hoje acordei com uma
caixa de música na cabeça – depois de um forte esforço matinal. lembrei-me do
realejo – a questão que pairou sobre o meu acordar ensonado foi saber o nome do
homem que toca o realejo – nada me ocorreu na memória coletiva. recorri. com a
destreza possível das manhãs. à memória seletiva e o resultado foi o mesmo. um
nada absoluto – depois de farto o estômago. o pequeno almoço é a principal
refeição de quem pensa. cansado da longa travessia do vazio da noite. nada
melhor do que um “petit dejeuner” leve. mediterrânico modesto. pão com manteiga
magra e uma meia de leite direta. tirada numa nespresso do famoso actor george
clooney. e uma almoçadeira “XPTO” com os dizeres: “breakfast” – percebi o
motivo por que se fala tanto na globalização. o estrangeirismo está por todo o
lado. faltou-me o financial times ao lado da tosta. e aquele ar de “self-made
man” que a todo o momento arranca para o mundo dos negócios. amarrado a uma
“long cashmere coat”. “paraguas” e “petite serviette en cuir noir” – não
aguentei a pressão da ignorância e saí em busca do conhecimento. tem de haver
um nome para o homem que toca o realejo – parti das premissas filosóficas. do
geral para o particular: - se os homens dos relógios são relojoeiros. então os
homens dos realejos são realejeiros – não me soou muito bem! há nesta palavra
um paladar avinagrado. azedo. assim… tipo iogurte fora de prazo – percebi.
talvez tardiamente. que um homem que toca uma caixa de música nunca poderia ser
um realejeiro. impossível. esta palavra não tem dignidade. fibra. não é
arrebatadora. ninguém ouve um realejeiro. por muita arte que o homem da música
tenha a dar à manivela – isso pensava eu. verão que vou mudar de ideias –
apenas os nomes simples perduram na história. manel. maria. tia alzira. tio
tone. arménio. quim. sr. silva. ou então um com “pedigree”. com sangue azul. um
nome que. só de olhar. absorva toda a história dos antepassados. lembrei-me. por
exemplo. dos pauliteiros de miranda – o exemplo não podia ser melhor. o nome
diz logo que estes gajos são do tempo do viriato. e os paus são apenas um
pormenor. esta região tocaria outra coisa qualquer. o seu DNA é daqueles que
não engana. e a música surgiria nem que fosse batendo com calhaus em latas de
salsichas – pensei então que o nome mais apropriado para o homem do realejo
seria “realejumúsico” – se este homem faz música tem toda a lógica este nome –
mas a questão reside em saber que tipo de música o homem do realejo toca. e se
isso influenciaria o nome da sua arte – imaginei um “realejeiro” a tocar jazz.
bem. o nome sofria logo uma mudança substancial. para cativar os aficionados do
jazz. o melhor seria o “realejeiro” chamar-se “realjazemúsico”. isto é. se este
tivesse importado a caixa de new orleans. e a música produzida pela manivela
permitisse imitar a trompete do louis armstrong – depressa compreendi. que este
nome. ligado ao jazz. era bastante redutor para os “realejeiros” da música
popular. os ditos pimbas. e que nunca ouviram jazz – ficariam ligados a uma
música influenciada pela comunidade negra. coisa que a nossa terra não está
preparada. por aqui. o fado ainda é o que dita as regras – mas ainda há os
nórdicos. os homens de cabelo loiro e olhos azuis. desgostosos com a conotação
do instrumento à cultura do cabelo afro e pele escura. é certo e sabido. que
estes gajos emproados não iriam gostar. e o mais certo seria o aparecimento de
um movimento anti-realejo – estou perante um caso daqueles que em linguagem popular.
se pode chamar de bicudo – vou ter que ter muito cuidado com as tendências musicais.
não posso castrar a clave do sol. o sol quando nasce. é para todos. logo. todas
as tendências musicais têm que se rever neste novo nome – não sou homem para
desistir de nada. mas depois de várias pesquisas “científicas” online.
enciclopédia luso-brasileira. dicionários de várias línguas. incluindo o
chinês. o árabe marroquino. romeno e o dos PALOPS. e outros meios que dispunha
para levar a cabo esta espinhosa tarefa. concluí. com muito estudo. que afinal
o nome que a linguística portuguesa construiu para este fazedor de música de “box”
é um nome bem simples: “o homem do realejo” – abriu-se uma brecha na história
para mim. posso finalmente criar um nome para um fazedor de arte musical com uma
manivela. uma arte milenar com um novo nome para o homem criador de sons
perfeitamente ligados entre si. quer isto dizer. música – este novo nome terá a
dignidade que há muito tempo é devida a estes homens da música – será um nome
próprio. capaz de ser sindicalizado. suficientemente aglutinador para levar em
frente a sua primeira associação de classe. e suficientemente robusto para
defender os seus interesses. e capaz de lhes devolver a dignidade que nunca
tiveram – estou espantado comigo. acabei de fazer uma viagem histórica. voltei
às lutas dos trabalhadores do século XIX em inglaterra. à revolução das massas.
dos direitos do operariado. do movimento sindical. da conquista do salário
justo. das desigualdades. enfim. a luta do proletariado contra o grande
patronato – estou estarrecido. pela primeira vez. faço parte da história. o meu
nome será “grândola” vila morena dos “realejeiros”. sou a revolução de uma
classe – a partir de hoje o homem do realejo será o “realejeiro” com toda a
dignidade que merece – estará ao mesmo nível dos relojoeiros. sapateiros. carpinteiros.
e até dos politiqueiros – sinto-me satisfeito. não por mim. que sou um
insatisfeito compulsivo. sinto-me satisfeito pelos “realejeiros” de todo o
mundo. e sei que não são poucos – mais tarde ou mais cedo. a humanidade
perceberá a importância dos “realejeiros” no desenvolvimento da arte musical
neste mundo inevitavelmente global – mas o mais importante é este acordar louco.
de um louco que vos escreve com prazer
29/11/2016
o nome do homem do realejo
25/11/2016
pensa[mente]
continuo
a pensar – pergunto-me como esta coisa de pensar pode ser importante a esta
hora da noite – tenho uns amigos loucos que dizem sempre que pensam muito – imagino
que seja por se acharem pensadores – toda a vida os ouvi murmurar. em voz que bem poderia ser considerada
alta. que são exímios pensadores – nunca
percebi bem o que eles pensavam assim de tão importante – talvez por isso sejam
mesmo muito inteligentes. guardam para si o mais importante – bem. talvez possa acontecer que eu. sem
saber. por ignorância pura. seja ainda mais louco do que eles –
nem sequer os consigo entender:
.
vou dormir
.
antes de dormir. deixo a
minha reflexão:
1
– pela manhã posso ser outra pessoa;
2
– posso não me lembrar de nada;
3
– ter outra perceção sobre loucura;
4
– já não ter amigos;
5
– não querer saber o que pensam os amigos;
6
– um [etc.] fica sempre bem num texto
.
talvez exista um conflito
de interesses. pessoais. digo eu – ainda estamos no plano de
animais racionais
16/11/2016
moliceiro
parei. banhado pelas
memórias
todos temos um dia que parar
mas queria tanto acabar de
pé
nesta imagem refletida sou
dor
ouço vozes da lida
jornaleira
almas sedentas gritam fome
e na labuta das rudes
enxadas
nasce o pão de mãos
escarpadas
com gritos de raiva me faço
subir
contra a corrente sofro a
sorrir
nas costas do rio. molice
levava
bravura das almas atadas ao
mar
hoje. apagado do tempo
presente
subo e desço em sonhos
perdidos
e na crença milagrosa de santa
joana
lembro a fé das margens em
festa
agora. aguardo a bravura do
tempo
e no levantar destas minhas
mãos
deixarei este meu ser
mergulhar
nesta água que me viu nascer
são
gonçalves. nossa colega do site luso poemas. desafiou-me a escrever sobre a
esta bonita imagem de um moliceiro – o resultado foi este
15/11/2016
12/11/2016
olhos cavados
lenço que cobre a alma
de espantos
onde olhos cavados são
rebentos tristes
negra é a cor
do que vê e do que lê.
é o mundo das mulheres
que se cobrem até aos pés
sonhos escondidos
atrás de um qualquer
onde
homens barbudos e cruéis.
punem as flores
com palavras
de alá
11/11/2016
tempo
tenho pena que alguns cérebros
dentro deste espaço global. não percebam que. para mim. escrever é passar a
minha verdade para o papel – a raiva é pelo caminho que percorri. pelo tempo em
que me enganei. e pelo desgaste que dei ao corpo em tempos que nunca
contaram para o meu tempo – agora. de tempos em tempos. corre em mim o tempo dos que já não têm tempo – toda a arte necessita de tempo. mas o tempo dos dias de hoje é um tempo em que ninguém tem
tempo para dar tempo – mas a grande verdade é que todos aqueles que desperdiçaram
o tempo. não se podem queixar da falta de tempo. mas apenas da falta de juízo
07/11/2016
05/11/2016
03/11/2016
ai. a sul
ai. se
um dia toco uma nova vida a sul. ai – talvez aí me pudésseis ver como realmente
sou. doido. a gargalhar do siso. e os braços. vigorosos. fortes. decididamente
amputados pela energia afirmativa numa indolência merecida – estou cada vez
mais certo desta necessidade de aniquilar o que me resta da memória a norte –
ai. como sei que estou certo – a sul. existe a promessa para um novo corpo.
quem sabe com um novo nome. com outra forma de escrever. mais pausada.
ponderada. precisa. justa e determinada. sem reticências. sem interrogações. e
sem vírgula a separar o sujeito do predicado – ai. como vou ser afortunado – a
vida andada a norte é uma oração complexa. dolorosa e de uma injustiça incompreensível.
onde as palavras que me fazem pessoa se concentram apenas na sobrevivência – um
dia mais. será sempre um dia a mais – ai. como isto é verdade – talvez por isso
ainda aqui estou – um dia a mais. será sempre um dia a mais – ai. como um único
dia pode fazer toda a diferença – assim. neste dia que é hoje. sou ainda uma
criatura humana. mesmo quando “não sou
nada”. e sei que “nunca serei nada”
– “não posso querer ser nada” apenas
com mais um dia – “à parte isso. tenho em
mim todos os sonhos do mundo” – nenhuma gaivota sobrevive à falta de vento
– ai. não sobrevive. não
“Não sou nada.
Nunca serei
nada.
Não posso
querer ser nada
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
a tabacaria – álvaro campos