.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

29/04/2014

dor elegante - paulo leminski

paulo leminski


Dor elegante

Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante

Carrega o peso da dor
Como se portasse medalhas
Uma coroa, um milhão de dólares
Ou coisa que os valha

Ópios, édens, analgésicos
Não me toquem nesse dor
Ela é tudo o que me sobra
Sofrer vai ser a minha última obra


paulo leminski 

retalhos – número de série 29042014s(r)ego13



sam jinks e ron mueck
 

partir - quanta dor cabe dentro de um corpo. quantas noites escuras consumiu. quantos amigos perdeu por amar. quanto silêncio calou a alma. quanto luto vestiu de preto - partir também pode ser um ato de coragem – paz

26/04/2014

entre o nada e a escrita


alyssa monks
 

escrevo. escrevo medo. escrevo pavor. escrevo nesta carpintaria afligida de textos imperfeitos – nunca escrevo tudo – terror. tenho sempre tanto terror das palavras. sempre tão cruas. cruéis. aqui mesmo à mão e eu sem ferramentas para as usar – o corpo treme. não percebo a razão. afinal as palavras são de todos aqueles que gostam de as escrever. principalmente dos que precisam delas para falar. como eu – quero-as unicamente para falar. não as quero como punhais. não as quero arremessar. não as quero para condenar. nem para absolver. nem para as oferecer. quero-as para falar de mim – estou refém das palavras como as gaivotas do mar – é tão penosa esta procura das palavras. e o corpo sem posição. e a cadeira a tomar formas que não me deixam sentado. falta de ar. pânico. e o coração a sofrer por não compreender o que fazer nesta carpintaria – sou um idiota. as palavras idiotizam quem não sabe escrever. mas continuo a acreditar que um dia aprenderei a escrever uma palavra esdrúxula. grave ou simples. juntá-las ao feitio dos olhos. e palavra a palavra. refazer um nome num corpo com olhos castanhos e um olhar cansado. e as maçãs do rosto coradas de vergonha atraiçoam a timidez. num finíssimo silêncio de uma mão trémula a desenhar o fim de uma idiotice – quero acreditar que sei falar a escrever – sonho – de volta à realidade descanso as mãos idiotas. se as mãos estiverem caladas deixarei de ser idiota – não posso acorrentar-me – há tanta gente por aí a escrever idiotices e não deixam de escrever – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para uma única pessoa me ouvir – talvez tudo não passe de uma farpa. uma palavra espetada de esguelha no dedo indicador da mão que teima em escrever – se for assim é fácil. com uma palavra agulha rasgo a pele e retiro a farpa. para sempre – as farpas. escritas por eça de queirós e ramalho ortigão. foram uma caricatura da sociedade da época. talvez esta farpa também represente o que de pior há em mim. uma caricatura – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para duas pessoas – o problema é dizer o que sou nas palavras. não é fácil dizer-se o que se é em palavras. as mãos tremem-me penduradas num corpo que também treme – talvez não seja idiotice. nem demência. talvez seja parkinson. mas o coração também treme. talvez um ataque cardíaco. talvez uma fobia. uma overdose de palavras difíceis. talvez esteja num sonho. e a cadeira é afinal uma pedra lascada. e o computador é uma janela de um catraio do passado que desenha letras em cadernos de duas linhas – talvez não saiba mesmo escrever. e a loucura seja mesmo essa: escrever – talvez afinal não seja idiota. talvez o corpo esteja infetado por um fungo-bolor onde a realidade é atacada e manipulada por bolores alucinogénios – ganzo-me a escrever. quem diria. as palavras são uma droga poderosíssima – um destes dias sou preso por consumo e tráfego de palavras perigosas e proibidas – antigamente a polícia andava sempre à procura de quem escrevia. e havia gente especializada na leitura destes textos. punham carimbos enormes a dizer: censurado – um dia também eu sou preso. censurado não creio. se soubesse escrever talvez me prendessem por um dia – talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para três pessoas – tenho a sensação de que estou fechado num elevador parado entre o céu e o inferno e a porta teima em não abrir. carrego num botão. e noutro. e outro. e em todos ao mesmo tempo e nada. tudo parado. paralisado. e um murro na porta igual ao que dou aos dicionários e nada. nada se abre aos meus olhos. da porta para lá nada. como as palavras. da cabeça para lá. nada – nada. e o elevador parado. e as palavras paradas. e eu a bater com as mãos nas teclas a fingir que escrevo o que sou – não sei fazer palavras – mas eu sei que existem. sei. sei. e sei.  ouvi-as na boca de gente diferente – dinis. eça. antunes. andrade. breyner. garret. espanca. pessoa. camões. branco. saramago. estes nomes não me são estranhos. esta gente sabia o que fazer às palavras. existiram. tenho a certeza. vi livros com estes nomes impressos – existem. não sou idiota – mas eu também existo. tenho a certeza. não pode ser loucura. talvez as palavras sejam loucas e não digam o que me vai dentro do corpo. mas só as palavras. porque tudo o que está à minha volta existe. e do lado da porta deste elevador parado entre o céu e o inferno há gente. também com nomes. sei – todos temos nomes. mas confesso que não sei o nome dos meus vizinhos. nunca me escreveram. dizem boa tarde. bom dia. está sol. está mau tempo. tem que se agasalhar. cuidado com o frio. ainda ontem entrou no reino de deus o vizinho do cinquenta e três. o que vivia no terceiro frente. uma pontada de ar e lá foi. que deus o tenha a seu lado – de seguida silêncio. também não tenho nome. talvez porque nunca lhes escrevi – tudo se resume à palavra escrita – as pessoas existem mesmo sem saber escrever. isso eu sei. se não como seria possível eu estar aqui a fingir que sei escrever. se finjo logo existo – a minha vizinha do quarto andar tem um cão branco. também existe. o meu vizinho do sexto com o bigode também existe. e o GNR reformado que vive ao lado da vizinha portista também existe. e o cão do primeiro andar frente também existe – as palavras são cada vez mais complicadas para alguém como eu: hipopotomonstrosesquipedaliofobia. medo. doente de medo. sem cura. raio de palavra enorme para dizer tão pouco. medo – dizem os entendidos que a terapia recomendada para aliviar o corpo deste mal é escrever mesmo que não se saiba muito bem o que se escreve. como quem diz. o que se quer dizer – sou mesmo idiota. para que escrevo se não sei escrever o que tenho dentro do corpo – escrevo – escrevo um texto que não é este. este é só para desabafar esta raiva de não saber gritar com palavras – que tristeza – nem por saber que tenho uma amiga que quando acorda se senta na cama a ler este idiota – sorte a minha. devo ser o único palerma do mundo que tem alguém que gosta de acordar com palavras de um tolo – debruça-se para um raio de sol. o primeiro da manhã puxado por deusas vítreas até à sua almofada feita de penas de anjos. onde os seus cabelos desarrumados seguram os sonhos de um idiota incorrigível – adelgaça as palavras com afeição. com estima. com um “bem-me-quer” que me abraça em confiança. e a sua leitura é agora tudo o que não escrevi – há outra vida nas palavras. não aquelas que escrevi em delírio. mas as que são lidas em pureza nos primeiros raios de sol das manhãs – tudo tão leve. tudo tão sem peso. tudo tão pueril. tudo tão inocente neste acordar enviado pelos anjos – escrevo. escrevo para acordar as palavras que dizem o que não consegui dizer enquanto idiota. talvez alquimia. magia. uma que faz das letras grãos de areia finíssimas. quase inúteis. se não fossem pó não eram nada – nada também existe no dicionário de português:

na·da
(latim [res] nata, coisa nascida)

pronome indefinido

1. Coisa nenhuma (ex.: estava escuro e não vi nada; nada lhe despertou a atenção).

substantivo masculino

2. O que não existe; o não-ser.

3. [Por extensão]  Pouca coisa. = BAGATELA

4. [Figurado]   Fragilidade.

advérbio

5. Expressa negação; de modo nenhum. = NÃO

 

 

quando escrevo sou tudo isto: nada

mas. 

talvez saiba escrever. talvez. nem que seja para meia dúzia de pessoas

 


25/04/2014

a centrifugação da existência



lynch-Smith

quando não compreendo algo. seja o que me magoa ou ainda altera substancialmente o meu equilíbrio emocional. e as dúvidas passam a ocupar todo o meu espaço corporal. fico preocupado – não estou habituado a que o erro acabe por consumir todo o meu lado bom – recorro então à imaginação e forço o corpo a acreditar que a vida está a seguir o seu percurso normal da seleção das espécies – o planeta terra não para de centrifugar. voltas e mais voltas. sempre à mesma velocidade. geram a primavera e o outono – quem diria – incrivelmente tudo nasce e morre neste ciclo. e o planeta. sempre a sorrir. carregado com o saber de milhões e milhões de anos de perdas – foi assim que chegamos ao homem dos nossos dias – imagino então a terra como uma máquina de lavar roupa. a trouxa suja para dentro do tambor. e o programa a fazer a lavagem a altas temperaturas com os glutões do presto a comerem tudo o que é nódoa – só não me vejo a torcer

 

16/04/2014

mais um ano



jean-michel folon
   

a minha juventude foi muito agitada. desajeitada e rebelde – gosto de culpar o 25 de abril por todos os males de que padeço. mas não é verdade – o que seria das minhas palavras sem abril? não trocava abril por nada. crescer com a revolução é um daqueles momentos únicos que a vida não repete – sem abril estaria vazio. talvez até vazio de erro – faço parte do erro. agarrei a liberdade sem defesas e acabei por sucumbir ao seu encanto – por ali fiquei a trovar. sem métrica. sem rima. por num compasso que nunca soube acompanhar – agora que envelheci escrevo prosa para sobreviver – estou triste. escrevo – quero desabafar. escrevo – quero respirar. escrevo – quero dar uma sova. escrevo – quero dizer que amo. escrevo – quero odiar. escrevo – escrevo para tudo e para mim – escrevo porque quero continuar a envelhecer com as palavras que ainda não escrevi – escrevo para não morrer no meio de um amor não correspondido: a vida – a vida nunca me amou. talvez por não ser poeta. talvez por nunca ter dito que gosto muito de todos aqueles que fazem parte da minha vida – amo-vos. amo-vos. amo-vos.  a todos – escrevo para falar – bem hajam


15/04/2014

heurística


gary milnner
 
 

apoiado-me no lamento

desalegro-me. atrido

desdobro uma noite

apenas minha

 

no céu. a cassiopeia

retraça-me

inclemente

apela em chama

à heurística.

 

interrogo-me entre deuses terrenos

escuto-me entre giestas bravas

digo-me entre pedras afiadas

respondo-me entre teorias de evolução

 

os olhos escancelados

deslumbram uma rosa

na beleza. os espinhos



14/04/2014

eu. os amigos. e celestinha tem bombocas



fabian perez


adolescente. um dia para os amigos. um minuto para o corpo. a bola a saltar e o pião a rolar num peito atravessado a vento sul. a puxar gaivotas para um mar nunca antes navegado. e o cabelo castanho. imortal. desviado para o lado mais a seu jeito – sou primavera. abril. e os dias pequenos para tanto coração – nesse tempo não havia inverno. ossos rijos. braços fortes. pernas a correr acima do tronco e os olhos a avistar dias para lá do ocaso – no corpo. os amigos a trabalhar dia e noite. como relógios pendurados em paredes de pedra. com séculos. os ponteiros a marcar o futuro ao segundo num tic tac imperceptível – queria tanto crescer – e os dias a imitar tartarugas. demorados. o sol incapaz de fazer sombra. nem vento. nem frio. nem arrepios. nem medos. a gola alta tapa a garganta franzina que não se cansa de gritar o nome dos amigos. zé do gerês. tiago. agostinho. jorge. toni. vicente. fernando. fontes. rui. meno. tó mané. carlitos. lúcio. pimenta. joca. luís vieira. quim. leites. paulo (s). pedro. gijo. miguel. joão. zeca [que “deus” me perdoe se me esqueci de algum] – éramos tantos. ainda somos muitos. mas não tantos. há agora um mundo novo. um mundo bom e justo. onde os corpos não adoecem. as amizades não acabam. as palavras nunca ficam por dizer – um mundo que desejo acreditar. passam-se os dias a jogar à bola. o luís vieira entre duas nuvens. a fingir postes de uma baliza. defendendo como guarda-redes. o joca [filho do gaspar chapeiro] chuta de trivela. em estilo. com o corpo a inclinar-se para o lado de uma conversa que nunca tivemos

devo-te um pedido de desculpas. espero que me perdoes. partiste tão rápido. sem ao menos um café. um abraço.  sei lá. algo que me deixasse ficar em paz

de tanta vida gasta. sobra-me hoje este único arrependimento. coisas da juventude – sou dos mais novos do rebanho. sempre quis ter amigos mais velhos. sempre soube que estes sabiam o que eu desconhecia – éramos um clã. uma tribo da praça do comércio. quem aqui nasce ou cresce. fica marcado para sempre. como ferro quente nos rebanhos – os gregos e romanos também usaram técnicas de fogo nos seus rebanhos. o seu legado correu o mundo – o nosso fogo era diferente. marcava o coração. era feito de inocência. de ingenuidade. de fé. de camaradagem. de bondade. de amparo. de abraço. de fraternidade. de verdade. nos olhos duas luzinhas vivas. acesas. brasa para temperar ferro – mais um dia. mais futebol – frente a frente. os dois mais velhos. deitam os pés. como um duelo. o primeiro que  toca a ponta do pé começa a escolher a equipa. primeiro os mais velhos. de seguida os melhores jogadores e finalmente os putos – emudecimento. os putos ficavam sempre para último. aceitam o que lhes cabe por sorte em silêncio – tu vais para a baliza – de um lado uma pedra. do outro um poste de luz que nada alumia. fundido pelos remates perdidos em ais de um quase golo e as biqueiras dos sapatos sem tinta. e nos ouvidos a certeza de que a minha mãe um dia destes cumpria a promessa de me comprar umas chancas

ó rapaz. olha como tens esses sapatos comprados há menos de um mês. pensas que o teu pai é rico

um género de praxe académica dos nossos dias. os grandes exerciam um poder absoluto na miudagem. físico. se necessário. psicológico obrigatório – a livre expressão da individualidade como parceiro de equipa. que se limitava a um abanar da cabeça. dizer sim – e eu ali. olhos caídos em mudez. acotinhados a um canto. a receber ordens. mas bem lá por dentro. alegre por partilhar um espaço-tempo ao lado dos grandes – os putos são felizes com tão pouco – o jogo vai começar. muda aos seis. acaba aos doze. não há desforra – e ali fico eu a vê-los a correr de um lado para o outro. encostado ao poste de luz. fundido. a pedra é muito pequena. mais pequena do que qualquer puto com o sonho de crescer o mais rápido possível

passa. passa. olha o carlitos. chuta. golo. golo. golo  

a culpa era sempre do puto da baliza. olhos para baixo. boca fechada antes que um dos grandes se irritasse e me fizesse a andar a mil – os mais velhos tinham sempre razão – mas os amigos grandes são assim. às vezes injustos. não importava. o  importante era fazer parte do seu mundo. fazer parte do jogo. estar na equipa. pertencer ao rebanho – e ali estou a crescer. a conhecê-los pelos gestos. pelas vozes grossas. todas diferentes. pela roupa. e eles todos elegantes a falar com palavras que nunca tinha ouvido. não eram da escola. eram da vida. dos anos. da altura do corpo. enquanto batiam com o cigarro na palma da mão. e o fósforo acendia um fogo de desejo nos meus olhos – queria crescer. queria ser também eu enorme e bater com o cigarro. apertar o tabaco naquele tubo de papel e fazer fumo às bolinhas. ritmadas pelos maxilares. a mexer para cima e para baixo. como vulcão a anunciar erupção. explosão. expansão. e o fumo. engolido em golfadas. sai pelo nariz de um novo guerreiro. enquanto a ponta do cigarro era confiscada por mais um puto. a beata. agora em posse de um novo dono. queima entre dedos. pouco mais resta do que o filtro. e os meus olhos a ver o tempo arder. e por cada segundo queimado. uma a menos. passa num filtro amarrotado de conversa de amigos. para sempre – quero ser grande – camarada. raio de palavra. companheiro. raio de palavra. amigo. raio de palavra. para onde foram estas palavras? para onde? roubaram-mas e não percebi. quando estamos a crescer não damos conta de quase nada – agora sou gigantesco. fumo. e por cada golfada de fumo um centímetro de altura – os mais velhos naquele tempo eram mais sábios. ouvi-los era aprender. respeitá-los era obrigatório. fumar era crescer no respeito – sabiam tantas coisas que eu não sabia. meu deus. como eram inteligentes. e bonitos. sempre a sorrirem. e eu ali a olhar. invejoso. a querer ser como todos eles. e eles a falar. e eu sem conseguir ouvir todos ao mesmo tempo. e eles a apontar para o futuro. e eu sem saber onde estava o meu. e eles com as calças vincadas e eu todo engelhado. e eles com os pés no chão e eu com a cabeça no ar. eram tão bonitos. eram meus amigos e os amigos são sempre bonitos. eram os melhores amigos do mundo. enormes. tão grandes como a roda gigante das diversões. vinha todos os anos para as festas da cidade em honra de s. joão. e eu. às voltas a tentar ver o mundo pela sua altura. como a roda. a girar. sem parar. sem parar – era enorme esta roda. eles também – ninguém tinha amigos como eu – com a chegada da noite a recolha obrigatória dos corpos. era o meu momento de profunda tristeza – sem eles estava só. num silêncio de morte. um silêncio sem existência de vida. de confiança. de segurança. de amor. de tudo – eles eram tudo

até amanhã pessoal

e lá os levava eu para casa. todos. sem saberem. eram tantos. todos tão diferentes e especiais – colocava-os na cómoda. de frente para a cama. separados por tamanhos. os mais velhos ficavam à frente. queria-os sempre à mão. a fintar a escuridão. a passar a bola de pé para pé. e o polícia de giro sisudo a dizer:

meninos. toca a guardar a bola. estão fartos de saber que é proibido jogar nos passeios. vamos ter problemas  

olhos no chão. a bola nas costas debaixo da camisete. um silêncio de quem é culpado pela quinquagésima vez. e as cabeças a dizer que sim. juravam com os dedos em figas que não voltaríamos a jogar na rua – ninguém pecava. ninguém mentia. os dedos cruzados em figas eram a absolvição. código de honra entre amigos – e ali ficavam eles até que o dia chamasse pelo meu nome – queria tanto que me conhecessem. bem sei que estava a dormir. mas também sei que falo enquanto sonho. eles estavam em todos os meus sonhos. quem sabe dizia algo importante. de afeição. e pela manhã acordava com abraços a dizer: bom dia amigo. estamos à tua espera – tinha tanta coisa importante para lhes dizer. sonhos. pedacinhos de coisas prontas a construir lugares onde a amizade é para sempre – doce vida. doce jovem. doce esperança. as mãos em formação seguravam vidas que não eram minhas – a padaria lusitana. servida por duas portas. era verão se estavam abertas. faziam corrente de ar. e o cheirinho ao pão a passear por cima dos ombros de miúdos a rebolar pelo chão. a jogar à carica na beira de um passeio de pedra silenciosa – ninguém falava quando nós gritávamos. éramos ciclistas. queríamos acreditar. e o camisola amarela representava todos os meus amigos – eu lá ia. pendurado no carro vassoura. feliz por vê-los felizes – não entra nestas corridas quem quer – tanta gente naquela rua. tanta gente naquela praça. tanta gente no meu mundo – a celestinha de bata branca. atrás do balcão. relatava a sua vida aos clientes enquanto a soma era feita de meias dúzias

celestinha dúzia e meia para mim. estaladiços. hoje estou com pressa

a freguesa segurava uma saca de tecido bordada à mão com três letras: pão – nada era mais importante do que o pão na vida das famílias. vizinhos. amigos. todos sabiam o meu nome – os meus amigos eram o meu pão. alimentavam-me com a esperança de um mundo azul. com mar. sol e sal. com gaivotas. livres como o vento. feitas de asas. feitas de eternidade – e as meias dúzias a cair das prateleiras de madeira coloridas de farinha a imitar neve em montanhas mágicas. na saca a lenda da rainha santa isabel: rosas senhor. rosas – havia tanta gente a sorrir. eu também – onde está essa gente dos sorrisos? onde? morreu? talvez. eu também morri e as sacas bordadas. estamos todos mortos e nem demos ainda conta – o meu amigo tiago pergunta:

celestinha tem bombocas? esgotaram menino. agora só na próxima semana

éramos todos meninos. éramos todos meninos e eu. sem saber. e eles. sem saber. só o tempo sabia da nossa meninice. talvez por isso me acordava sempre com sol. persiana para cima. pijama fora. escada abaixo. e em duas passadas ali estava eu na rua. aos pinchos. bola na mão. e os compinchas a chegar um a um. e os dias a sorrir até cair de cansaço na noite

mais dois e já dá para jogarmos três contra três ou então aos centros. a deitar fora

um a um. depois do jantar. juntávamos a amizade numa roda que se fechava numa aliança imortal – falávamos de tudo que era nada. e tudo fazia sentido. e eu ali a fechar um círculo que nunca percebi onde começava na certeza de que nunca seria mais feliz em lugar nenhum do mundo – o meu mundo era ali. naquele círculo. naquela aliança. afortunado – noite. sou agora silêncio. escondo-me. tenho medo de ficar sozinho – 23.30. está  na hora de voltar a casa. o oceano pacífico começa à meia noite. RFM – sintonizo a emissora e ouço o mar a ir e a voltar. as músicas calmas acompanham o corpo numa melancolia-saudade. nunca mais é manhã – noite. longe dos meus amigos é sempre tão demorada. ler era aliviar o corpo do peso do relógio – o silêncio também se distrai com o tempo. leio. leio. leio. só os livros falam comigo. para eles eu estou ali tal e qual como nos sonhos. sem censura. sem idade. sem correrias. sem tristeza. estou apenas ali. deitado de bruços na cama a segurar o saber. alumiado por uma lâmpada de quarenta velas a florir a minha solidão – as noites eram gastas a sonhar com mundos que não conhecia na companhia do belga hercule poirot. detetive belga. personagem das histórias de agatha christie – tinha que saber tanto como o meu amigo zé do gerês. vestia aqueles pulôveres de decote redondo. chegado ao pescoço. que não deixavam sair as golas da camisa. não gostava do decote em bico. dizia com ar de quem possui a capacidade de saber todas as coisas do mundo – e eu a ouvi-lo. ainda hoje não gosto de pulôveres de bico. fiquei com quase tudo dele. era meu amigo. é meu amigo. será sempre meu amigo – há palavras que nunca lhe disse. possivelmente irei partir sem as dizer – e o tempo fez de mim o que hoje escrevo. fez muito pouco. muito pouco. raio de gajo que não serve para nada. nem para escrever o que sinto. e sinto tanto. nunca deixei de sentir. a infância nunca se deixa de sentir. nem se perde. nem se esquece. muito menos aquele desejo de abraçar um futuro idílico – o tempo passou. e agora descubro que só me trouxe dúvidas. as certezas ficaram todas na juventude



09/04/2014

retalhos – número de série 09042014s(r)ego12


jake e dinos chapman


desajeitado para o mundo – o termo é mesmo esse. sou um desajeitado para o meu mundo. entre os outros estou quase sempre a mais



02/04/2014

tudo-incondicional



leonid afremov
 

a minha amiga ana martins recordou no seu facebook uma prosa poética de minha autoria que se intitula - tudo

passaram-se três anos

acredito que para os mais novos. estes três míseros anos não são relevantes. afinal. o que são três anos no corpo imortal de um jovem – para mim. que a imortalidade já não é atingível. é um horror de tempo – infelizmente o tempo esgota-se velozmente

 

nestes três anos. muitas coisas se passaram dentro do corpo. muitas metamorfoses. mais dúvidas. mais perguntas sem respostas. mais viagens ao passado num esforço de credibilização do presente – uma luta contra os meus moinhos de vento - mas vida é isto mesmo. para alguns o destino é traçado com a hora do nascimento. para outros. são os atos criados à sua volta que indicam o caminho – o tempo passa. o corpo envelhece. a força que nos ergueu é agora aquela que nos empurra para dentro da terra – o desespero aumenta com a convicção de que cada vez temos menos verdades absolutas – nada é igual a ontem – tenho o corpo cansado na procura de uma razão para o que sou – aprender até morrer. o ditado tem razão

 

mas há certezas que já não mudam nunca mais. o “tudo” da minha prosa poética é agora definitivamente um tudo-incondicional

 

obrigado ana por trazeres um texto tão especial para mim

 

tudo-incondicional

 

passaram-se mais de três anos desde que escrevi a prosa poética “tudo”. é muito tempo numa vida que se consome cada vez mais rapidamente – tudo passa tão depressa.  quando damos conta. tudo o que temos é tempo gasto. algumas memórias e muita saudade de pessoas que fizeram parte da nossa vida e já partiram  – mas é assim para tudo e para todos – por muito que nos custe. a idade traz a morte e dentro desta vai o conhecimento de um mundo sentido e vivido sempre na primeira pessoa – voltando ao texto. confesso que este meu tudo está ultrapassado.  já não sinto o que sentia. já não sou capaz de escrever o que escrevi –  o dilatar da idade traz um saber que a juventude desconhece – diz-se que o amor aos filhos é incondicional. um tudo para toda a vida. para sempre – é verdade. mas para quem gosta de escrever como eu ainda é mais difícil transpor para a escrita esta incondicionalidade – sem palavras suficientes para o descrever. sem mãos capazes de o abraçar. sem lágrimas suficientes para ser chorado. um tudo que nos dói mesmo nas alegrias. sempre a crescer. o biberon. o primeiro passo. o primeiro dia da escola. a adolescência. a primeira namorada. e o homem feito de tudo que é nosso para sempre – não há tudo mais belo do que este. sei-o desde o dia em que me deram para os braços o meu primeiro filho. e a palavra pai é agora amada incondicionalmente. para o bem. para o mal. para a alegria. para a tristeza. para a saúde. para a doença. para a chegada do primeiro filho do meu filho – pai duas vezes. duas vezes tudo. duas vezes amor incondicional  – a minha companheira. a minha mãe dos meus filhos. a minha confidente. a minha amiga.  a minha amante. a minha força de vida. já não é tudo. não. o tudo é agora uma palavra só. sem sentido se não acrescentar a incondicionalidade – esse meu tudo passou a um tudo-incondicional – tudo na MJ é agora incondicional-tudo – os meus filhos e a minha companheira têm o meu amor incondicional – um tudo-incondicional. mesmo – até sentir os seus lábios quentes na minha carne gélida