e
aqui vai um sorriso. não pensem que é de felicidade.
não. não é. e também não é por nenhuma aproximação luxuriosa ao meu espaço
facebookiano vinda de um daqueles amigos íntimos que não conheço – então
perguntem em voz alta: porque estás feliz? a resposta é simples. vou almoçar e
estou determinado a dar continuidade aos dois quilos perdidos em duas semanas –
vou então. e sempre num ato de contrição. engolir comedidamente um prato de
sopa sem batata. e um iogurte de aroma da agros – acabei de ludibriar a fome
com a arte de um grande aldravão – de seguida remato com duas bolachas de água
e sal. um queijinho fresco e muita água para fazer brilhar os rins – nos
confins da casa. escondida atrás da porta da casa de banho. está a terrível
balança decimal. sem escrúpulos. afia a faca com vontade de me cortar às
postas: come. come. e depois anda dizer que estás inchado da retenção de
líquidos - não quero desculpas. se não emagreces... então estás a ingerir mais
do que gastas – presta atenção às calorias. rapaz. senão lá se vai a disciplina
– é que eu não alinho naquela máxima de que gordura é formosura. gordura é só
teimosia do corpo contra a minha vontade
31/03/2017
tortura
24/03/2017
o enforcado do facebook
lamento. acreditem que lamento mesmo. bem que gostava de
usar este face para outro fim que não fosse este. o de vos entregar este nada
em que me tornei – tal como os extremistas religiosos. também eu adotei um novo
nome para o facebook – bem sei que hoje é véspera de fim de semana. sei também que
amanhã será outro dia diferente de hoje. estarei então a olhar para coisas humanas
em estado eminente de ejaculação múltipla de amigos – direi: estou morto. morto
com a alegria dos outros. e eu. enterrado em tristeza. corro o facebook em
desespero e sinto a vida a partir. e a loucura envolta em água turva. tão turva
que os peixes não nadam. caminham de pé por dentro de mim. e as guelras. feitas
de naturezas mortas. maçãs podres. podres de sentimento. com sorrisos que
cantam o cântico da praxe: hino à alegria de beethoven – e eu viajo para a
morte arrastado por esta corrente de gente que não morre de solidão – só eu
vivo esta ironia. numa mão. uma rosa. na outra. um movimento louco de me atirar
para o fim do mundo. à procura de gente como eu – não encontro paz. vazio. tudo
vazio – e os olhos. a correr para uma morte que não escolhi. queria tanto encontrar
amigos como eu – estou cada vez mais só. só nesta forma de estar. e a prosa que
escrevo é carne da minha carne. contaminada pela lepra – não sei rir neste meu
face. não sei colocar frases de incentivo. não sei mandar beijinhos. não sei escancarar
a boca do amor para tantos amigos que não conheço. o meu rigor é uma muralha
que resiste – arrasto-me para esta borda do corpo. e juro que se um dia me
suicidar será para dentro do meu corpo. morrerei eu e os meus peixes. e
enterrarei os meus restos mortais no vale das utopias – estou morto por um punhado de likes. mas
ainda resisto ao lado escuro do facebook – resisto eu e o meu cão. neste mundo
de sombras mortas tentamos entender-nos: dou-lhe um biscoito e recebo em troca
um like de sorrisos de verdade – e então canto. canto poesia que não é minha. e
a morte premeditada ligada a um fio terra enrolado ao pescoço – o enforcado do tarot
sou eu – não sou nada neste meu facebook. não sei dar likes com o dedo polegar
para cima. porque estou de cabeça para baixo – não sou feliz. não – sou
verdadeiro na minha solidão
22/03/2017
lobo antunes em braga – livraria centésima página - I.II e III
I.
na hora da conclusão do trabalho nunca pode faltar martelo
e prego – o mestre afasta-se da obra. fecha um olho. inclina a cabeça para um
lado. mira. repete o gesto para o lado oposto. mira de novo. arregala os olhos.
finca os pés. aponta o prego. ajusta os dedos em pressão. atira o braço para
trás. ganha balanço e espaço e… zás. duas marteladas certeiras e a consciência
em paz: venha daí um terramoto que daqui nada abala – sou livro. agora e para
sempre – acredito que o antónio lobo antunes. nos retoques finais dos seus
livros. também sinta necessidade de pregar sempre mais um prego – se o antónio
fosse engraxador. daria aquele remate final de lustro: aquele movimento de arvorar
o pano tingido de graxa. ora vai para um lado. ora vai para o outro. ora mais
depressa. ora mais devagar. para aniquilar o bacilo anti brilho. e agora. um
movimento circular. e o pano a enrodilhar-se num círculo cada vez mais estreito.
tudo de volta ao começo. as mãos a puxá-lo para um lado e para o outro. nos
intervalos deste vai e vem. um lance de
génio: o pano sobe em diagonal. como se fosse uma montanha-russa e de seguida
uma queda abrupta. em força. e o barulho do pano a estalar no couro. trás.
trás. trás – nos olhos. um prazer que nunca percebi de onde vinha. se do
movimento enérgico do braço ou do barulho do pano a estatelar-se no brilho do
sapato – o que seria do brilho do sapato sem aquele estalar do couro – e no
final. quando os pés se aproximavam do chão. os olhos afundavam-se nos sapatos.
lindos. como se voltassem a ser novos. quase jurava que me via no seu reflexo –
mas o antónio diz que é um carpinteiro e. sendo assim. só pode mesmo cravar uns
pregos para garantir que a sua obra ficará para a eternidade – no caso do sr.
antónio. que é um escritor enorme. do tamanho de uma biblioteca. creio que lhe baste
um pequeníssimo prego. uma taxinha finíssima. quase invisível. para garantir. mais
uma vez. que a sua obra perdurará para sempre – este homem é especial. ele não
escreve. ele entrega-nos as palavras ao ouvido. como se falasse apenas para nós
– o eco das palavras a percorrer o ouvido. com uma delicadeza fascinante. e o
corpo arrepiado com tanta amabilidade. mel. graciosidade e por dentro uma
sensação de conforto. de aconchego. a fazer bem. a dar luz a umas quantas
incoerências – e repete. e repete. e repete. e o ouvido sempre à procura de
mais delicadeza. de mais conforto. de mais tranquilidade. com uma atenção que desconhecia
para as palavras escritas. e a repetição no ouvido sem parar. a embalar o corpo
para uma paz que me aperta com carinho – para cada um dos seus textos um milhão
de perguntas por lhe fazer: como se lembrou de escrever essa coisa? o sr.
antónio diz que foi por dinheiro. a pedido de um jornal. e que até nem lhe
tinha grande amor – bendito jornal – eu amo as suas crónicas. fazem-me bem.
distraem-me. fico assim um pouco como a sua tia velhota que. quando lhe
perguntavam porque não tinha TV. lhe respondia: quando fecho os olhos vejo
tanta coisa – poi eu estou igual. quando fecho o seu livro de crónicas. também
passo a ver tanta coisa – mas quando caio em mim novamente. sou invadido por
uma realidade danada – levo um soco no ego. caio para o lado. atordoado. e à
cabeça. o raio de uma pergunta: não sei como ainda tenho coragem de escrever
II.
dezembro de 2012 – chove copiosamente na minha cidade. braga.
mais propriamente na sua sala de visitas. avenida central – estou agora na
livraria centésima página. e tenho a honra de vos anunciar. que o antónio lobo
antunes é muito mais bonito ao vivo do que nas contracapas dos seus livros – entrou
na livraria como um pistoleiro no saloon. passo firme. acelerado. ritmado. sem
desviar os olhos do infindável destino: uma cadeira e uma mesa modesta decorada
com uma garrafa de água – visita a minha cidade para uma
sessão de autógrafos a propósito do seu novo romance: “não é meia-noite quem
quer” – o silêncio foi-se arrumando pela sala ao ritmo das cadeiras que se
ocupavam – os seus admiradores miravam-no de soslaio. como se receassem encarar
de frente o seu ídolo. talvez temessem que. a qualquer momento. ele perguntasse:
-- está a olhar para onde. amigo? toca a andar. desocupe-me o espaço – sempre
foi público o seu mau feitio. coisa de nascença. sorrisos. só quando estritamente
necessário. já nessa altura a sua mãe reclamava: -- só tens interesse pelas raparigas
e pela escrita. ao que respondia: -- existe algo mais importante? por isso não
é de estranhar o seu afastamento seletivo do resto do mundo. nunca foi muito
dado a intimidades com os leitores. e a fama de aterrorizar entrevistadores não
ajudava – sentado. inquieto. ajeitou o corpo. fletiu as pernas. lançou o olhar
para o nada e ausentou-se do mundo à sua volta. assim como quem diz: usem o meu
corpo. mas não abusem da minha paciência – estou convencido de que. para lobo antunes.
a sala naquele momento estava vazia. presentes. apenas ele e os livros interrompidos
nas prateleiras – e ali ficou sentado. a remoer os ossos. de um lado para outro.
como se tivesse bichos carpinteiros. enquanto as mãos trabalhadas descansavam sobre
a mesa. sabiam que. a qualquer instante. teriam de dar início a mais uma
palestra – o sr. antónio fala muito com as mãos – o momento era particular para
mim. pela primeira vez tinha o autor em carne e osso diante de mim. nos livros
já o sentira por perto muitas vezes. agora era diferente. agora podia senti-lo
num único aroma – o momento não era fácil para mim. sentia-me nervoso. agitado.
impaciente por ver o tempo passar sem que se desse início à cerimónia – não
havia alternativa. tinha que aguentar firme. afinal. era um dia único. um dia especial para os seus admiradores. até os
livros interrompidos nas prateleiras me pareciam engalanados de atenções.
bonitos. com as capas a reluzir. tudo edições raras e de autores consagrados. em
destaque a nossa maior obra poética. os lusíadas. ao seu lado a sophia de mello
breyner andresen. como era bonita esta mulher. só a sua escrita supera os seus
encantos. e logo de seguida o meu adorado júlio dinis. quantas vezes chorei nos
seus livros. marcou-me a vida para sempre. ao seu lado o eça. sempre empoleirado
no crime do padre amaro. que loucura de história. o júlio não podia ter melhor companhia.
seguem-se os poemas do eugénio. de uma sensibilidade ímpar. como se pode dizer
tanto com tão poucas palavras. e mais o camilo com aquele bigode inconfundível.
e o saramago empoleirado no nobel. meu deus que loucura. que honra. olha! mais
um que um dia vai dar que falar. o josé luís peixoto. gosto deste homem. já
brilha. e tantos. tantos outros. aos magotes – dos estrangeiros não falo.
afinal estamos na pátria de camões e não é todos os dias que uma pequena
livraria recebe em sua casa um galardoado com o “nobel latino” – o cenário era nobre.
gracioso. não podia ser melhor. o maior escritor português vivo rodeado de
livros por todos os lados – escondi-me na segunda fila tentando passar a ideia
de que estava por ali apenas pelo mau tempo. chovia. passava à porta e pensei: “aí
está um local agradável para me abrigar da intempérie. voilá” – nunca gostei de estar na primeira fila – certo dia.
contaram-me uma história curiosa sobre a entrada em cena dos atores: dizem que quando
sobem ao palco tentam perceber que tipo de público está na sua presença. dão
dois passos em frente. dobram-se em vénia. e colocam os olhos na primeira fila.
conforme levantam o corpo. em movimento lento. olham
para as últimas três ou quatro filas. o que sobra. no meio. é a plateia comum – aqui está o dia perfeito para confirmar a teoria.
espero bem que não me tenham enganado e que o sr. antónio me considere parte
desse povo. sentei-me na segunda fila – a sessão
abriu com a intervenção do responsável pela editora. recheada de amabilidades
perfeitamente dispensáveis – mas o protocolo é para cumprir. felizmente. logo perceberam
que o melhor era entregar a palavra ao convidado – começou a roçar o corpo na
cadeira de um lado para o outro. enquanto as palavras saíam a custo. um gaguejo
tranquilo para ali e logo outro para acolá. depois. um silêncio que parecia uma
eternidade. e tudo num vagar de assustar. e lá chegava outra palavra. outra
ideia. e os fãs a baloiçar na entrega. e mais uma palavra. e mais um silêncio e
as dúvidas a crescer na plateia: será que o homem quer mesmo falar para estes tontos?
e o emudecimento a ganhar distância. as palavras cada vez mais espaçadas – o
silêncio crescia atabalhoadamente. abafado apenas pelo barulho da chuva no
exterior. chove a cântaros na minha cidade – só as palavras não chovem – por
momentos fiquei convencido de que o autor iria sair como entrou: a galope e aos
tiros para o ar. os pistoleiros são assim – mas não me importei. e disse para
mim mesmo: se não falar com a boca. fico-lhe com os gestos. com os olhos. com
os tiques. com a cor das mãos. da pele. afinal. não é todos os dias que se tem antónio
lobo antunes na cidade – mas aos poucos as palavras começaram a cair-lhe da
boca. como se descobrissem que estava na hora de tomar a plateia – e eu ali. estarrecido
de medo. babado. doido para não perder uma única sílaba. com a cabeça dobrada
para a frente. todos queriam ser os primeiros a agarrar as palavras. e os olhos
esbugalhados de tanta excitação e por dentro uma sensação de orgasmo. quente.
com o coração a bater num tic-tac frenético. um contentamento estranho. louco.
maravilhado. e a pergunta: porque não fiquei na primeira fila? e ali estava eu
com o meu corpo estátua. completamente paralisado. perdido entre a imortalidade
dos deuses e a gratidão eterna por existir aquele momento – só os olhos lhe seguiam
as mãos. tudo o resto é paralisia. e não se irritam os deuses – enquanto a
chuva amainava. as palavras caíam-lhe da boca em enxurrada. afinal. havia uma
razão para o mau tempo na minha cidade – finalmente. tínhamos lobo antunes ali.
o corpo atirou-se definitivamente para cima da mesa. estava agora ainda mais
perto de mim e eu sem receio de o olhar naqueles olhos translúcidos. livres. bonitos.
amenos. feitos de um silêncio-solidão-doce – só quem fala conhece o verdadeiro valor
da palavra – os lábios. sem descanso. falavam agora desconcertadamente. contorcendo-se
de prazer. numa cadência harmoniosa. com paixão. com gosto. com ternura. com
entrega. gratos ao momento – a vida é feita de momentos. alguns ficam guardados
para sempre. outros. nunca se fazem palavra – e não se cala. a voz em inflexões
subtis alerta: ouçam bem. esta parte é importante. e os afetos. finalmente. ali.
ali à minha frente. a tocarem-me por dentro. e pela primeira vez senti um
sofrimento que dói. mas não é dor. é um desconforto feliz. uma vontade de
chorar por não lhe poder dizer: eu já senti isso. eu já passei por isso. eu já
fui assim. eu já quis escrever isso. afinal também é um de nós – e eu. que pensava
que era extraterrestre – finalmente. senti um silêncio bom. pacato. sereno. a
plateia em ar de graça entregou-se ao autor sem medo – havia uma espécie de
bonança. a tempestade perdeu toda a sua força e os sorrisos do autor estavam
sem dono. eu guardei um só para mim – este homem é imenso e eu ali de braços cruzados. a olhar para
tudo que é dele. com um ar sério-doce. sério-aceitação. sério-bondade.
sério-fraternal. amigo. camarada. sério-triste também. até o casaco estava triste. pingado. amarrotado.
talvez da vida. não sei. que mais poderia fazer pingar um casaco tão especial. não
creio que lhe faltassem outros casacos. acredito. sim. que todos os casacos.
quando lhe caem nos ombros. ficam pingados. possivelmente. pelo peso das
palavras que carrega consigo
[tenho o sentimento de que neste texto ainda falta mais um prego. enorme.
capaz de segurar o prosista]
III.
lobo antunes diz apenas o que é estritamente
necessário. com classe. com ritmo. com as palavras a encaixarem umas nas outras
como legos. e tudo com aprumo. com vida. com ruas conhecidas. com “merceariazinhas.
lojecas. cabeleireiros pequenos. uma constelação de restaurantezitos.
sapateiros. costureiras. capelistas onde não habitam pessoas ricas” – fala do
presente. do passado. fala de si como é hoje. e também como foi na juventude. dos
dias em que ia para o hóquei no benfica. e os cigarros às escondidas intercalavam-se
com poemas rascos [diz ele]. e o leitor enlouquecido por esta escrita generosa –
só queria ficar-lhe com o casaco. deve guardar nos bolsos mil e muitas palavras
– sou um péssimo prosista. ele é genial – sou um mau contador de histórias.
queria ser melhor. muito melhor. queria saber escrever tudo exatamente como
sinto – o sr. antónio. está sempre tão
triste. sempre a dizer que é feito de silêncio. e que é necessário encher os
livros de sossego. com aquela “fininha melancolia do jorge barbosa”. como se
chamasse a nostalgia para dentro da leitura – a tristeza dele ao escrever. é a
nossa alegria ao ler – fico ali a sentir os ossos a doer. com as palavras
enroladas no corpo. a chamar pelo passado. e os vizinhos dele tão iguais aos
meus. as ruas com as mesmas casas. o mesmo abatimento nostálgico. e o cigarro
dele a lembrar-me do meu. escondido. aceso no bolso das calças. enquanto o meu
pai me dava uma reprimenda por fumar– só não tinha o benfica ao pé de casa. nem
ia para o hóquei em patins como o antónio. mas tinha uns patins que o meu pai me trouxe da
itália – nunca fui um grande amante de rodinhas nos pés. iam depressa demais para
o meu equilíbrio. e para que serve ter rodinhas nos pés se nenhum dos meus
amigos as tinha – jogar à bola nos passeios da rua era a solução. aí sim. todos
estávamos ao mesmo nível. as ponteiras dos sapatos esfoladas dos chutos que
começavam pela manhã e só acabavam à noitinha. com a minha mãe a prometer-me
uma carga de porrada pelos estragos nos sapatos de domingo – depois. aquele ar
no sobrolho carregado. o corpo inclinado para a frente. a dar ideia de que. a
qualquer momento. se levanta e parte da mesma forma que chegou. com ar de
pistoleiro. em silêncio e triste. como as noites que não me deixam encontrar o
descanso – a mão estendida a fumegar alcatrão pelas pontas dos dedos. raio de
vício sr. antónio. e a outra apegada ao pensamento braceja em todas as direções.
e a boca ali parada. nem respirava. como se não soubesse onde escondera as
palavras. e eu atrás da mão por todo lado à espera de uma magia – o sr. antónio
é mágico – há frases que só ele sabe compor. mas finge que não sabe – primeiro silêncio.
depois parece que vai falar. as palavras nos lábios. a saltitar como pipocas. mas
não. engole-as novamente – e eu ali a dar conta de tudo. as palavras a regressar
ao estômago. e mais uma volta. sente-se na face todo o processo de fabricação.
e os olhos a olhar em direção ao nada. não existe nada no chão. e silêncio.
mais uma volta na cadeira. para dentro de si. o corpo mais pequeno. as palavras
a dar voltas. e eu ali. à espera de ser baleado por uma rajada de palavras. não
matam. mas avivam a cor dos olhos. os meus parecem faróis – e o sr. antónio
ali. como se a vida fosse unicamente a sua presença. e eu morto de medo – quem
é que não tem medo de um homem que escreve com um olho aberto. a tomar conta de
quem o escuta. e o outro. meio fechado. a olhar para dentro de si. como se
houvesse um túnel para outro mundo. o dos dinossauros – talvez seja mesmo isso.
ele é um dinossauro da literatura. todas as palavras são fabricadas sem prazo.
são eternas. “einstein na sua teoria defendia que a noção de tempo não podia
ser reduzida ao tempo cronometrado. visível nos relógios. e que a ciência exata
e o racionalismo não eram as melhores ferramentas para compreender a realidade”.
exatamente o que sinto ao ler os seus livros. perco a noção de tempo. e a minha racionalidade fica comprometida – e
mais uma volta à cadeira. e a sala parece pequena com aquele homem imenso. o
corpo ocupa tudo o que quero ver. só ele e as suas palavras existem. tudo o
resto é vácuo – apetece-me chorar – e mais uma palavra. e mais um livro lido na
juventude. eu não li. que vergonha. e outro. e também não li. e o sr. antónio a
olhar para a cadeira vazia a meu lado. e eu a pensar: ainda bem que não me
sentei ali – que seria de mim se estivesse ali sentado? logo eu que não sei
nada de literatura – silêncio. e lá vem os camaradas de guerra. “bonitos que se
fartavam”. com aqueles quicos nas cabeças. a valentia. os sorrisos. “os
cigarros enrolados”. homens para toda a vida moldados numa áfrica quente. com cheiro
a terra queimada. cheiro a vida. como se houvesse uma fogueira onde se queimavam
vidas. e a G3 a disparar balas que mataram a juventude para sempre – as balas
não sabem os nomes dos camaradas de armas. mas ele sabe. ele lembra-se de todos
– o nosso lobo antunes nunca erra. sabe tudo da arte de escrever – escreve-as seguidinhas. direitinhas.
bonitinhas. a dizerem tudo. e tudo como se fosse na minha rua. às vezes. até dentro
de mim – confesso que. às vezes. até se me arrepia a pele. fico com a sensação
de que nasceu com as palavras viveram dentro dele – não deve ser fácil para as
palavras viver dentro de um homem que lhes conhece todos os segredos – as
palavras não me têm respeito nenhum. sabem que não as conheço como um
verdadeiro escritor. e que nunca serei capaz de as usar como o sr. antónio –
sou muito franzininho. cedo percebi que os meus ossos não suportariam o peso
das palavras difíceis – as costas não foram talhadas. na mocidade. para grandes
cargas. e qualquer sinónimo mais puxado deixa-me esbaforido – já não cresço
mais. exceto o cabelo e as unhas – o cabelo comprido não me fica bem. quando
cresce mais um bocado. revira-se nas pontas. desequilibra-se. e cai sobre a
testa e tapa-me o olho direito – tenho impressão de que este meu olho é o único
que conhece as palavras – com o cabelo grande deixo de escrever. talvez
descenda de sansão e. ao contrário dele. a minha força dependa de ter o cabelo
cortado à escovinha – já das unhas é diferente. não gosto de as ver grandes
porque na minha juventude. o lúcio. que por sinal também usava cabelo comprido.
nunca cortava a unha do dedo mindinho e. de quando em vez. metia o dedito na
orelha. num gesto rápido. circular e certeiro. removia sempre uma palavra
difícil – envelhecer é terrível. que o diga o sr. antónio que. com o seu mau
feitio. despacha os gerúndios mais rápido do que a padeira de aljubarrota
despachava os castelhanos - foi uma
tarde memorável. ouvi-lo é um doce – quando damos conta do tempo. já não chove
na minha cidade. e também já não há lobo antunes
deambulações noturnas XV
e
pronto. passei a noite toda a
remexer nas memórias – mas o mais cruel é que nada do que encontrei pôde ser
alterado – não percebo para que guardo tanta tralha – vou ter que me limpar.
custe o que custar – mas confesso que não sei por onde começar
21/03/2017
espelhos
úlceras
estrábicas separam
palavras
lentes
de aumento
arremessam
os amigos
palavras
pequenas
juram-se
nos outros
ao
espelho
onde
a luz se segura
em
cristais
uns
e outros
decifram
o reflexo do mal
o
espelho. forjado pela imagem
gira
tudo o que lhe surge
meus
amigos leem de pé
os
outros
de
pernas para o ar
20/03/2017
dia do pai - 2017
em memória.
guardo o meu primeiro desejo como adolescente - ser pai – ser pai. na altura.
não compreendia bem de onde viera esse desejo - passei muito tempo sem entender
e. confesso. sem lhe atribuir grande importância - fui pai muito novo e. assim.
pensei ter colocado um ponto final nesse assunto - hoje. depois de mais um dia meu.
e do meu pai. a memória voltou e. em forma de prenda. trouxe-me de novo esse
sentimento iluminado e a sua resposta - muitas vezes. precisamos envelhecer
para alcançar a sabedoria natural do mundo - os meus filhos são a única razão
da minha vida. não houve um único dia em que não fosse grato à sua mãe pela sua
existência - são a minha maior afirmação na vida e a única que me enche de orgulho
- são homens fantásticos. bons. leais. honrados. homens de família. determinados
a enaltecer a justiça nos comportamentos - tenho a certeza de que também serão
bons pais – tê-los reunidos neste dia lembrou-me. mais uma vez. que ser pai é
para sempre – foi um momento de grande alegria e gratidão ao destino – já não
sou um homem de muita fé. mas se realmente existir esse deus em que um dia
acreditei. e se estiver enganado. que me perdoe. mas não se esqueça de os
proteger
13/03/2017
medo
se as
mãos não me tremessem. talvez o medo nunca soubesse que existo – e. quem sabe.
as palavras nasceriam mais íntegras aos olhos de quem as lê
12/03/2017
2 - há um dia em que despertamos e dizemos:
II.
e
aqui estou. completamente desacompanhado
neste lençol do qual me recuso a desprender.
entrevado em razões que não consigo explicar – enrodilho-me. eu e o lençol numa cumplicidade platónica. amante. doce. num silêncio que não é mais do que o
mundo sem humanos. sem erro. sem punição. sem preconceito. e principalmente. sem competição –
eu destapo a alma. ele tapa-me o
corpo. eu praguejo. ele dá-me serenidade. eu desisto. ele insiste na vida.
eu esqueço-me de mim. ele lembra-me
que a farsa só é contrariável quando permanecemos nos olhos do mundo –
felizmente ainda sei que só este meu corpo magoado dá existência ao lençol – acabou
o gigantismo. não mais crescerei. matei a hormona. estrangulei-a.
decapitei-a da ambição. fiz
acontecer a morte a um corpo ainda a viver.
finalmente – agora estou em desesperança num silêncio resignado. humilde. submisso. pesaroso. em forma de perdão à expectativa – com
o tempo dissipará todas as lembranças.
a fé toma a dimensão da realidade e a aceitação da desfortuna será apenas um
lamento baixinho: esperávamos mais –
nesse dia restará apenas o nome. somente
um nome singelo. sem imagem. sem boca. sem gestos. sem confiança. será só uma lápide – será no
desconhecido que encontrarão a totalidade de mim – revolvo-me mais uma vez e
peço compaixão. suplico uma horinha
rápida. estou prenho de morte. prometo ao desconhecido que não volto
a reencarnar. aceito o inferno como última morada – contorço-me. eu e o lençol. agoniamo-nos. amarguramo-nos. torturamo-nos. enquanto o lamento. em
desespero. pede à boca para gritar
perdão em voz que se faça ouvir pelo mundo – as mãos furibundas enrodilham o
cérebro com o que resta de apego à vontade de viver sufocando-lhe o desvario
para a eutanásia – viro-me para um lado.
depois para outro. e mais outro.
e o amanhecer sem acerto. e reviro-me
outra vez e nada dá certo. o lençol
cada vez mais amarrotado – afinal tudo estava errado. a saliva a cair-me
pelo canto da boca encharca o travesseiro de um pegajoso arrependimento – tudo
tão real. tudo tão perfeito na
imperfeição – era capaz de jurar que estou a sonhar. mas não estou. sei que
as mãos tremem. os pés destilam ira num
lençol gelado de morte. o branco já não é branco. nem cor. enquanto os buracos das persianas
projetam na parede as duas faces da vida:
um quadriculado de luz e sombra – eu preso atrás de uma parede inútil. que
não serve nem para pendurar um quadro do meu passado – raio de penumbra cruel –
escondo-me de mim e ofereço à miséria as mãos encaixotadas num nada que me asfixia
o afeto – e a contagem sem acerto possível.
o deve e o haver paralisados de tragédia enquanto os olhos se contorcem entre
sorrisos e lágrimas – olho para o relógio e assisto a um infindável movimento
dos ponteiros. lento por não ter os
segundos a correr – relógio que não dá horas. nada anuncia do destino – espero um
dia acordar e dizer: não me enganas
mais com promessas. não me enganas
com nada. nem que me ofereças um
ramo de flores com o perfume de um poema de herberto – “eu sou uma vida com
furibunda melancolia, com furibunda conceção” – para a frente já quase nada. tudo lento. para trás. tudo feito
numa amálgama de coisas que mais parece um abraço de apertos – e por aqui fico
em partes do tempo que não compreendo e não sei explicar – se pudesse explicar-me.
seria apenas mais um de vocês
05/03/2017
1 - há um dia em que despertamos e dizemos:
I.
há
um dia em que despertamos e dizemos:
já tive o bastante desta vida – e ali ficamos enrodilhados. num estado letárgico.
meio a dormir. meio desperto. acomodado num lençol que já não é
branco nem tem cor. nem longo. nem curto o suficiente para me dissolver
nesta pré-existência para a vida – reviro-me no lençol e enrodilho-me comigo – recuso-me a abrir os
olhos – sinto aquele pano enorme por
inteiro. não sei a origem do tecido
nem como foi feito. sei que me começa
nos pés. depois. depois sobe até me esconder do insuportável. escorado numa moral categórica: o que está errado.
errado está – as leis científicas são universais. enquanto as leis da moral pertencem apenas ao meu lençol. um lençol bipolar. extremado. inflexível. às vezes leve porque me permite
pairar sobre o que realmente sou – revolvo-me. o lençol também.
arrasta-se comigo de um lado para o outro.
numa transparência que me permite rever com crueldade o que teimosamente quero
esconder de mim – há dores que
resistem ao tempo – gostava de me desprender deste mundo. juro. juro que gostava – obrigava-me então a dormir sem roupa. sem nada que me cobrisse com esta
pele que não me pertence. uma pele diabólica. cruel. desumana porque se está nas tintas para as teorias de kant – é um
lençol. como direi? é um lençol que me cobre do mundo e
me despoja de mim – debaixo dele sou solidão dorida. sou um eu fragilizado.
agrilhoado a silêncio cruel – enrodilho-me então mais uma vez e falo comigo
mesmo. protesto. bato-me pela razão. enraiveço. juro justiça. vingança. sou cru. mau. bárbaro e de dedo em riste ameaço. julgo e condeno – é esta a forma de perdão que encontrei para dar
repouso à moral kantiana: agir de acordo com a minha vontade para que as minhas
ações se transformem em válidas para todos – sei agora que a perfeição não
existe. o ótimo é inimigo do bom – nem sou ótimo. nem bom. sou apenas uma
equação de infinitas soluções aproximadas – corre-me então um suor estranho
pelo corpo. que não se apega a nada. esguio. desvairado. como se quisesse fugir da pele. assim como quem vai dizendo em forma de alerta: cuidado. o pior ainda está por aí a chegar – talvez este suor nojento
saiba algum segredo do meu interior profundo. talvez – há dias em que acordamos e dizemos: já tive o bastante desta vida – desperto. não abro os olhos. estão
inchados. enquanto o cabelo se arrepia
em direção ao céu. os fantasmas não
o largam. cara amarrotada de
insónias. mau hálito. boca empalhada de fel. e aquele cheiro a putrefação dos
sonhos mortos. milhares deles. degolados. privados para sempre da ilusão – nenhum homem consegue sobreviver
sem sonhos. nenhum homem – por cada
volta nos lençóis mais um fragmento da vida para experienciar. em voltas que nada mudam. que
magoam cada vez mais. numa tortura que atormenta mais do que chicote – e
o corpo a dobrar numa moral que me foi vendida como elixir de sucesso – mas não. o mundo mudou e eu também. estou mais antigo. mais sem forças. agora
há mais um joelho a dobrar. depois
dobro o corpo. depois o corpo cede.
as mãos tocam o peito. os olhos desistem.
tristes. apagados. agonizados. desocupados. a teimar
com a luz. encovam-se numa omissão
de meter medo. dissimulam-se em morte. impingem-se ao escuro numa graça de
quem sabe que a morte é feita apenas de ausência – na escuridão. provar que o
corpo quer viver é um desafio – enrodilho-me
noutra volta. uma perna no passado
enquanto a outra pede caminho. pede
angústia. dor. mutilação. só
caminhando se faz passado – todo o meu futuro se resume a um presente que não
controlo – revolvo-me. por cada
volta chega a certeza de que já nada existe dentro de mim que valha a pena acreditar. a fé morreu primeiro do que o corpo –
resta-me um desejo carrasco de me desapegar da vida
02/03/2017
vergonha
neste
mundo de ravinas
meus
olhos caem por terra
uns
dizem que é vergonha
a
poesia diz-me que não:
é
apenas o meu cajado
bicando
as sobras de quem passa