.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

20/12/2011

natal 2011





                                                                     jacopo bassano




brevemente partirei para dentro da minha família. amigos e companheiros da arte da literatura – esta é uma quadra de recolha. meditação e agradecimento pela vivência de tantas coisas belas que a vida graciosamente me permitiu apreciar – sendo assim. feliz natal. voltarei em 2012. com a esperança renovada de que o novo ano será ainda melhor para mim e para todos aqueles que estimo

 

aos meus amigos e leitores desejo-lhes um feliz natal e um ano novo cheio de sucessos pessoais



14/12/2011

cadáver procura-se





jackie k. seo



as mãos. outrora fortes. crentes na imortalidade atrofiaram. enroscaram-se nos pulsos – são agora escadas em caracol para o inferno – subiram. degrau a degrau. até que um dia. envelhecidas pelo tempo. suicidaram-se no silêncio do corpo – maldito corpo que pariu umas mãos assim. maldito belzebu. maldita língua – se ao menos soubesses dizer o meu nome. talvez ainda fosse a tempo de colar a cabeça noutro corpo – aproveitava os olhos. os ouvidos. a boca. o sabor dos dias nebulosos. das maçãs à porta da loja. da espiga vermelha. do casaco aos retalhos. dos sapatos de verniz com aquela fivela dourada. do pente que arrastava o cabelo para trás do nada. do old spice a fingir o ar do mar – aproveitava tudo. menos o coração – era então outro – sempre disse que este coração me levaria à morte



13/12/2011

o meu corpo é um lugar de silêncio





lucian freud



é no mar que submerjo nas noites em que não me encontro. e no silêncio descanso – um dia entregarei os olhos a uma estrela-do-mar. uma que. por viver tão fundo. nunca soube o que era um raio de sol – não os entrego por não querer ver mais. não. sou cego desde que nasci – nunca me vi por fora. só por dentro tenho uma vaga ideia dos corpos que me ocupam – talvez haja dentro do meu corpo um buraco sem fundo. onde outros corpos entram porque têm de entrar e depois saem porque têm de sair – acredito que não encontrem nada que os faça ficar mais um pouco. nem mesmo como caixeiros viajantes – um banho retemperador. uma refeição. um bom sono para repor energias e. ao amanhecer. com as primeiras nesgas de luz. arrumam a mala e partem – muitas vezes dou comigo a imaginar que os corpos são paridos em silêncio. num qualquer pedaço do meu corpo que ainda desconheço – loucura. só pode ser. às vezes imagino coisas que não lembram ao diabo – sempre tive corpos a entrar e a sair – estranho. entram e saem sem uma palavra – nunca percebi porque atravessam o meu corpo como se fossem donos da minha intimidade – atravessam como os patos selvagens que cruzam o céu à procura de terras-refúgio. terras quentes. terras de abrigo – atravessam em formação. como se juntos fossem uma seta gigante a indicar: é ali que vamos ser felizes – acredito que também estes corpos silenciosos atravessem o meu corpo para atalhar caminho. para se acercarem mais depressa de outros corpos. mais quentes. mais abrigados. mais protegidos. mais espaçosos. mais luminosos. corpos onde finalmente podem ser felizes – o meu  corpo  nunca foi grande. sempre me senti acanhado dentro dele – imagino sempre tanta coisa. e quero guardar tudo. quinquilharias que só eu vejo como tesouros – no passado dizia-se que tudo trazia saber. em cada velharia havia vida. o conhecimento. assente em pequenos lingotes de tempo. partia de boca em boca. de terra em terra. até que um tolo de ouvido tísico. ávido de saber. escrevia em papel a alma de uma nação: o seu povo em estado puro – também eu quero guardar tudo. quero fazer parte desta nação virada para o infinito do mar. destemida. louca. arrojada. altruísta. solidária. crente que a sua robustez de nação secular advém do acreditar – a força vem das dificuldades. quanto maior. mais ao ouvido os tambores marcam a marcha: contra os canhões. marchar. marchar – sempre marchei em dificuldades convencido de que estas trariam corpos com vozes para dentro de mim – mentira – ninguém ouve o silêncio – o silêncio traz sempre mais silêncio – silêncio dor. faca. mutilação. até que um dia damos conta que já não respeitamos o corpo que suporta todos os corpos. todas as portas. todos os buracos que abro para ter a certeza que. na hora da morte. não sou comida dos corvos – morte. morte. morte em silêncio. como velho. como trapo. como pó insignificante – nunca sei nada. e no entanto. quero ainda saber tanto – tudo me ocupa espaço. aquela história de que o saber não ocupa lugar é a maior mentira que inventaram até hoje – uma mentira de um aldrabão. de um estúpido perdido do seu próprio corpo. um destes vultos que gosta de atalhar caminho pelos corpos. um preguiçoso – as saudades de mim são imensas: dos calções curtos. da bola. do pião. da carica. do calor das noites de verão. e dos invernos onde os cobertores da serra. de lã pura. agasalhavam os males da geada que cobria os campos – das memórias – com os pés encostados a uma botija de areia quente. rezava ao meu anjo da guarda. pedia-lhe perdão pelas faltas que não cometia e prometia-lhe que jamais voltaria a ouvir um palavrão. respeitaria os meus pais e os mais velhos. sempre. iria à missa. não faltaria à catequese. comungando todos os domingos a palavra do senhor – amém – acabava sempre com um pedido a deus. se por acaso me levasse durante a noite. que partisse sem pecado e. no paraíso. me esperasse o descanso eterno – estou cansado. a idade não para de avançar. e o coração já não encontra espaço para bater com precisão no meio de tantos corpos – triste e cansado. e os corpos sempre a passar calados. cada vez em maior número. e com mais silêncio – já arrastam os pés – ingratos. nunca foram capazes de pronunciar um obrigado por os deixar passar pelo meu corpo. sem os questionar uma única vez – não adianta. sempre foi assim. sempre usaram o meu corpo de passagem e. entre mim e eles. há apenas tempo – tempo feito a relógio – passam uns dias mais devagar. outros mais depressa – e eu sem nunca saber o que  fazer – olho-os. e percebo que os olhos estão costurados. passajados a linha de seda embebida em cera para resistir ao tempo – a boca cerrada por um cadeado forte. e nos ouvidos restos de folhas d’os lusíadas – numa das pontas ainda se pode ler: adamastor – talvez estes corpos sejam adamastores zangados com o rumo que dei à minha vida



12/12/2011

de nihilo nihil





                                                  peter paul rubens – ressurreição



compreender estas sombras não me é possível. há uma ordem nas palavras que não domino: dor. saudade. alegria. recordação. amor. amizade. abraço. lágrima. compreensão. bondade. resignação – tudo se devora da carne da minha carne – e os olhos calam-se

 

*de nihilo nihil – nada vem do nada – nada foi tirado de nada. isto é. nada foi criado. pois tudo o que existe sempre existiu; este aforismo resume a filosofia de lucrécio e de epicuro



11/12/2011

Sabes, Pai - jorge reis-sá





                                                                        jorge reis-sá



sabes, pai

o cachecol bege nos muros da foz
cobria as árvores com o seu pêlo, ao vento
o boné azul, marinheiro nos cabelos louros
sussurrava pequenas frases às silentes águas
o teu sorriso tão leve, enternecia o rosto
esses óculos, teu cabelo nas tardes de sol


ou o barco encalhado na areia breve
junto ao castelo onde nos passeávamos
eu tu a mãe, duas ou três falas e o meu corpo
que se chegava a vós junto à estrada


nestes muros da foz, abertos ao mar
que voava




08/12/2011

notícia de última hora




maluda



a notícia presa às mãos de quem a vende em segunda mão com o rótulo de nova – fresquinha. acabadinha de sair do forno. em primeira mão. última hora – e o pobre do homem. com sorrisos guardados na algibeira. oferece-os aos compradores ávidos de saber virgem – um vulto que cria a sua vida num círculo num círculo geométrico imperfeito. perfeito só o seu  crânio circular. tão simétrico que parecia feito a compasso – dentro deste círculo. tudo se organiza: olhos enormes. redondos. enfeitados por duas orelhas elípticas. uma boca aberta. um buraco escuro onde as palavras nunca foram pronunciadas – todos estes círculos estão presos a um tronco retangular. contraste com o mundo esférico. cai na vertical. e só a boca sabe sorrir na horizontal. sem pernas capazes de dar passos completos. gira. gira como as bailarinas dentro de caixas de música. dançando ao som da música captado pelas orelhas giratórias – sacode os braços. espalha as notícias perdidas no tempo. transformadas em cortinas de ferro para evitar os maus olhados do exterior. sem geometria. desbotadas pela luz. marginalizadas. voltam a ganhar vida com o vento perdido dos seus gestos – é o mundo por detrás da notícia. e ela ali: editada. estampada. estendida. estatelada. grávida de uma primeira página virada para o incrédulo – vaidosa pelo tamanho da letra. proclama: sou notícia. sou nova hoje. mas ontem. já me notícia – vendida em quiosques circulares. sem princípio ou fim. grita para quem passa. oferecendo-se como se houvesse ainda assunto para desvirginar. e o rompimento do hímen faz-se por um par de mãos violentas. que desfolham páginas. manchando as pontas dos dedos de tinta preta – revistas despontam entre páginas. a ganhar nova cor. agitam-se. oferecem-se em galanteios que lembram valsas em salões nobres. de um czar fotografado na intimidade – talvez seja desta que partam pelo mundo. talvez encontrem uns olhos que as adotem ou um sorriso impresso no corpo que lhes deu vida – dentro deste círculo geométrico imperfeito. há um escuro que não vem do luto. é o prédio à frente do sol. ergueu-se de um dia para o outro. como as notícias. só que o prédio ficou para sempre. e as notícias parecem caixeiros viajantes – talvez nada disto seja real. este mundo não existe. as notícias não são verdadeiras. e os homens que as vendem serão finalmente livres. os outros. os que correm em busca da excentricidade numa folha de papel. é que talvez nunca tenham existido – todas as notícias são circulares. como a vida. e até o tempo. aos poucos. se tornou também ele circular – no expositor ponho e reponho a vida dos outros. prendo-a por molas a arames velhos. que nunca substituo. esticados no tempo. hirtos. fortes. capazes de aguentar qualquer notícia. qualquer dor. sorriso ou esperança – o tempo dobrou-os. agora. já bombeiam a meio. estão cansados do peso da vida que não suportam. dia após dia. ano após ano

– bom dia. o jornal notícias e a bola

– são dois euros por favor

 perdoem-me. mas… “eu não escrevo em português. escrevo eu mesmo”*



* citação de fernando pessoa



07/12/2011

o concerto - tchaikovsky










                  o corpo descansa na mesma almofada da alma 



retalhos – número de série 07122011s(r)ego01





rené magritte


um dia destes. quando o sol nascer do outro lado do meu meio corpo. estarei de costas para este meio dia que vejo  –  há um descompasso de meio dia dentro do meu meio corpo: meio coração. meio batimento cardíaco. meio litro de sangue e meia lata de lágrimas guardadas para um aperto afetivo. um pé-de-meia de quem sabe que a vida se faz de meias verdades – talvez seja um problema giratório – meio. meio-dia. e uma multidão horrorizada abala do meio-dia que albergo para outro meio que ainda não sei onde fica – ouço bach – só a música traz a vida por inteiro até ao meu meio corpo –  e eu. sem saber a qual meio dia darei a alma por inteiro – escreverei até descobrir



06/12/2011

cinema paraíso







hoje estou assim. há em mim um abraço ainda por dar a todos aqueles de quem gosto – gosto como o filme da minha vida me ensinou a gostar: cinema paraíso – gosto como gosto das flores. do sol. dos carros que passam guiados por desconhecidos. da mãe que empurra o carrinho do bebé. da avó que corre atrás do neto. do esfarrapado que teima em vestir a roupa limpa. gosto das bolas de sabão que se perdem das mãos de uma criança. das nuvens. do mar. das minhas gaivotas livres. enfeitadas pelo sal da vida – gosto. sem saber muito do quê. num dia como o de hoje – gosto da amizade – é desta varanda que escolho o que quero ver. e hoje. quero ver todos aqueles que me fazem acreditar que a vida tem momentos que são um paraíso



05/12/2011

esotérico



onik sahakian



dentro de mim há cada vez menos de mim. estou a ausentar-me – há momentos em que já não existo. já não estou. não estou para nada – gosto desta palavra nada. sempre que a uso fico invisível. não me reconheço. e não reconheço os outros. talvez os outros me vejam. talvez identifiquem a minha face. a minha voz. os meus olhos. até aqueles gestos que se repetem por serem tão meus. pretérito – epilepsia emocional. espasmos. contração involuntária dos músculos. dos olhos. da boca. da mente. resta o ADN – o ADN tem uma particularidade única. reproduz com elegância a sinopse do seu corpo. mesmo quando o seu dono está ausente –  predominam os tiques. a boca a pender para o lado. as mãos transpiram. os olhos piscam mais de três vezes e depois aquela maneira de inclinar o corpo. como quem vacila. talvez até morrer – e os outros dizem: é ele. e eu digo: não sou eu porque eu nunca deixaria que os olhos fechassem. ou a língua sossegar – gosto dos músculos da face exaltados e do corpo firme. tão firme como as árvores que se perpetuam no chão com raízes de séculos – não reconheço ninguém porque não me reconheço a mim – aceno. sorrio. pulo. faço o pino. estendo a mão para um cumprimento de circunstância. entremeio com  duas dúzias de palavrões. e digo: prazer em conhecê-lo e. num ápice. torno-me parte do mundo. sou igual. porque ninguém sabe o que penso – quando penso. invisível ao mundo. das ruas apinhadas de gente. dos carros. dos relógios nas torres da igreja a bater por gente que já não é. das crianças com fome de um pão com marmelada. com sapatos desfeitos de subirem sempre a mesma rua esfomeados. dos mendigos. dos sem-abrigo. dos infelizes. de todos os infelizes deste mundo cruel – tudo isto é uma sala de espelhos onde o corpo gira com o retorno das imagens. umas vezes sou alto. outras baixo. outras apareço aos ésses. com as mãos no chão. e depois ainda há aquele outro espelho que divide o corpo em dois: do lado esquerdo a cabeça. e do lado direito o corpo distorcido da realidade – sou muitos e não sou nenhum. os espelhos possuem-me. não há forma de descobrir a verdade do corpo sem os estilhaçar. e quando se parte um espelho são sete anos de azar – talvez já não tenha tempo para gastar o tempo todo. isto para não dizer que azarento como sou o mais certo era partir o espelho onde o corpo guarda a memória – estilhaçado. perco tudo. os nomes de que gosto e os de que não gosto. as vozes que me adormecem e as que amarram à noite aos fantasmas. ao vento que corre pelas brechas mais exíguas do que sou. e até a minha gaivota cinzenta perderia o voo. não haveria dentro de mim espaço para asas abertas – talvez um dia possa fazer dos vidros estilhaçados um novo eu – em vidrinhos 



02/12/2011

poema numa esquina de paris - antónio gedeão





louis hayet




Dezenas e dezenas de pessoas passam ininterruptamente ao longo do passeio.

Umas para lá.
Outras para cá.
Umas para cá.
Outras para lá.
Mas cada uma que passa
tem de fazer na esquina um pequeno rodeio
para não se esbarrar com o par que aí se abraça.
Olhos cerrados, lábios juntos e ardentes,
tentam matar a inesgotável sede.
Através dos seus corpos transparentes
lê-se na esquina da parede:

DANS CETTE PLACE A ÉTÉ TUÉ
MAURICE DUPRÉ
HÉROS DE LA RESISTANCE.
VIVE LA FRANCE.