estaria aí pelos
meus dez anos. talvez onze. mais coisa menos coisa.
quando estive prestes a cometer homicídio involuntário. digo eu que gosto de
dramatizar mais uma memória feliz da minha infância – o meu pai. apesar de
patrão. industrial no ramo de marroquinaria e afins. era também vendedor.
corria o país de lés a lés. cidades e vilarejos. nada ficava por visitar. cada
peça vendida era um pão na mesa – naquele tempo. as autoestradas não existiam.
as estradas principais eram péssimas. com curvas e contracurvas. estreitas e em
paralelo – no interior do país. as urbes eram pequenas e rurais. pouco
comércio. e ainda menos gente para comprar. portugal era lisboa e tudo o resto
paisagem – as deslocações eram estimadas em tempo e não em quilómetros. uma
viagem a trás-os-montes começava no primeiro dia da semana. e o regresso
acontecia inevitavelmente à sexta-feira – os carros não eram como os de hoje.
suspensões de molas. assentos rijos. ar condicionado fazia-se de vidros
abertos. e devido à fragilidade dos motores. não era raro ficar abeirado em
qualquer canto – não havia telemóveis. assistência em viagem. nem reboques. nem
mecânicos. quando um carro ficava empanado no meio de uma serra. a única solução
era pernoitar ali. esperar que o dia raiasse. e tentar apanhar boleia num dos
raríssimos carros que por ali passasse. ou caminhar a pé até à população mais
próxima. e tentar encontrar um curioso em mecânica que o pudesse desenrascar –
a vida de vendedor era muito complicada. dura e perigosa – todos os vendedores
andavam armados. o meu pai para não ficar atrás também se armou. tinha uma pistola de 9mm legalizada pelo
governo civil de braga e registada na PSP. sentia-se mais seguro. acreditava na
intimidação. os meliantes preferem evitar conversas com balas – naquela época
era normal os homens fazerem-se acompanhar de pistola. dava-lhes importância.
virilidade. e dinheiro. que a maior parte dos vendedores não tinha – antes do
25 de abril todos éramos pobres. vivia-se num país miserável. ainda vivemos –
quando não estava em viagem o meu pai guardava a pistola na primeira gaveta da
mesinha cabeceira. oculta debaixo dos lenços e meias – sempre que me apanhava
em casa sozinho. tal como a produção de hollywood com que somos brindados todos
os natais. aproveitava para dar largas à minha rebeldia. assaltava a mesinha de cabeceira. sacava-lhe
a arma e tornava-me no mais cruel justiceiro de todos os tempos – apontava a
tudo que era bugiganga. às vezes apontava para um espelho e matava-me a mim
próprio. nada ficava sem que levasse chumbo. justiça e ordem era o meu lema –
na remodelação da minha casa. feita em exclusivo para o casamento da minha
irmã. a minha mãe tinha adquirido uns suportes em talha dourada. coisa fina.
confecionados pelo melhor marceneiro de real. um lugarejo à saída da cidade –
em cima dos suportes de talha colocou-lhes umas figurinhas em barro pintadas
num bronze-dourado. figuras com pergaminhos. cultas: camilo castelo branco. eça
de queirós. júlio dinis. lev tolstói. escritores. mais o mozart. para dar ritmo
musical ao silêncio dos corredores – mal se entrava na porta da entrada da
minha casa dávamos de caras com aquelas figuras. quatro escadas. o eça. mais
quatro escadas. o júlio. mais quatro. o tolstói. já no átrio. em frente a uma
cardência em talha dourada. o mozart. vigiado por dois anjinhos. pousados em
suportes de madeira castanho escuro. quase do meu tamanho. a olharem o chão.
como se tivessem envergonhados – no corredor que dava para a sala de jantar das
visitas. o camilo. sozinho. excomungado dos seus amigos das letras. não sei se
os meus pais tinham alguma coisa contra o homem. talvez por ter vivido em
famalicão. talvez por acaso. o que sei é que o deixaram sozinho num corredor
escuro e sem nobreza – estas personagens vigiavam-nos dia e noite. faces
sisudas. impávidos. com bigodes farfalhudos. com cara de menino. só o
mozart. quando passava por esta elite
cultural a vontade era deitar os olhos ao chão. não fossem eles chamarem-me
atenção do meu desempenho escolar. que naquela época até nem era mau – os meus
pais adoravam aquelas estatuetas. acreditavam que davam ao lar um ar mais
secular. e tornavam os seus moradores mais eruditos. mais cultos. e creio
também. que no seu íntimo. acreditassem que seriam uma motivação extra para
mim. quem sabe. amarrar-me-ia aos livros e acabava doutor dos dentes – o grande
sonho da minha mãe era que eu fosse dentista. havia poucos e dava muito
dinheiro – não fui eu. foi o seu primeiro neto. – os desejos das avós acabam
sempre por serem cumpridos – tem agora o meu filho do meio. pedro. que cumprir
uma promessa que lhe fez antes de nos abandonar e juntar-se ao meu pai para a
eternidade – as promessas são feitas para se cumprirem – sempre que tinha a
pistola à mão um desses homens cultos falecia com um tiro certeiro na testa.
nos dias em que estava mais revoltoso e com mais pontaria. era uma mortandade
de escritores. a cultura ficava cravejada de balas imaginárias. nem o camilo.
escondido no corredor. escapava – felizmente nunca dei um tiro a sério. se o
tivesse feito. a minha mãe ter-me-ia partido a cabeça com uma chapada mais
certeira do que as minhas balas – quando já não havia mais nada para abater.
voltava a guardar a pistola no mesmo lugar. com a promessa de que voltaria
noutro dia para continuar a luta contra as forças do mal – um dia. o contabilista
da empresa. o senhor leites. veio para a minha sala de jantar com os livros de
contabilidade. pelos vistos estavam os fiscais das finanças a conferir as
contas do caixa – naquele tempo. os números apagavam-se com lixivia e
mata-borrão – era o que estava a fazer. a apagar o rasto de uma qualquer venda
feita sem o imposto de transação. mais tarde IVA – se ainda houvesse lixivia
nos nossos dias o sócrates não tinha ido morar para évora – o senhor leites
estaria na casa dos quarenta anos. magro. e coxo para caraças. a arrastar a
perna. equilibrava-se numa moleta. tinha uma doença degenerativa. creio que
esclerose múltipla. anos mais tarde foi obrigado a reformar-se. acabou numa
cadeirinha de rodas. mas por milagre divino ou sorte. a doença estagnou. pelo
que sei acabou por falecer de velhice – estava então o homem concentrado nos
números. atarefado. com os olhos pregados nas rasuras. quando me lembrei de lhe
pregar uma partida – vou buscar a pistola. que para mim era a maior arma de
guerra do mundo. e entre a sala de jantar diária e o corredor havia uma
cortina. coloco-me atrás de um daqueles folhos aveludados. amarelo torrado.
abro uma brecha. aponto-lhe a pistola. e com voz de bandido digo-lhe:
-
sr. leites. mãos ao ar. dinheiro ou vida
o
senhor leites nem lhe passava pela cabeça que a pistola era real. e num repente
de quem não tem vagar para a miudagem responde-me:
-
ó menino. não quero brincadeira. preciso de silêncio. isto é um trabalho de
responsabilidade. o seu paizinho está à espera dos livros
não
fiquei nada satisfeito com a resposta. esticando ainda mais o braço para o
interior da sala. engrossando a voz como se fosse um mafioso italiano. voltei a
dizer-lhe:
-
mãos ao ar. o dinheiro ou a vida
o
senhor leites olha para a pistola. esbugalha os olhos em pânico. levanta-se de
supetão. encosta-se à parede de mãos no ar. e completamente desfigurado pelo
medo. a gaguejar. implora pela vida
-ó
zé luisinho. ó zé luisinho
eu
estava deliciado. divertia-me à brava. senti-me o maior bandido de todos os
tempos. al capone era um menino ao pé de mim – saio de trás da cortina e começo
a dirigir-me para o senhor leites. muito lentamente. com cara de quem ia dar
fogo. contornando a mesa passo a passo. enquanto o senhor leites recuava. passo
a passo também. suplicando que não disparasse – o senhor leites recuava. eu avançava
determinado a não o deixar sair dali com vida. e o homem cada vez mais próximo
da porta da sala não se cansava de dizer:
-
ó zé luisinho. ó zé luisinho. ó zé luisinho
quando
se apanha junto à porta desata a correr pelo corredor em ais desesperados e
aflitos – qual coxo. qual quê. o senhor leites meteu a moleta debaixo do braço
e correu pelas escadas. voou pelas escadas abaixo. gritando sem parar:
ó
zé luisinho. ó zé luisinho
quando
acabou de bater a porta fiquei com a ideia de que as estatuetas estavam todas
numa galhofada. desde que tinham entrado em minha casa que não tinham tanta
diversão. até os anjinhos levantaram a cabeça dos seus pedestais – eram eles e
eu. feliz e divertidíssimo. afinal tínhamos todos presenciado um milagre. o
senhor leites tinha deixado de mancar. já não precisava da muleta – entrou na
fábrica mais morto do que vivo. com ar de quem tinha sido cravejado de balas.
dizendo ao meu pai que nunca mais ia lá para casa. eu era doido barrido – era
mesmo. um doido brincalhão e malandro – nunca mais veio apagar contas com
lixivia para minha casa. o que me fez acreditar que desempenhei muito bem o meu
papel de vilão. estava orgulhoso – claro que eu era uma criança. mas sabia
muito bem o que estava certo ou errado. e também sabia que aquela brincadeira
ia ter consequências. o meu pai ia dar-me uma coronhada com a pistola. e não seria
a fingir – felizmente o meu pai percebeu que nunca deveria ter deixado a
pistola à mão de uma criança. voltou a casa mais aliviado por o filho não ter
disparado a sério. do que zangado – levei um sermão. disse-me tudo aquilo que
um pai deve dizer a um filho em relação às armas. mas tudo acabou em bem. não
houve violência física. apenas um raspanete – houve uma memória que guardei
para sempre. nunca existiu o perigo de eu puxar o gatilho da pistola. nunca
mesmo. tenho isso ainda hoje bem presente. tinha dez ou onze anos. mas
correspondia a quinze ou dezasseis dos dias de hoje – as crianças daquele tempo
não eram como as de hoje. vivíamos na rua. no meio de camaradas mais velhos e
experientes. era normal pregarmos partidas uns aos outros. não havia
computadores com jogos violentos. corríamos atrás da bola e chegávamos a casa
cansados e felizes – sempre adorei pregar uns sustos valentes. ainda hoje adoro
– sei de uma coisa. era um miúdo com luz. alegre. a querer crescer rapidamente
– os dias naquele tempo precisavam de ter quarenta e oito horas para tanta
vontade de viver – talvez não chegasse