29/04/2014
dor elegante - paulo leminski
retalhos – número de série 29042014s(r)ego13
26/04/2014
entre o nada e a escrita
escrevo. escrevo medo. escrevo pavor. escrevo nesta
carpintaria afligida de textos imperfeitos – nunca escrevo tudo – terror. tenho
sempre tanto terror das palavras. sempre tão cruas. cruéis. aqui mesmo à mão e
eu sem ferramentas para as usar – o corpo treme. não percebo a razão. afinal as
palavras são de todos aqueles que gostam de as escrever. principalmente dos que
precisam delas para falar. como eu – quero-as unicamente para falar. não as
quero como punhais. não as quero arremessar. não as quero para condenar. nem
para absolver. nem para as oferecer. quero-as para falar de mim – estou refém
das palavras como as gaivotas do mar – é tão penosa esta procura das palavras. e
o corpo sem posição. e a cadeira a tomar formas que não me deixam sentado.
falta de ar. pânico. e o coração a sofrer por não compreender o que fazer nesta
carpintaria – sou um idiota. as palavras idiotizam quem não sabe escrever. mas
continuo a acreditar que um dia aprenderei a escrever uma palavra esdrúxula. grave
ou simples. juntá-las ao feitio dos olhos. e palavra a palavra. refazer um nome
num corpo com olhos castanhos e um olhar cansado. e as maçãs do rosto coradas
de vergonha atraiçoam a timidez. num finíssimo silêncio de uma mão trémula a
desenhar o fim de uma idiotice – quero acreditar que sei falar a escrever –
sonho – de volta à realidade descanso as mãos idiotas. se as mãos estiverem
caladas deixarei de ser idiota – não posso acorrentar-me – há tanta gente por
aí a escrever idiotices e não deixam de escrever – talvez saiba escrever.
talvez. nem que seja para uma única pessoa me ouvir – talvez tudo não passe de
uma farpa. uma palavra espetada de esguelha no dedo indicador da mão que teima
em escrever – se for assim é fácil. com uma palavra agulha rasgo a pele e
retiro a farpa. para sempre – as farpas. escritas por eça de queirós e ramalho
ortigão. foram uma caricatura da sociedade da época. talvez esta farpa também
represente o que de pior há em mim. uma caricatura – talvez saiba escrever.
talvez. nem que seja para duas pessoas – o problema é dizer o que sou nas
palavras. não é fácil dizer-se o que se é em palavras. as mãos tremem-me
penduradas num corpo que também treme – talvez não seja idiotice. nem demência.
talvez seja parkinson. mas o coração também treme. talvez um ataque cardíaco.
talvez uma fobia. uma overdose de palavras difíceis. talvez esteja num sonho. e
a cadeira é afinal uma pedra lascada. e o computador é uma janela de um catraio
do passado que desenha letras em cadernos de duas linhas – talvez não saiba
mesmo escrever. e a loucura seja mesmo essa: escrever – talvez afinal não seja
idiota. talvez o corpo esteja infetado por um fungo-bolor onde a realidade é
atacada e manipulada por bolores alucinogénios – ganzo-me a escrever. quem
diria. as palavras são uma droga poderosíssima – um destes dias sou preso por
consumo e tráfego de palavras perigosas e proibidas – antigamente a polícia
andava sempre à procura de quem escrevia. e havia gente especializada na
leitura destes textos. punham carimbos enormes a dizer: censurado – um dia também
eu sou preso. censurado não creio. se soubesse escrever talvez me prendessem
por um dia – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para três pessoas – tenho
a sensação de que estou fechado num elevador parado entre o céu e o inferno e a
porta teima em não abrir. carrego num botão. e noutro. e outro. e em todos ao mesmo
tempo e nada. tudo parado. paralisado. e um murro na porta igual ao que dou aos
dicionários e nada. nada se abre aos meus olhos. da porta para lá nada. como as
palavras. da cabeça para lá. nada – nada. e o elevador parado. e as palavras
paradas. e eu a bater com as mãos nas teclas a fingir que escrevo o que sou – não
sei fazer palavras – mas eu sei que existem. sei. sei. e sei. ouvi-as na boca de gente diferente – dinis.
eça. antunes. andrade. breyner. garret. espanca. pessoa. camões. branco.
saramago. estes nomes não me são estranhos. esta gente sabia o que fazer às
palavras. existiram. tenho a certeza. vi livros com estes nomes impressos –
existem. não sou idiota – mas eu também existo. tenho a certeza. não pode ser
loucura. talvez as palavras sejam loucas e não digam o que me vai dentro do
corpo. mas só as palavras. porque tudo o que está à minha volta existe. e do
lado da porta deste elevador parado entre o céu e o inferno há gente. também
com nomes. sei – todos temos nomes. mas confesso que não sei o nome dos meus
vizinhos. nunca me escreveram. dizem boa tarde. bom dia. está sol. está mau
tempo. tem que se agasalhar. cuidado com o frio. ainda ontem entrou no reino de
deus o vizinho do cinquenta e três. o que vivia no terceiro frente. uma pontada
de ar e lá foi. que deus o tenha a seu lado – de seguida silêncio. também não
tenho nome. talvez porque nunca lhes escrevi – tudo se resume à palavra escrita
– as pessoas existem mesmo sem saber escrever. isso eu sei. se não como seria
possível eu estar aqui a fingir que sei escrever. se finjo logo existo – a
minha vizinha do quarto andar tem um cão branco. também existe. o meu vizinho
do sexto com o bigode também existe. e o GNR reformado que vive ao lado da
vizinha portista também existe. e o cão do primeiro andar frente também existe
– as palavras são cada vez mais complicadas para alguém como eu:
hipopotomonstrosesquipedaliofobia. medo. doente de medo. sem cura. raio de
palavra enorme para dizer tão pouco. medo – dizem os entendidos que a terapia
recomendada para aliviar o corpo deste mal é escrever mesmo que não se saiba
muito bem o que se escreve. como quem diz. o que se quer dizer – sou mesmo
idiota. para que escrevo se não sei escrever o que tenho dentro do corpo –
escrevo – escrevo um texto que não é este. este é só para desabafar esta raiva
de não saber gritar com palavras – que tristeza – nem por saber que tenho uma amiga
que quando acorda se senta na cama a ler este idiota – sorte a minha. devo ser
o único palerma do mundo que tem alguém que gosta de acordar com palavras de um
tolo – debruça-se para um raio de sol. o primeiro da manhã puxado por deusas
vítreas até à sua almofada feita de penas de anjos. onde os seus cabelos
desarrumados seguram os sonhos de um idiota incorrigível – adelgaça as palavras
com afeição. com estima. com um “bem-me-quer” que me abraça em confiança. e a
sua leitura é agora tudo o que não escrevi – há outra vida nas palavras. não
aquelas que escrevi em delírio. mas as que são lidas em pureza nos primeiros
raios de sol das manhãs – tudo tão leve. tudo tão sem peso. tudo tão pueril.
tudo tão inocente neste acordar enviado pelos anjos – escrevo. escrevo para
acordar as palavras que dizem o que não consegui dizer enquanto idiota. talvez
alquimia. magia. uma que faz das letras grãos de areia finíssimas. quase
inúteis. se não fossem pó não eram nada – nada também existe no dicionário de
português:
pronome
indefinido
1. Coisa
nenhuma (ex.: estava escuro e não vi nada; nada lhe despertou a atenção).
substantivo
masculino
2. O que
não existe; o não-ser.
3. [Por
extensão] Pouca coisa. = BAGATELA
4.
[Figurado] Fragilidade.
advérbio
5.
Expressa negação; de modo nenhum. = NÃO
quando escrevo sou tudo isto: nada
mas.
talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para meia dúzia de pessoas
25/04/2014
a centrifugação da existência
quando
não compreendo algo. seja o que me magoa ou ainda altera substancialmente o meu
equilíbrio emocional. e as dúvidas passam a ocupar todo o meu espaço corporal.
fico preocupado – não estou habituado a que o erro acabe por consumir todo o
meu lado bom – recorro então à imaginação e forço o corpo a acreditar que a vida
está a seguir o seu percurso normal da seleção das espécies – o planeta terra
não para de centrifugar. voltas e mais voltas. sempre à mesma velocidade. geram
a primavera e o outono – quem diria – incrivelmente tudo nasce e morre neste
ciclo. e o planeta. sempre a sorrir. carregado com o saber de milhões e milhões
de anos de perdas – foi assim que chegamos ao homem dos nossos dias – imagino
então a terra como uma máquina de lavar roupa. a trouxa suja para dentro do
tambor. e o programa a fazer a lavagem a altas temperaturas com os glutões do
presto a comerem tudo o que é nódoa – só não me vejo a torcer
16/04/2014
mais um ano
a minha juventude foi muito agitada. desajeitada e rebelde – gosto de culpar o 25 de abril por todos os males de que padeço. mas não é verdade – o que seria das minhas palavras sem abril? não trocava abril por nada. crescer com a revolução é um daqueles momentos únicos que a vida não repete – sem abril estaria vazio. talvez até vazio de erro – faço parte do erro. agarrei a liberdade sem defesas e acabei por sucumbir ao seu encanto – por ali fiquei a trovar. sem métrica. sem rima. por num compasso que nunca soube acompanhar – agora que envelheci escrevo prosa para sobreviver – estou triste. escrevo – quero desabafar. escrevo – quero respirar. escrevo – quero dar uma sova. escrevo – quero dizer que amo. escrevo – quero odiar. escrevo – escrevo para tudo e para mim – escrevo porque quero continuar a envelhecer com as palavras que ainda não escrevi – escrevo para não morrer no meio de um amor não correspondido: a vida – a vida nunca me amou. talvez por não ser poeta. talvez por nunca ter dito que gosto muito de todos aqueles que fazem parte da minha vida – amo-vos. amo-vos. amo-vos. a todos – escrevo para falar – bem hajam
15/04/2014
heurística
apoiado-me no lamento
desalegro-me. atrido
desdobro uma noite
apenas minha
no céu. a cassiopeia
retraça-me
inclemente
apela em chama
à heurística.
interrogo-me entre deuses terrenos
escuto-me entre giestas bravas
digo-me entre pedras
afiadas
respondo-me
entre teorias de evolução
os olhos escancelados
deslumbram uma rosa
na beleza. os espinhos
14/04/2014
eu. os amigos. e celestinha tem bombocas
adolescente. um dia para
os amigos. um minuto para o corpo. a bola a saltar e o pião a rolar num peito
atravessado a vento sul. a puxar gaivotas para um mar nunca antes navegado. e o
cabelo castanho. imortal. desviado para o lado mais a seu jeito – sou primavera.
abril. e os dias pequenos para tanto coração – nesse tempo não havia inverno. ossos
rijos. braços fortes. pernas a correr acima do tronco e os olhos a avistar dias
para lá do ocaso – no corpo. os amigos a trabalhar dia e noite. como relógios
pendurados em paredes de pedra. com séculos. os ponteiros a marcar o futuro ao segundo
num tic tac imperceptível – queria tanto crescer – e os dias a imitar
tartarugas. demorados. o sol incapaz de fazer sombra. nem vento. nem frio. nem
arrepios. nem medos. a gola alta tapa a garganta franzina que não se cansa de
gritar o nome dos amigos. zé do gerês. tiago. agostinho. jorge. toni. vicente.
fernando. fontes. rui. meno. tó mané. carlitos. lúcio. pimenta. joca. luís
vieira. quim. leites. paulo (s). pedro. gijo. miguel. joão. zeca [que “deus” me
perdoe se me esqueci de algum] – éramos tantos. ainda somos muitos. mas não
tantos. há agora um mundo novo. um mundo bom e justo. onde os corpos não adoecem.
as amizades não acabam. as palavras nunca ficam por dizer – um mundo que desejo
acreditar. passam-se os dias a jogar à bola. o luís vieira entre duas nuvens. a
fingir postes de uma baliza. defendendo como guarda-redes. o joca [filho do
gaspar chapeiro] chuta de trivela. em estilo. com o corpo a inclinar-se para o
lado de uma conversa que nunca tivemos
devo-te um pedido de
desculpas. espero que me perdoes. partiste tão rápido. sem ao menos um café. um
abraço. sei lá. algo que me deixasse
ficar em paz
de tanta vida gasta. sobra-me hoje este único
arrependimento. coisas da juventude – sou dos mais novos do rebanho. sempre
quis ter amigos mais velhos. sempre soube que estes sabiam o que eu desconhecia
– éramos um clã. uma tribo da praça do comércio. quem aqui nasce ou cresce.
fica marcado para sempre. como ferro quente nos rebanhos – os gregos e romanos
também usaram técnicas de fogo nos seus rebanhos. o seu legado correu o mundo –
o nosso fogo era diferente. marcava o coração. era feito de inocência. de
ingenuidade. de fé. de camaradagem. de bondade. de amparo. de abraço. de
fraternidade. de verdade. nos olhos duas luzinhas vivas. acesas. brasa para
temperar ferro – mais um dia. mais futebol – frente a frente. os dois mais
velhos. deitam os pés. como um duelo. o primeiro que toca a ponta do pé começa a escolher a equipa.
primeiro os mais velhos. de seguida os melhores jogadores e finalmente os putos
– emudecimento. os putos ficavam sempre para último. aceitam o que lhes cabe por
sorte em silêncio – tu vais para a baliza – de um lado uma pedra. do outro um
poste de luz que nada alumia. fundido pelos remates perdidos em ais de um quase
golo e as biqueiras dos sapatos sem tinta. e nos ouvidos a certeza de que a
minha mãe um dia destes cumpria a promessa de me comprar umas chancas
ó rapaz. olha como tens
esses sapatos comprados há menos de um mês. pensas que o teu pai é rico
um género de praxe académica dos nossos dias. os
grandes exerciam um poder absoluto na miudagem. físico. se necessário. psicológico
obrigatório – a livre expressão da individualidade como parceiro de equipa. que
se limitava a um abanar da cabeça. dizer sim – e eu ali. olhos caídos em mudez.
acotinhados a um canto. a receber ordens. mas bem lá por dentro. alegre por
partilhar um espaço-tempo ao lado dos grandes – os putos são felizes com tão pouco
– o jogo vai começar. muda aos seis. acaba aos doze. não há desforra – e ali
fico eu a vê-los a correr de um lado para o outro. encostado ao poste de luz. fundido.
a pedra é muito pequena. mais pequena do que qualquer puto com o sonho de
crescer o mais rápido possível
passa. passa. olha o
carlitos. chuta. golo. golo. golo
a culpa era sempre do puto da baliza. olhos para
baixo. boca fechada antes que um dos grandes se irritasse e me fizesse a andar
a mil – os mais velhos tinham sempre razão – mas os amigos grandes são assim.
às vezes injustos. não importava. o
importante era fazer parte do seu mundo. fazer parte do jogo. estar na
equipa. pertencer ao rebanho – e ali estou a crescer. a conhecê-los pelos gestos.
pelas vozes grossas. todas diferentes. pela roupa. e eles todos elegantes a
falar com palavras que nunca tinha ouvido. não eram da escola. eram da vida.
dos anos. da altura do corpo. enquanto batiam com o cigarro na palma da mão. e
o fósforo acendia um fogo de desejo nos meus olhos – queria crescer. queria ser
também eu enorme e bater com o cigarro. apertar o tabaco naquele tubo de papel
e fazer fumo às bolinhas. ritmadas pelos maxilares. a mexer para cima e para
baixo. como vulcão a anunciar erupção. explosão. expansão. e o fumo. engolido em
golfadas. sai pelo nariz de um novo guerreiro. enquanto a ponta do cigarro era
confiscada por mais um puto. a beata. agora em posse de um novo dono. queima entre
dedos. pouco mais resta do que o filtro. e os meus olhos a ver o tempo arder. e
por cada segundo queimado. uma a menos. passa num filtro amarrotado de conversa
de amigos. para sempre – quero ser grande – camarada. raio de palavra.
companheiro. raio de palavra. amigo. raio de palavra. para onde foram estas
palavras? para onde? roubaram-mas e não percebi. quando estamos a crescer não
damos conta de quase nada – agora sou gigantesco. fumo. e por cada golfada de
fumo um centímetro de altura – os mais velhos naquele tempo eram mais sábios.
ouvi-los era aprender. respeitá-los era obrigatório. fumar era crescer no
respeito – sabiam tantas coisas que eu não sabia. meu deus. como eram
inteligentes. e bonitos. sempre a sorrirem. e eu ali a olhar. invejoso. a querer
ser como todos eles. e eles a falar. e eu sem conseguir ouvir todos ao mesmo
tempo. e eles a apontar para o futuro. e eu sem saber onde estava o meu. e eles
com as calças vincadas e eu todo engelhado. e eles com os pés no chão e eu com
a cabeça no ar. eram tão bonitos. eram meus amigos e os amigos são sempre
bonitos. eram os melhores amigos do mundo. enormes. tão grandes como a roda
gigante das diversões. vinha todos os anos para as festas da cidade em honra de
s. joão. e eu. às voltas a tentar ver o mundo pela sua altura. como a roda. a
girar. sem parar. sem parar – era enorme esta roda. eles também – ninguém tinha
amigos como eu – com a chegada da noite a recolha obrigatória dos corpos. era o
meu momento de profunda tristeza – sem eles estava só. num silêncio de morte.
um silêncio sem existência de vida. de confiança. de segurança. de amor. de
tudo – eles eram tudo
até amanhã pessoal
e lá os levava eu para casa. todos. sem saberem.
eram tantos. todos tão diferentes e especiais – colocava-os na cómoda. de
frente para a cama. separados por tamanhos. os mais velhos ficavam à frente. queria-os
sempre à mão. a fintar a escuridão. a passar a bola de pé para pé. e o polícia
de giro sisudo a dizer:
meninos. toca a guardar
a bola. estão fartos de saber que é proibido jogar nos passeios. vamos ter
problemas
olhos no chão. a bola nas costas debaixo da camisete.
um silêncio de quem é culpado pela quinquagésima vez. e as cabeças a dizer que
sim. juravam com os dedos em figas que não voltaríamos a jogar na rua – ninguém
pecava. ninguém mentia. os dedos cruzados em figas eram a absolvição. código de
honra entre amigos – e ali ficavam eles até que o dia chamasse pelo meu nome – queria
tanto que me conhecessem. bem sei que estava a dormir. mas também sei que falo
enquanto sonho. eles estavam em todos os meus sonhos. quem sabe dizia algo
importante. de afeição. e pela manhã acordava com abraços a dizer: bom dia
amigo. estamos à tua espera – tinha tanta coisa importante para lhes dizer. sonhos.
pedacinhos de coisas prontas a construir lugares onde a amizade é para sempre –
doce vida. doce jovem. doce esperança. as mãos em formação seguravam vidas que
não eram minhas – a padaria lusitana. servida por duas portas. era verão se
estavam abertas. faziam corrente de ar. e o cheirinho ao pão a passear por cima
dos ombros de miúdos a rebolar pelo chão. a jogar à carica na beira de um
passeio de pedra silenciosa – ninguém falava quando nós gritávamos. éramos ciclistas.
queríamos acreditar. e o camisola amarela representava todos os meus amigos –
eu lá ia. pendurado no carro vassoura. feliz por vê-los felizes – não entra
nestas corridas quem quer – tanta gente naquela rua. tanta gente naquela praça.
tanta gente no meu mundo – a celestinha de bata branca. atrás do balcão.
relatava a sua vida aos clientes enquanto a soma era feita de meias dúzias
celestinha dúzia e meia
para mim. estaladiços. hoje estou com pressa
a freguesa segurava uma saca de tecido bordada à mão
com três letras: pão – nada era mais importante do que o pão na vida das
famílias. vizinhos. amigos. todos sabiam o meu nome – os meus amigos eram o meu
pão. alimentavam-me com a esperança de um mundo azul. com mar. sol e sal. com
gaivotas. livres como o vento. feitas de asas. feitas de eternidade – e as
meias dúzias a cair das prateleiras de madeira coloridas de farinha a imitar neve
em montanhas mágicas. na saca a lenda da rainha santa isabel: rosas senhor.
rosas – havia tanta gente a sorrir. eu também – onde está essa gente dos
sorrisos? onde? morreu? talvez. eu também morri e as sacas bordadas. estamos
todos mortos e nem demos ainda conta – o meu amigo tiago pergunta:
celestinha tem bombocas?
esgotaram menino. agora só na próxima semana
éramos todos meninos. éramos todos meninos e eu. sem
saber. e eles. sem saber. só o tempo sabia da nossa meninice. talvez por isso
me acordava sempre com sol. persiana para cima. pijama fora. escada abaixo. e
em duas passadas ali estava eu na rua. aos pinchos. bola na mão. e os compinchas
a chegar um a um. e os dias a sorrir até cair de cansaço na noite
mais dois e já dá para
jogarmos três contra três ou então aos centros. a deitar fora
um a um. depois do jantar. juntávamos a amizade numa
roda que se fechava numa aliança imortal – falávamos de tudo que era nada. e
tudo fazia sentido. e eu ali a fechar um círculo que nunca percebi onde
começava na certeza de que nunca seria mais feliz em lugar nenhum do mundo – o
meu mundo era ali. naquele círculo. naquela aliança. afortunado – noite. sou agora
silêncio. escondo-me. tenho medo de ficar sozinho – 23.30. está na hora de voltar a casa. o oceano pacífico
começa à meia noite. RFM – sintonizo a emissora e ouço o mar a ir e a voltar.
as músicas calmas acompanham o corpo numa melancolia-saudade. nunca mais é
manhã – noite. longe dos meus amigos é sempre tão demorada. ler era aliviar o
corpo do peso do relógio – o silêncio também se distrai com o tempo. leio.
leio. leio. só os livros falam comigo. para eles eu estou ali tal e qual como
nos sonhos. sem censura. sem idade. sem correrias. sem tristeza. estou apenas
ali. deitado de bruços na cama a segurar o saber. alumiado por uma lâmpada de
quarenta velas a florir a minha solidão – as noites eram gastas a sonhar com
mundos que não conhecia na companhia do belga hercule poirot. detetive belga. personagem
das histórias de agatha christie – tinha que saber tanto como o meu amigo zé do
gerês. vestia aqueles pulôveres de decote redondo. chegado ao pescoço. que não
deixavam sair as golas da camisa. não gostava do decote em bico. dizia com ar
de quem possui a capacidade de saber todas as coisas do mundo – e eu a ouvi-lo.
ainda hoje não gosto de pulôveres de bico. fiquei com quase tudo dele. era meu
amigo. é meu amigo. será sempre meu amigo – há palavras que nunca lhe disse.
possivelmente irei partir sem as dizer – e o tempo fez de mim o que hoje
escrevo. fez muito pouco. muito pouco. raio de gajo que não serve para nada.
nem para escrever o que sinto. e sinto tanto. nunca deixei de sentir. a
infância nunca se deixa de sentir. nem se perde. nem se esquece. muito menos
aquele desejo de abraçar um futuro idílico – o tempo passou. e agora descubro
que só me trouxe dúvidas. as certezas ficaram todas na juventude
09/04/2014
retalhos – número de série 09042014s(r)ego12
desajeitado para o mundo – o termo é mesmo esse. sou um
desajeitado para o meu mundo. entre os outros estou quase sempre a mais
04/04/2014
02/04/2014
tudo-incondicional
a
minha amiga ana martins recordou no seu facebook uma prosa poética de minha
autoria que se intitula - tudo
passaram-se
três anos
acredito
que para os mais novos. estes três míseros anos não são relevantes. afinal. o
que são três anos no corpo imortal de um jovem – para mim. que a imortalidade
já não é atingível. é um horror de tempo – infelizmente o tempo esgota-se
velozmente
nestes
três anos. muitas coisas se passaram dentro do corpo. muitas metamorfoses. mais
dúvidas. mais perguntas sem respostas. mais viagens ao passado num esforço de
credibilização do presente – uma luta contra os meus moinhos de vento - mas
vida é isto mesmo. para alguns o destino é traçado com a hora do nascimento.
para outros. são os atos criados à sua volta que indicam o caminho – o tempo
passa. o corpo envelhece. a força que nos ergueu é agora aquela que nos empurra
para dentro da terra – o desespero aumenta com a convicção de que cada vez
temos menos verdades absolutas – nada é igual a ontem – tenho o corpo cansado
na procura de uma razão para o que sou – aprender até morrer. o ditado tem
razão
mas
há certezas que já não mudam nunca mais. o “tudo” da minha prosa poética é
agora definitivamente um tudo-incondicional
obrigado
ana por trazeres um texto tão especial para mim
tudo-incondicional
passaram-se
mais de três anos desde que escrevi a prosa poética “tudo”. é muito tempo numa
vida que se consome cada vez mais rapidamente – tudo passa tão depressa. quando damos conta. tudo o que temos é tempo
gasto. algumas memórias e muita saudade de pessoas que fizeram parte da nossa
vida e já partiram – mas é assim para
tudo e para todos – por muito que nos custe. a idade traz a morte e dentro
desta vai o conhecimento de um mundo sentido e vivido sempre na primeira pessoa
– voltando ao texto. confesso que este meu tudo está ultrapassado. já não sinto o que sentia. já não sou capaz de
escrever o que escrevi – o dilatar da
idade traz um saber que a juventude desconhece – diz-se que o amor aos filhos é
incondicional. um tudo para toda a vida. para sempre – é verdade. mas para quem
gosta de escrever como eu ainda é mais difícil transpor para a escrita esta
incondicionalidade – sem palavras suficientes para o descrever. sem mãos
capazes de o abraçar. sem lágrimas suficientes para ser chorado. um tudo que
nos dói mesmo nas alegrias. sempre a crescer. o biberon. o primeiro passo. o
primeiro dia da escola. a adolescência. a primeira namorada. e o homem feito de
tudo que é nosso para sempre – não há tudo mais belo do que este. sei-o desde o
dia em que me deram para os braços o meu primeiro filho. e a palavra pai é
agora amada incondicionalmente. para o bem. para o mal. para a alegria. para a
tristeza. para a saúde. para a doença. para a chegada do primeiro filho do meu
filho – pai duas vezes. duas vezes tudo. duas vezes amor incondicional – a minha companheira. a minha mãe dos meus
filhos. a minha confidente. a minha amiga. a minha amante. a minha força de vida. já não
é tudo. não. o tudo é agora uma palavra só. sem sentido se não acrescentar a incondicionalidade
– esse meu tudo passou a um tudo-incondicional – tudo na MJ é agora incondicional-tudo
– os meus filhos e a minha companheira têm o meu amor incondicional – um tudo-incondicional.
mesmo – até sentir os seus lábios quentes na minha carne gélida