pois bem. depois de cerca de trezentos quilómetros de
caravana e de muitas horas de expectativa para entrar na quinta da herdade –
uma noite de espera e parte do dia – lá chegamos – eu. maria joão. minha
companheira há quarenta e quatro anos. os amigos luís e mariana ainda a começar
a contar os anos de ligação.  e maddy.
minha amiga há quase vinte anos – uma vistoria rápida na entrada para garantir
que cumpríamos as regras. zero tolerância para vidro. álcool e drogas. e lá nos
indicaram o local onde estacionar. no topo do monte que protege a norte o
espaço do boom – já era noite. e à nossa volta apenas eucaliptos. pó e o
desconhecido pela frente – de noite todos os gatos são pardos – uma refeição
rápida. um banho e toca a descer para a festa. a expectativa era imensa. perder
a primeira noite não era opção – lá fomos. e seguimos a regra de quem viaja sem
mapa. seguir quem já caminha com sentido – uma descida íngreme de quase dois
quilómetros. e a meio já se ouviam as batidas. e ao longe uma constelação de luzes
mágicas – com a aproximação ao recinto começamos a sentir a grandeza do espaço
– o primeiro olhar colado ao rosto – o espanto na alma – a intuição instantânea
de que ia ser feliz – confesso. a minha escrita não alcança. não chega. não
toca o que me foi oferecido. era muita luz a invadir-me os sentidos. com cores
e projeções que nunca tinha imaginado – diria que é a disney dos adultos –  era luz. era música. era cor. era tudo a
acontecer de uma só vez – era tudo a acontecer em mim – para ser verdadeiramente
feliz basta perder o preconceito e lançarmo-nos sem medo para cada apelo da
alma – e havia muitos apelos. o problema era saber para onde olhar e caminhar –
pela primeira vez senti-me verdadeiramente livre. ligado às pessoas. ligado à
natureza. ligado às galáxias. fazia parte de um organismo uno que me recebia
inteiro no ser. como se renascesse ali naquele instante – o corpo e a mente
deixaram de magoar. e partimos à deriva para cada bolha artística. um oceano de
luz. um oceano de música. um oceano de vibração. um oceano de vida. um oceano
sem fim. ligado às pessoas. ligado à natureza. ligado às galáxias. ligado a
tudo. e eu a navegar à bolina – preso e solto ao mesmo tempo – como se o ar
fosse água. como se eu já não tivesse corpo. como se fosse apenas alma. apenas
vibração – e as ninfas do lago em chamamentos para sair de onde estava. porque
o outro lugar chamava mais forte – senti-me mágico. também eu tinha mordido a
maçã do encantamento – a questão era quanto tempo ia durar o efeito – para
minha surpresa dura. dura até hoje – revisitar o boom é apenas necessário
fechar os olhos – em cada esquina um misto de estruturas iluminadas. algumas do
tamanho do adamastor. talvez maiores – nenhuma cabia inteira na cabeça. nenhuma
cabia inteira no peito. olhar para uma parte era deixar outra de fora – e eu a
mergulhar nas luzes de cada escultura. algumas abstratas. cintilantes. que nos
lançavam para o espaço sem nunca tirar os pés do sagrado – figuras
antropomórficas que nos prendiam. nos sacudiam de todas as maldades do mundo –
e em cada passo a sensação de já não caminhar. mas voar preso a cada feixe de
luz – talvez peter pan. talvez um duende – uma alma transfigurada por um
sentimento de felicidade que nunca tinha conhecido – e ainda hoje vibra – de
seguida entramos nas tendas gigantes. eram três. separadas por um manto
sagrado. apesar dos decibéis. nenhuma batida fugia para outra tenda. como se
houvesse um muro invisível. uma mão que separasse as notas de música. e dentro
delas milhares de jovens e não jovens a baloiçar os corpos. iguais aos de beach
party by nova era. o corpo para um lado. e o cardume inteiro em movimento.
todos em transe. e a cada batida uma perna para a frente. logo outra para trás.
ninguém sai do sítio. e todos caminham pela imensidão do espaço sideral – e eu
ali. a caminhar com eles. primeiro a medo. depois já no cardume. deixei-me
apanhar pela música. deixei que ela me levasse para onde o meu espírito se
encontrasse com o que sou verdadeiramente. sem medo. sem preconceitos. nunca
deixei de ser quem sou. mas passei a ser mais. mais do que sabia. mais do que
pensava. mais do que sonhava ser. e completei-me. trouxe dos outros o que pude.
e em vez de me sentir cheio. senti-me vazio do que pensava ser essencial. e
passei eu mesmo a ser um ser tribal. feito de batidas e sentimentos que
desconhecia – as gavetas abriram-se. as janelas abriram-se. as portas
abriram-se. tudo se abriu. eu também me abri. e fiquei apenas água. a ondular.
a amar tudo o que me rodeava. e a certeza mais uma vez de que havia escolhido a
mulher certa para a vida – estávamos felizes. estávamos os dois livres. e
livres. nunca nos conseguimos separar. voamos para o luar. iluminamos o caminho
que escolhemos. e brilhamos como dois pirilampos. como duas centelhas no
escuro. como dois sóis a nascer – beijamo-nos como adolescentes. e dissemos: os
nossos filhos deveriam um dia experimentar esta liberdade – por fim. cansados.
já depois das cinco da manhã partimos à procura do descanso. subimos em direção
ao céu. e dormimos como anjos – tínhamos a certeza de que tínhamos feito a
opção certa. estar no boom fez-nos bem. aproximou-nos. e fez-nos recordar o que
de melhor trouxe a nossa união: os filhos. nossos deuses. nossa glória. nossa
virtude. nossa eternidade. nossa razão de ser. nosso infinito. nosso
além-túmulo dentro de nós
 
 
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