tenho um punhal guardado desde o tempo em que as pessoas
lutavam por coisas de nada – abri a gaveta escondida por detrás de mim. ao lado
da moela que tritura tudo o que me fazem – voltei ao passado. tempos em que o
coração vivia aos saltos na boca – este músculo. que se retorce sempre que o
paladar altera o tamanho das papilas gustativas. dá origem a uma explosão de
irreverência linguística. crua e real – abre-se a porta ao palavrão. ao calão.
às putas. aos caralhos. aos fodasses e. por último. até aparece uma puta que
pariu esta merda toda – que seria de mim se voltasse a usar este punhal? – esta
herança da luta contra as injustiças. lâmina que cresceu num tempo que não foi
só meu. e fez de mim tudo o que sou hoje – imaginei-me a tentar matar um poema.
um poema muito pequeno. quase um haikai. sem brilho. sem musicalidade. envolto
em mistério. e solitário como um sem-abrigo – imaginei-me. mas já não consigo
matar o quer que seja – hoje. aceito as diferenças. quer nas coisas. quer nas
pessoas. são as diferenças que nos fazem especiais e dão colorido à vida – fiz
a minha casa ao ar. sem o azul do céu. conservo apenas a noite para poder
sonhar. encontro conforto em mim mesmo. e depois. num banco de talas
geometricamente perfeito. vermelho para realçar os farrapos calvin
klein. emersos em comichão da “socialite”. e falo em silêncio para uma cidade
de pedra – já os rejeitados do mundo. vivem em corpos que nunca ouviram paz.
compreensão. e segurança. ignoram os buracos de uma roupa que nunca foi nova. e
falam para eles como se o mundo inteiro os escutasse – um grilo teimoso canta.
não por si. mas por aqueles que falam em silêncio. e são tantos – canta até o
romper do sol. canta até ficar sem voz e sem animo. o mundo não os ouve – num
banco. um corpo silenciado teima em viver. aos seus pés. nasce uma flor de
esperança. cresce entre dedos gretados pelas noites de orvalho. a vida faz-se
de coisas simples – este verão. sentado defronte para o sol. sabe agora. mais
vale tarde do que nunca. que necessitará de quentura para os dias frios que se
avizinham. o silêncio não aquece – olha para um futuro quase terminável. a
morte caminha sem tempo. e as memórias gélidas pela solidão de quem já não sabe
pedir socorro – um dia. acordou com voz de criança. pensou que era um sonho.
mas não. era a flor de esperança a partir em desespero. levou com ela todas as
letras que um dia sonhara para fazer um ramo de cravos – e agora aqui estou.
com tudo desaparecido. resta-me apenas o banco vermelho com as talas
geometricamente colocadas de sul para norte. era assim que se deitava. é assim
que me vou continuar a deitar. com os olhos acomodados no horizonte – desisti
de matar poemas. nunca terminaria com a poesia. por muitos que matasse. haveria
sempre mais a nascer nas mãos – já ninguém acredita em odes poéticas – é
preciso mais. muito mais para acalmar o meu desassossego. tenho que fazer mais –
pensei em matar um poeta. daqueles que fazem rimas e prosas. e que levam a
pouca arte a cair-me das mãos. é então que choro de raiva. não compreendo porque
a vida necessita de tantas palavras. afinal basta apenas aceitar as diferenças
– os poetas estão a desaparecer. talvez por não encontrarem mais razão para
juntar palavras num mundo que já não as valoriza – vivemos todos no mundo do
silêncio – hoje. neste mundo de tráfego digital. que valor real existe em dar
sentido às palavras – é tudo tão efémero – esta coisa de trazer tanta coisa de um passado
já é distante. sem nunca ter parado para descansar. sem nunca ter aliviado a
carga a olhar para uma flor que fosse. mesmo que ainda não tivesse
desabrochado. mesmo que a primavera estivesse presa no cair da folha. torna-nos
indiferentes. como se apenas eu tivesse direito à vida – podia ao menos ter
chorado. quando choro. não estou só. sinto a metamorfose da dor em água. só
dentro da carne é visível a transformação da dor em água – por fora. que
interessem têm o que está por fora? aos poucos. nascem sulcos arados pela
vontade de ter uma nova oportunidade. sentir alívio. superar a dor. é preciso
abrir novos caminhos pela tristeza. sentir a vida desfazer-se em água. passar
pelos lábios. e deixar definitivamente o gosto acedo das profundezas da alma e.
depois. pedir aos olhos para guardar a transparência da vida liquidificada. e preparar-se para viajar na imensidão do pó sem
mágoa – acreditar. o que estava ao meu alcance fiz – agora. com a viagem a
decorrer. fico apenas com um gelo na face. é o vento a secar a dor por detrás
da carne. do tempo perdido. do erro – caio em mim. sei agora que estes poetas
loucos nunca andam sós. amparam-se uns aos outros. os desgostos da vida são
apenas oportunidades de escreverem sobre outras vidas. a deles é sempre pura.
sem motivo para renascerem – acasalam as pernas de pau com que riscam o chão
por onde passa todo o sonhador. todo o sem abrigo. todo o homem nu. mesmo
levando todas as palavras capazes de florir o mundo – no chão. sem saberem.
desenham a desilusão. a amargura. o fel de todas as angústias da vida. apenas
da sua vida? não. levam consigo todas as vidas. e mesmo não sentindo nada do
que escrevem. fazem da vida uma passagem – olhei para o punhal com os olhos consumidos
pela ressurreição. fechei-o à chave. dando duas voltas e
selando-o com o lacre das minhas memórias – o selo são as minhas impressões
digitais – não compensa matar o que já morreu – os poetas escrevem tentando
desafiar o tempo que um dia os consumirá
29/09/2010
deceções e conceções e o silêncio poético
27/09/2010
torre do tombo: entre malmequeres e cometas
não consigo ver o meu
branco. por mais que o tente imaginar – nem o meu tempo. que parecia escapar nas
palavras que te oferecia. desejando que te tornasses meu amigo – mesmo aqueles
malmequeres de pétalas brancas. que tantas vezes comprei para embelezar os
sírios que acendia para alumiar a memória dos que sempre me quiseram bem.
perderam a cor. e as pétalas caíram. sem nunca mais formarem uma flor – tento alcançar-me
sempre que escrevo – mas continuo a acreditar que a cor dos cabelos não combina
com os meus olhos – das minhas mãos. esperava muito mais. mesmo que fossem como
um cometa. fugaz e distante. largando rastros de vapor pela imensidão do céu. podia
sempre dizer: que chatice! este sou eu. apenas uma mistura de tons. que muitas
vezes não formão cor nenhuma. apenas tonalidade mate. sem brilho. sem luz . sem
racionalidade – mas há dias em que sinto tantas coisas ao mesmo tempo. como se
carregasse todas as palavras do mundo. melhor ainda. há dias em que sou tudo. sou
as palavras justas. aquelas que se vestem de arte para partilhar o tempo que
todos os dias consumo – só que o tempo é curto. e tenho cada vez menos tempo para
ser aquilo que quero ser – o tempo escapa-me. e os sonhos que queria alcançar dissolvem-se
na realidade – então. talvez seja hora de me reconciliar com o que realmente sou
24/09/2010
fama
neste
passeio da fama
descobri a arte da lama
se
rima. é porque carrego penas
não
de gaivota. mas de idiota
empilho
palavras vazias de sentido
despejadas sem rumo ou abrigo
putrefação
de sonhos. versos em agonia
arte
ou delírio? apenas melancolia
22/09/2010
dezembro é já aí
amarrei na armadura que
guardo por detrás dos dentes. tirei os olhos para fora. despenteei o cabelo
para me parecer um pouco selvagem. e berrei tão alto que. no eco desse grito. meu
amor interior se despedaçou – foi naquele instante. quando vi partir a cobiça. que
algo em mim se quebrou para sempre – não sou mais o homem que fui – estas
primeiras chuvas de outono. que chegam em setembro. amolecem-me – para quê este
berro se o silêncio o captura – bem sei que berro para dentro. enquanto os
olhos fugiram para um mundo que eu não gosto. marcharam para uma floresta que
já não existe. e ali ficaram perdidos para sempre no nada – em tempos. as manhãs.
eram uma corrida divertida em busca do farol. um rumo iluminado – que saudável
era ter a certeza de que um dia seria o que quisesse. até talvez dono de um
império intelectual – o negro. nascido e criado por mim. sobrevive todos os
dias com o acordar da noite. pintando o luar de medo e sonhos adiados – é
quando mando as mãos trémulas para o espaço e procuro-me sentado na lua. converso
comigo à distância. e antes do sol me trazer à realidade. mergulho para casa
convencido de que é minha obrigação continuar a trabalhar-me. mesmo sendo feito
de osso de dinossauro – o tempo passa. as dúvidas brotam sem saber como as
guardei. e morro de medo amarrado a mim – e assim fiquei até hoje. feito em
medo. e sempre que o corpo falece. procuro uma poça de suor de cavalo-marinho
para renascer – a violência. por mais estranha que pareça. desperta algo
profundo em quem fala consigo mesmo – ela rasga o silêncio – o cavalo-marinho.
com um assobio na boca. interrompe esse momento e chama a atenção de todos os idiotas:
cuidado idiota. não tarda nada estás velho. olha o que te digo neste assobiar de
alerta: mantém o velho fora da porta ou acabarás por apodrecer antes de faleceres
– a minha resposta recorre a um quadro de vincent van gogh. com o seu quadro campo
de trigo com corvos – e interrogo-me: está o mestre a pensar no trigo e os
corvos servem de adorno. ou o contrário. o foco principal são os corvos e o
trigo surge apenas porque em frente à janela do seu quarto há um campo de trigo?
é exatamente o que acontece com a minha vida. meu coração é um campo de trigo. onde
os corvos zombam do tempo – o vazio cresce à medida que o relógio se arrasta e o
nada cada vez mais nada – quero continuar a acreditar que apesar do caos
interno. ainda insisto em acreditar que. no fundo. a terra e o ar são apenas
ornamentos de algo maior – eu preciso encontrar um propósito. mesmo quando tudo
ao meu redor parece perder o sentido – para mim. o quadro de van gogh é a
perfeita representação da minha vida: um reflexo sombrio de desesperança onde.
apesar de tudo. os corvos continuam a desafiar o vazio com os seus voos – quando
a esperança me abandona. é o coração que fica a bater. sem saber o porquê. talvez
seja vício. ou apenas uma necessidade de desafiar a própria dor. quem sabe
contrariar-me. mas o que sei e sinto. é que bate devagar. talvez para compensar
o nada instalado – no ventríloquo direito. ligado à mente onde ainda guardo
alguma esperança. as gaivotas dançam livremente no mar e no vento. como se
fosse a última dança – no ventríloquo esquerdo. ligado à mente onde guardo os
corvos amarrados à terra. zombam prisioneiros de suas próprias sombras – a
dividir os ventríloquos um abutre chegado do corno de áfrica. traz como merenda
um pedaço de gazela que se tinha cansado de correr – o abutre. mestre da
desordem. é o único que conhece o destino da carne caída. e no meio do caos. mantém
a ordem – a morte também alimenta a vida – para ele não importa quem faleça. se
o idiota ou o mestre. vive da morte. até da morte da esperança – a gaivota que um
dia foi livre já não voa mais. agora. ela observa. imóvel lê um livro de jorge
reis-sá. busca um sentido para a sua própria prisão. anotando em glossas o
passar do tempo do idiota e do mestre. ela sabe que os segredos desembrulham-se
no fim – os corvos amputaram as asas e mergulharam no campo de trigo.
suicidaram-se com a falta de imaginação – para uma história triste. um final
triste: todos morreram de morte natural. reflexo do abandono da esperança – o
idiota. cego pela sua busca incessante da liberdade. saltou do seu penhasco. acreditando
que finalmente podia voar – talvez o único a buscar algo. mesmo que essa
procura o levasse à morte – dezembro é já aí
17/09/2010
ó meu deus
ainda há quem acredite que eu tenho um nome – ó meu deus. para que precisam saber o meu nome. se habito uma caixa que só guarda o nada? o nada é a minha vida. meu refúgio – é neste vazio que procuro uma palavra que me possa salve. mesmo antiga. tristes. e abafada pelo tempo. livram-me do mal e das tentações – escondido em leituras e palavras protejo-me. só o vosso olhar penaliza a procura da redenção – bem sei que vocês serão sempre leitores. o que torna tudo mais difícil. existem também sem nome – como posso eu defender-me? se tal como eu também sois nada. só não vivem dentro de uma caixa – a escrita é uma arte de letras. capaz de assassinar um prosista ou. num instante elevá-lo ao patamar dos deuses. talvez esteja a ser um pouco exagerado. mas é no que quero acreditar – na escrita encontrei a única forma de sobreviver à frustração. não importa se não tenho um dom divino. importa apenas transformar dor em palavras. e levar até ao papel todas as coisas belas que ainda acredito ter em mim – ó meu deus. como posso esconder-me do erro? talvez o destino me reserve uma cruz. como a de teu filho. onde serei pregado por ousar usar as mãos para reescrever o mundo e desafiar os poetas que se autoproclamaram deuses – agora tenho as mãos a correr à frente dos olhos. e descubro que o nada não existe. eu vivo nas palavras. e é por elas que serei julgado. e como sócrates aceitarei a cicuta com as mãos trémulas. a minha condenação é a minha verdade – ó meu deus. e agora que faço às palavras que me sobraram? talvez eu as deposite num envelope aberto. sem remetente nem destino. marcado apenas com as iniciais: sr. encantador de palavras. perdido. mas ainda à procura de redenção – o que sei. é que morrerei sem saber o dia em que nasci. talvez em mil novecentos e carqueja. logo após aprender as vogais – fui embalado em páginas de júlio dinis. batizado com versos de eugénio de andrade e o anjo da guarda ao peito para me proteger dos males invisíveis – assim cresci. entre palavras e sonhos. até que um lápis tomou forma em minhas mãos. tornando-se a minha espada contra o silêncio – e quando a alma doía. e as palavras me abandonavam. recitava eugénio como quem encontra redenção. segurando o destino na ponta de uma única palavra
Escrevo
Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.
ó meu deus. e agora. quando
as mãos forem julgadas pelos eruditos – não podes manter-te em silêncio. tu sabes
as minhas motivações para escrever. serás o único que me podes castigar ou perdoar
da minha falta de arte – ó meu deus. nesta fome insaciável de escrever. esqueci-me
de rezar – agora. perdido nas palavras. procuro nelas a oração que a minha mãe me
ensinou:
anjo
da guarda
minha
companhia
guardai
a minha alma
de
noite e de dia
16/09/2010
sem rosto
tentei falar
com uma gaivota – ela voava em círculos. riscando o céu. como se escrevesse a
sua história invisível – parecia feliz – quis explicar-lhe que também eu
descanso no seu mar. onde encontro algo de mim que não sei explicar. uma
espécie de refúgio e cura ao mesmo tempo – ela respondeu-me não me respondendo.
continuou a voar – ao não me responder. suponho quis dizer que também é mar – continuou
a voar em círculos – eu também falo em círculos. talvez pudesse falar em linha
reta. mas quem me ouviria? apenas as gaivotas. aquelas que vivem do outro lado
do oceano – essas. como estas. voam dentro dos meus olhos. gostam do mar como
eu. e é a voar que comunicam. escrevem com as asas novos caminhos – eu também
só sei comunicar assim: voando. sozinho. sem nome. sem rosto e sem ontem – é no
vazio do voo que encontro tempo para dizer as coisas que nunca foram ditas –
olho para as mãos e choro. há nelas tanta palavra nua. resistindo a um tempo
que se tornou insuportavelmente longo para mim – quero escrever. quero
dizer-vos o que sou. mas sem ver nos vossos olhos o reflexo da minha face. não
quero ombros. já não quero descansar em palavras construídas para me proteger e
abrigar – quero voar. a apenas escrever. escrever. escrever. quero voar com as
minhas gaivotas. e dizer-vos que sampaio sou eu. aquele que escreve para
preencher o vazio de uma voz que nunca encontrou som – sampaio sou eu: sem
formas. sem roupa. sem caneta na mão – ainda tenho tanto para vos contar.
necessito de voar livre – preso estou eu desde o dia que alguém me perguntou o
nome. não sei o que respondi. talvez tenha dito: sou eu
13/09/2010
eco
deito os olhos ao chão. sempre o faço quando
tenho pudor das imagens que o meu passado me devolve – o eco – este eco nunca
termina. há sempre um ontem a nascer hoje – enlouqueço. amarro o corpo a uma
tábua de espinhos. preciso de me distrair com a dor. cerro os olhos. os braços
já não chegam aos ouvidos. e da boca resta apenas a gengiva magoada de tanto mastigar
as palavras que regurgitam – pouco resta de mim nestes dias de ecos. é como se.
a cada nascer do ontem. um pedaço de mim fosse roubado – agora. os braços
caíram de vez. fiquei com dois cotos presos aos ombros moribundos – eles. tal
como eu. teimam em cair para a frente
arrastados pela memória – lembro-me ainda dos braços que nasceram comigo.
chegavam ao chão. eram grandes. cheguei a plantar jardins. regava-os com o suor
que me caía da esperança – certo dia. uma papoila apanhou-me num momento de desabafo.
puxou-me suavemente. abraçou-me com as suas pétalas frágeis e choramos juntos.
num silêncio profundo. e naquele instante tornámo-nos inseparáveis – amigos para
sempre – nunca mais lhe falei. encostava-me ao seu caule a contar os dias que
ainda me faltavam para morrer – perdeu a cor – morreu uma semana depois –
ensinou-me que para se sobreviver necessitamos de ter esperança – enterrei-a
virada para sul. onde o sol nunca se esconde. e as gaivotas dançam em ventos
contra-alísios – cobria-a com terra. a ela e também a mim. senti-me vazio. mas
também mais próximo de entender que a esperança não morre – ela e eu encontraremos
esperança onde quer que estejamos – ainda hoje visito a minha casa de família. é
aqui. entre paredes. que guardo memórias. encontro descanso. é aqui também que percebo que estou vivo – ainda sou eu. ainda
me falo – agora conto os dias que vivi desde a sua morte – talvez na crueldade
dos números encontre esperança – talvez um dia lhe conte uma história: era uma
vez um homem que procurava a vida plena – continuo a procurar a vida. sei que sou.
mas ainda quero ser mais
07/09/2010
ainda não haviam nascido
sentei-me à beira do
mar. onde a terra respira a sua pureza primitiva. e ali permaneci em silêncio.
imóvel. como se aquele pedaço do mundo existisse apenas para guardar os segredos
que o mar sussurra com as suas marés – nunca percebi este vai e vem da água.
nunca sei o que as marés trazem. o que vem para ficar. ou o que vem buscar. sei
que este movimento das marés é igual ao fluxo das ideias – chegam sem aviso. invadem
a mente. como ondas zangadas. deixando marcas poderosas no pensamento. e logo
retornam ao oceano. levando sempre consigo algo de mim – mas o que é do mar
sempre será reclamado pelo mar – fico sempre sem saber o que fica em mim para o
dia seguinte – no dia seguinte. quando já não há marés a baloiçar no meu olhar.
chega-me uma braçada de ideias idiotas – quando a água fria tocou nos meus pés.
deixou-me uma medusa venenosa. talvez para me meter medo. ou avisar-me que o
mar também guarda os seus perigos – presa em seus tentáculos uma estrela morta.
prenha de palavras que nunca foram soletradas – talvez tenha caído do alto de
uma constelação e nunca mais encontrou o caminho de volta. ou então não quis
voltar a brilhar. e ficou aqui para fazer parte desta terra – cravado no seu coração.
o eixo imaginário que segura a terra a uma rotação que não regula coisa nenhuma
– pobre estrela – deitei-me. deixei a maré subir. cobriu-me de palavras. quase
todas loucas. pareciam sussurrar palavras que apenas eu compreendia. algumas
tão novas que ainda não haviam nascido para o mundo. mas era com elas que teria
de começar uma nova vida – como eu desejo
que todos me compreendam. e que encontrem em mim o movimento das marés que
nunca para de ir e vir. levando pedaços do que sou. e trazendo novos fragmento
que que quero muito aprender
02/09/2010
putas de palavras
hoje.
com o último fio de luz que o sol teima em oferecer. descalçarei um sapato.
apenas um – não por capricho. mas porque mancar é a única forma de lembrar que
o desejo dói mais do que o chão áspero sob os pés – mancarei para gravar no
corpo esta vontade impossível de alcançar o que nunca será meu – e que a puta
da vida saiba: mesmo coxo. eu caminharei – porque mancar também é um ato de
coragem – sou doido varrido – este que escreve é doido. mas escreve – escrevo
qualquer coisa. qualquer loucura. palavras gordas. anoréticas. obsoletas. moribundas
ou em êxtase. o que é importante é que sejam palavras. mesmo que passadas para um
papel que nunca as quis – algumas tombam mortas. sufocadas pelos gritos que
carregam dentro de mim. enquanto outras agonizam até o último suspiro –não me
peçam piedade. não me peçam uma nova oportunidade – vocês. as palavras nobres. que
sempre dizem tudo com elegância. já ocuparam todos os papéis que fui capaz de
escrever – mas entanto. o muro da minha vergonha
ainda rejeita aquelas palavras do passado. feias. adúlteras e sem nexo. que
apenas sabem gritar para se fazerem ouvir – putas. não vos perdoarei – se para
mais nada servem. morrereis. não às minhas mãos. sereis espetadas pelo crayon
deste lápis que acabei de afiar – no fim. restará apenas a aguça que fez da
minha ferramenta a lança que vos trespassou – eu. louco sem saber porque.
meterei a mão na aguça até que nada reste de mim – ficarei tão fino. tão frágil.
que quebrarei com os primeiros frios de inverno – pois até a lança mais afiada
sucumbe ao seu próprio peso quando não há mais o que perfurar – e quem sabe.
dos estilhaços. nasça algo de novo