.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

28/02/2012

camões. por quem perdeste um olho?






sossego. as mãos nos ouvidos abafam a vida que me chega em tormento – novos adamastores – já não suporto mais a falta de esperança de um povo que um dia passou além da taprobana – e é nesta república. nesta amálgama da ocidental praia lusitana. que um dia nos vestiram o futuro com as nobres cores da esperança-futuro e coragem-sangue – mentirosos. vigaristas. trapaceiros. vampiros. que fizestes à espada de d. afonso henriques? que fizestes ao pinhal de d. dinis? que fizestes às naus de d. joão II? e do fontismo o que nos resta? sangue. é tudo o que sobra da nossa bandeira. sangue-dor. sangue-desilusão. sangue-fome. sangue-desespero. sangue-desemprego – não há verde. do escudo ficarão apenas as chagas de cristo ressuscitadas  – mas ainda somos a nação lusitana. nobre povo. valente. imortal. e que. corajosamente. continuamos a marchar contra os canhões  – camões. por quem perdeste um olho? 





Lembranças, que lembrais meu bem passado



Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.


Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.


Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.


Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.



luís vaz de camões



27/02/2012

procura



                                                                           amanda joseph



hoje. ainda não me vi nos teus olhos


21/02/2012

voz-papel



 caricaturista brasileiro amaro amaral 



não sei como escrever que a vida é um momento – um dia entrei num espaço cheio de palavras. percebi. gente escrevia. uns bem. outros assim assim – afortunado. a imaginação ganhou asas. as palavras fizeram-se gaivota e o sal do mar imaginário cobriu-me o corpo de voz-papel – agora. agora sou assim. escrevo assim assim. e nesta vida assim procuro o futuro – assim. sem saber se hoje é dia de escrever. sou assim ou assim assim. não sei. não sei mesmo. mas não importa – sei que hoje tenho terra debaixo dos pés e um punhado de palavras ainda por escrever – o tempo? interessa? um dia só as árvores saberão contá-lo. haverá sempre mais árvores e menos um nome para chamar – por mais tempo que viva nunca verei as árvores darem pássaros. só ruy belo sabe fazer das palavras árvores com pássaros – na minha árvore não haverá pássaros. os meus frutos cairão com as folhas de outono – silêncio – tal como o poeta. continuarei a amar as árvores-pássaro enquanto elas crescerem dentro de mim 



20/02/2012

ayahuasca



                                                                                      alexei jawlensky

não há forma de eliminar este descontentamento – não sei se nasceu dentro de mim ou se tomei a rua errada – agora. agora tenho o tempo. o que gastei. e o que me resta em sorte - será muito? se sofrer. sim – dor é tempo – tenho um olho no sofrimento e outro no descanso eterno – mas aguento-me

 

ayahuasca – palavra quíchua. língua do império inca. significa “planta da alma”. “planta com alma”. ou “planta dos mortos”



17/02/2012

ceifa de palavras



                             edward hopper


ceifarei a solidão com mais palavras – mais tarde ou mais cedo. voltarei a ter a tua mão dentro dos meus sorrisos 



16/02/2012

o tempo será então saudade



                                                         jean-michel basquiat, cavalgando com a morte



não sei. esta coisa de escrever a vida muitas vezes não dá certo – não sei. não sei mesmo. encontro sempre dúvidas nas palavras. são sempre tão imprecisas. incertas. inconstantes – e a morte está sempre tão presente que os verbos nunca multiplicam futuro. o tempo-esperança é sempre tão frio. como inverno. gelo. cadáver – se fosse um sorvete. seria verão. calor. família. doçura. mel. amigos – aonde estou se aqui não me encontro? para onde vou. se nunca daqui saí? um dia serei odor. defunto. choro em faces comprimidas – diluído nas lágrimas a parte que tinha de bom. na oração. a solução para todos os erros. e por fim. uma mão cheia de água benta para dizer: vai com deus – depois. virão as memórias misturadas com silêncio para os que ficam – o tempo será então saudade

 

14/02/2012

manifesto



                                             foto de samuel aranda vencedora do “world press photo" 2011



não me peçam para esquecer que hoje é sábado – não. não me peçam para esquecer as centenas de camionetas-gente que marcham pela estrada. protestando contra o desemprego. a noite a roubar o último lamento de calor ao sem-abrigo. o desespero do filho da nação a gritar por um dia de trabalho – não. não me peçam para esquecer o pai envergonhado que não sabe explicar ao filho a falta de pão. o homem-desalento que. debaixo de um cobertor de lã. chora sem conseguir cobrir o silêncio-vergonha. aquele que. em desespero. se despediu da vida. convencido que era ele o mal do mundo – não. não me peçam para esquecer o operário sentado à porta da fábricar. ouvindo o silêncio das máquinas. o campo esquecido do lenço preto na cabeça da ceifeira. o pescador enfurecido por não saber do seu mare nostrum. ou o trespasse das ruas vazias colado a vidros cobertos de pó – não. não me peçam para esquecer o zeca afonso. o cravo de abril que pariu a grândola vila morena. a utopia de uma esquerda vencida pelo tempo. a direita da autorregulação fabricada pelo político sofista. a ganância do banqueiro-cimento – não. não me peçam para esquecer o desespero da mãe que perdeu o filho numa guerra de conveniência. o corpo retorcido do velho que morreu esquecido no frio da cidade. o marginalizado pela diferença. a doença do serviço nacional de saúde. o acesso sem acesso ao conhecimento. a justiça desigual entre o rico e o pobre – não. não me peçam para esquecer gandhi. mandela. martin luther king. a fé no homem. gedeão e “o sonho comanda a vida”. a liberdade-vento tomada com sangue ao totalitarismo. a caminhada-sacrifício da humanidade ao longo da linha do tempo – não. não me peçam para esquecer que a vida é trabalho-honra. descanso-paz. palavra-arte que gira com o movimento da terra. desde que o homem descobriu o fogo – não. não me peçam para esquecer o berço da europa: solidariedade-grega. sim. dos sem terra. de áfrica. do buraco do ozono. do animal perdido para sempre – não. não me peçam para esquecer que amanhã é domingo – não. não me peçam para esquecer que de nada me serve ser homem se não sou humano – não me posso esquecer – não me vou esquecer 



11/02/2012

vânia lopez - o silêncio




 
 
 
o silencio ousa ser mais alto que os gritos...




tem cabelos negros macios
olhos verdes como o céu
estatura alta
estava usando jeans escuro
e uma camiseta branca
levava uma mochila
com todos nossos dias de chuva
foi visto pela última vez
indo pelas ruas dentro de mim
por volta das quatro horas de ontem
com o silêncio que consegue
ser mais alto que meus gritos...



(baseado em fatos reais)


09/02/2012

alberto caeiro - se eu morrer novo




 
fernando pessoa




Se Eu Morrer Novo



Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo.

Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,
Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.
Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,
Porque as raízes podem estar debaixo da terra
Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.
Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.

Se eu morrer muito novo, oiçam isto:
Nunca fui senão uma criança que brincava.
Fui gentio como o sol e a água,
De uma religião universal que só os homens não têm.
Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,
Nem procurei achar nada,
Nem achei que houvesse mais explicação
Que a palavra explicação não ter sentido nenhum.

Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —
Ao sol quando havia sol
E à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),
Sentir calor e frio e vento,
E não ir mais longe.

Uma vez amei, julguei que me amariam,
Mas não fui amado.
Não fui amado pela única grande razão —
Porque não tinha que ser.

Consolei-me voltando ao sol e à chuva,
E sentando-me outra vez à porta de casa.
Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados
Como para os que o não são.
Sentir é estar distraído.





Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa



08/02/2012

a berma do fim



ron mueck



não há caminho diferente – a escolha foi feita no tempo em que as palavras usavam calções – o tempo andou – agora. agora resta-me escolher por que berma seguir – a esperança é para outras vidas. noutro espaço – há dias em que caminho contra os carros. outros dias. quando a ilusão é doença. caminho a favor dos carros – alguns levam pessoas em silêncio. noutros dias. só o rádio sufoca as faces-pedra. conformadas – caminho – sempre me disseram que a vida se faz a caminhar – então caminho –  ainda é possível acreditar na estrada? não – não acredito em estradas onde uns vão para lá e outros vêm para cá – se só há um fim. como pode haver dois sentidos? fim é morte. morte é descanso – quero acreditar que o fim é mais fácil por este caminho. por este lado da rua. sigo atrás deste carro preto. com gente aos berros – vou por aqui. sei que o precipício é maior e o corpo voa antes de dizer uma única palavra de salvação – não há arrependimento – sempre quis voar – desde sempre soube que o faria

 

mário quintana – inscrição para um portão de cemitério



                                                                    mário quintana



INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO


Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-me a cruz no princípio…
E a luz da estrela no fim!”



07/02/2012

assim assim




                                                                      rembrandt



não estou

[escusam de me procurar]

parti

parti assim assim

fui-me em silêncio

 

esqueci tudo

deixei-me ir

cansado do tempo

abandonei

o corpo

assim assim

 

bem

quer dizer

não sei

talvez tenha morrido

morrido assim assim

 

quem sabe

este meu assim assim

seja um erro na linha do tempo

um momento vazio

um segundo eterno

mas não é

agora já não é

o tempo

o tempo consumi-o todo

num corpo assim assim

 

os chinelos esquecidos

parados. sem pés

guardam o espectro

de um tempo suspenso

assim assim

 

perdido

nas paredes. os gritos

sufocados pela cor da tinta

branco assim assim

e o corpo

perdido

em busca de outro corpo

e o laço da corda

baloiça assim assim

 

onde estou se não estou aqui?

para onde fui

se de mim não sou?

nem assim

nem assim assim

 

diz-me tu

que escreves assim

sou o que não sou

sombra assim assim

 

se um dia o sol morrer

mesmo que seja assim assim

a sombra será eterna

nesta dor de ser assim

 

inventei-me todos os dias

numa história

era uma vez

depois…

depois não sei

foi tudo assim assim

 

dentro do tempo

o corpo assim assim

perdida nas paredes

a vida assim assim

a cabeça assim assim

e aos pés

decapitados pela razão

os olhos caídos

assim. mortos. em pó



amélie nothomb




amélie nothomb


“ Aqueles que, de uma maneira ou de outra conheceram a morte demasiado de perto e lhe escaparam tem em si a sua própria Eurídice; sabem que há neles qualquer coisa que se recorda demasiado bem da morte e que é melhor não olhar de frente. É que, como uma toca, como um quarto de cortinas cerradas, como a solidão, a morte é, simultaneamente, horrível e tentadora. Achamos que poderíamos sentir-nos bem nela. Bastaria deixarmo-nos arrastar para chegarmos a essa hibernação interior. Eurídice é tão sedutora que temos tendência a esquecermo-nos do motivo por que é preciso resistir-lhe.”  
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amélie nothomb - metafísica dos tubos



04/02/2012

il mangiatore di fagioli



annibale carracci - il mangiatore di fagioli


pergunto-me: para onde estará a olhar o homem? não sei. não é possível saber. o artista esqueceu-se de o deixar anotado – era tão fácil. uma nota de rodapé bastava para que este meu dia nunca tivesse acontecido – agora estou aqui. perdido em conjeturas que nunca terão valor académico – sinto-me também um quadro: sem lógica. irracional. sem cores. linhas. contornos. sombras. dobras. estilo. iluminação. sem nada. vazio. perdido no branco da tela ainda virgem –  nunca serei um rococó – sou imaginação e a imaginação não é nada aos olhos do desconhecido – olho. olho e volto a olhar a pintura e não sei o que vejo naqueles olhos negros – sei apenas o que o pintor quis revelar: um homem do povo. chapéu de palha. unhas sujas dentro de mãos rudes. um corpo que sobrevive do que faz – o que teria levado carraci a pintar um homem do povo? o que escondia este homem dentro de si de tão importante que obrigasse um artista a pegar nos pincéis e a dizer: tu viajarás comigo para a eternidade. habitarás os salões das mansões e compartilharás da companhia dos nobres. dos condes. das baronesas. dos príncipes. das rainhas. da arcádia e suas paisagens ideais –  serás para sempre o meu homem. o comedor de feijões – o pão amarrado à mão. preso pela força do pulso como se dissesse: este é meu. trabalhei por ele. tenho direito a ele. todo o homem que trabalha tem direito ao seu pão – toalha branca. camisa branca e a jarra de vinho em tons pastel. rasgada por uns traços finos de quem. um dia. quer ser cor forte – na mesa a fé. o pão diz-me: estou aqui. não se esqueçam de que eu e o vinho fazemos a ceia do senhor – havia esperança no cimo daquela mesa. havia futuro – às vezes gosto de imaginar que este homem é uma fraude. uma invenção do pintor. não é um jornaleiro. não é um trabalhador do campo substituindo a carne por um prato de leguminosas – não. este homem é um amigo veneziano seu. comerciante rico. encomendou-lhe o trabalho apenas para divertimento do seu excêntrico ego – talvez naquele tempo já houvesse uma espécie de carnaval veneziano e o seu amigo gostasse de se vestir como um carrejão das docas – quem sabe. talvez fosse um nobre descendente dos fundadores do condado de bolonha. ganancioso como quase todos os ricos e poderosos. o prazer vinha-lhe dos longos passeios de revista pelas suas terras. terras estas que se perdiam de vista. muito para além do rio pó. e entregues aos cuidados de gente que trabalhava de sol a sol. gente da terra – jornada sempre cansativa. não estava habituado a grandes esforços. parava para almoçar num dos seus muitos caseiros – em frente dele a família que o acolhia observava atentamente o seu amo enquanto comia – a um canto da sala. um casal; da cinta ao solo de terra batida. a certeza de que os campos continuarão a florir. meia dúzia de filhos. alinhados pelo tempo de espera. escutam em silêncio o barulho da boca a sorver os feijões. talvez quentes. talvez frios. digo eu –  só o barulho da lenha. a queimar a panela de ferro negro. competia com o ranger das mãos a rasgar o pão – aquele olhar arrasta de dentro de si um silêncio de medo – dentro daqueles pequenos olhos pretos quero ler: por que estais aí especados a olhar-me se apenas estou a comer a minha comida? gosto de imaginar o encontro dos olhos. os que o artista pintou para me afligir no comedor de feijões. e aqueles que quero alcançar. e que o pintor plantou dentro da minha imaginação – imagino então. sabendo que nada no quadro mudará com a minha imaginação.  mesmo que dentro dos meus olhos veja os olhos de uma família humilde. honrada pelo trabalho. parada no canto da sala. deprecada em clemência silenciosa. enquanto dentro do seu corpo cintilava o orgulho e honra por ter na sua casa o homem mais poderoso da região – gosto de imaginar: o que seria de um escritor sem imaginação? por isso é que quero ainda poder ver a mulher do jornaleiro parada em frente à mesa. olhos no chão. à espera. imóvel. que o seu senhor termine a refeição – ou ainda. uns olhos acabados já no tempo do romantismo. imagino o comedor de feijões. a meter a colher à boca. quando. num súbito bater de asas. um passarinho entra pela porta e. de bicada em bicada. apanha as últimas migalhas de um dia que talvez fosse especial para aquele lar. e o homem. assustado pela aparição do belo. não conseguiu esconder o espanto dos olhos – também eu pinto. não era minha intenção substituir o carracci nesta vontade de dar cor à minha folha de papel – para ser franco. não sei exatamente o que quero imaginar. às vezes quero apenas inventar novas tintas – misturo-as. volto a misturar. e vejo uma nova cor – agora estou a ver a jarra pintada de lilás triste – na minha cabeça. quero apenas criar quadros como no iluminismo. um movimento de ideias capaz de reformular conceitos erradamente predeterminados. os mesmos que trouxeram este mundo até aqui – pintar um jornaleiro na época não era normal. talvez o artista quisesse ser diferente e dar um murro na mesa das elites – ou então. carregado de dívidas. com os impostos em atraso. com o subsídio de férias e de natal cortados e em graves dificuldades económicas. tenha vendido a sua alma ao poder do capital – carracci sabia que este homem. disfarçado de tragédia. era apenas uma manobra de marketing de um dos senhores poderosos da região. quis mostrar que a vida estava má para todos. que era necessário fazer sacrifícios. cortar custos. reduzir despesas. tornar tudo mais competitivo neste mundo que agora começa a ser global – quem sabe. o pobre jornaleiro. aquele que não aparece no quadro. tenha sido despedido. extinção do posto de trabalho – a esperança está naquele naco de luz que o pintor deixou penetrar no tempo daquela gurita pendurada ao ombro do jornaleiro. protegida por uma cruz de quem sabe que a vida é sofrimento – o tempo nada trouxe de novo. para quem trabalha. nada mudou. tudo se repete – para a história fica apenas o pintor e o seu comedor de feijões