure nem palavra que nunca acabe
II.
escrevo. e o que era
sol é agora palavra incompreendida – as palavras dizem o que querem e o que não
querem. belas ou monstruosas escondem o que revelam e revelam o que escondem. e
dentro dos olhos do leitor sou agora o mostrengo. o arrogante. o impostor
vestido de escritor – como se o escritor tivesse um direito divino de dizer o
que só o seu corpo sabe pensar – escrevo e dentro deste amontoado de palavras
suspensas só uma sobrevive para ser história verídica: arrependimento – como deixei
o meu silêncio transformar-se em palavra? e agora? o que vou fazer das palavras
que o leitor nunca irá compreender? tinha as palavras seguras no verbo ser. sou:
solitário. meditação. pensamento. sofrimento. sou árvore que um dia morrerá de
pé. e neste silêncio tudo o que aprendi a ver nos que falavam demais – escrevo
a esperança de que um dia encontrarei a felicidade na ausência a que devotei a
alma do mundo que fala – e agora onde vou segurar as palavras? talvez no verbo
entender. compreender. numa qualquer fantasia que tenha resistido ao
crescimento do corpo e num dia próximo tudo isto possa ser som – a minha
palavra é apenas uma palavra como outra qualquer. não é pedra. nem pau. nem
sequer faca capaz de cortar a intenção de um desabafo – e é esta tristeza que
mata as palavras. as palavras também morrem de desgosto. morrem porque dizem
aos outros o que não foi escrito por mim. morrem de incompreensão – e as vozes que
leem. pregam. e a semente que sou desfaz-se em pedacinhos de motivos que não
encontro. e as vozes pregam mais. e a palavra que me dava nome deixa de ser
palavra. e o som das gargantas a esquecer o nome que não tem voz. e agora sou
outro. alguém que não sei se existe. nem os outros sabem que mataram a minha
verdade para dar vida a uma verdade que nunca lhes pertenceu – as palavras são
minhas ainda. não as escrevo para serem julgadas. escrevo para ter voz – leitor.
meu amigo leitor. se puderes ouvir a minha voz. se puderes perceber esta
necessidade que tenho de dizer. se souberes encontrar-me nas palavras sossegadas
que escrevo. talvez consigas descobrir as razões por que ainda vivo. os nomes
que me amarram aos verbos trazem o futuro nas conjugações – dentro da palavra. nos
contornos das linhas que lhe dão a minha forma de ser. onde a cabeça nunca está
no corpo e o sossego é um enorme buraco escuro com uma luz que se acende e
apaga. nunca percebi se me chamam ou se é um farol que me diz: não te aproximes
em demasia. já outros aqui ficaram com mais palavras do que tu – uma palavra de
nada vale. só palavras juntas fazem um corpo. e só muitas ganham direito ao
entendimento e ao nome – tenho medo. mas o meu silêncio continua a ser feito de
palavras por escrever
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