.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

11/04/2012

as palavras que me escrevem




andrew newell wyeth


I.

entrelacei o braço num amontoado de palavras suspensas na vida e arranquei com elas para uma folha de papel – medo – há demasiada crueldade nos olhos de quem lê – o leitor. tal como o texto. é feito de palavras. e o seu sentido não é sempre claro – quando escrevo pertenço ao mundo sensível. sombreados. sombras. silhuetas. medos. e as palavras a nascer como se já soubessem que o mundo é bárbaro para quem gosta de escrever como pensa – a verdade. aquela que queremos como verdade. é muitas vezes só a nossa verdade. o nosso sentir. o nosso carma. o nosso génio de verbalizar sem som – aqueles que emprestam os olhos. aqueles que juntam as palavras com uma ordem. que na maior parte das vezes desconheço. ignoram que as palavras escritas são o que me resta para sobreviver. o que resta para me manter homem racional – as palavras. todas as minhas palavras escritas são uma tentativa cobarde de matar o medo. e roubar às trevas a dor de um silêncio que nunca ninguém ouviu – mas papel. sempre será papel – há um mundo real onde vivo. um mundo de medo. um mundo onde se avaliam os sentimentos. e em cada dia que vivo meço o tamanho da dor. encontro sempre o passado. das crenças. cada vez menores. das virtudes. já não tenho. e sem dar conta do tempo. sem perceber no que me tornei. só trago dentro de mim palavras por escrever. para sempre. quero acreditar – tudo o que se escreve é eterno. imortal – bem sei que a palavra não encerra em si nada de absoluto. é quase sempre ambígua. confusa. incerta. tão flexível que sempre se pode decompor pelo mundo das causas de cada leitor – um dia. alguém diz: essa palavra é fere. essa palavra mata. essa palavra sangra. eu olho. e volto a olhar. e vejo que a maldade não está na minha palavra. nem em quem a leu. a maldade está na vida que nos ocupa os olhos. e tudo o que os olhos veem cai para dentro do corpo. e dentro do corpo tudo envelhece. tudo apodrece. e as palavras suspensas multiplicam-se em mil sentidos num corpo que só vive uma vez – o meu mundo desconfia. há uma dor deitada dentro de mim. palavras – na noite as palavras incham. ficam maiores do que eu. e o sol da manhã não surge porque as palavras nasceram primeiro e interpõem entre os meus olhos e o mundo – escrevo sem sol. mas escrevo. imagino o leitor a dizer: não. não posso ler porque estas palavras são minhas. eram o meu segredo. só os meus ouvidos sabem ouvir o silêncio das palavras no cérebro – as palavras concebem agora uma dor nossa. minha e do leitor. e a manhã é agora feita de sol. sol-palavra. sol-leitor. leitor e eu. eu e leitor. ligados para sempre – não há sol que sempre dure nem palavra que nunca acabe

 

II.

escrevo. e o que era sol é agora palavra incompreendida – as palavras dizem o que querem e o que não querem. belas ou monstruosas escondem o que revelam e revelam o que escondem. e dentro dos olhos do leitor sou agora o mostrengo. o arrogante. o impostor vestido de escritor – como se o escritor tivesse um direito divino de dizer o que só o seu corpo sabe pensar – escrevo e dentro deste amontoado de palavras suspensas só uma sobrevive para ser história verídica: arrependimento – como deixei o meu silêncio transformar-se em palavra? e agora? o que vou fazer das palavras que o leitor nunca irá compreender? tinha as palavras seguras no verbo ser. sou: solitário. meditação. pensamento. sofrimento. sou árvore que um dia morrerá de pé. e neste silêncio tudo o que aprendi a ver nos que falavam demais – escrevo a esperança de que um dia encontrarei a felicidade na ausência a que devotei a alma do mundo que fala – e agora onde vou segurar as palavras? talvez no verbo entender. compreender. numa qualquer fantasia que tenha resistido ao crescimento do corpo e num dia próximo tudo isto possa ser som – a minha palavra é apenas uma palavra como outra qualquer. não é pedra. nem pau. nem sequer faca capaz de cortar a intenção de um desabafo – e é esta tristeza que mata as palavras. as palavras também morrem de desgosto. morrem porque dizem aos outros o que não foi escrito por mim. morrem de incompreensão – e as vozes que leem. pregam. e a semente que sou desfaz-se em pedacinhos de motivos que não encontro. e as vozes pregam mais. e a palavra que me dava nome deixa de ser palavra. e o som das gargantas a esquecer o nome que não tem voz. e agora sou outro. alguém que não sei se existe. nem os outros sabem que mataram a minha verdade para dar vida a uma verdade que nunca lhes pertenceu – as palavras são minhas ainda. não as escrevo para serem julgadas. escrevo para ter voz – leitor. meu amigo leitor. se puderes ouvir a minha voz. se puderes perceber esta necessidade que tenho de dizer. se souberes encontrar-me nas palavras sossegadas que escrevo. talvez consigas descobrir as razões por que ainda vivo. os nomes que me amarram aos verbos trazem o futuro nas conjugações – dentro da palavra. nos contornos das linhas que lhe dão a minha forma de ser. onde a cabeça nunca está no corpo e o sossego é um enorme buraco escuro com uma luz que se acende e apaga. nunca percebi se me chamam ou se é um farol que me diz: não te aproximes em demasia. já outros aqui ficaram com mais palavras do que tu – uma palavra de nada vale. só palavras juntas fazem um corpo. e só muitas ganham direito ao entendimento e ao nome – tenho medo. mas o meu silêncio continua a ser feito de palavras por escrever

 


Sem comentários:

Enviar um comentário