26/09/2025

5. eu no boom - 2ºdia

 




 

a felicidade é o presente. não é o regresso ao passado nem fuga para o futuro – não está num interruptor nem numa cartola mágica. pelo contrário. é superação das dificuldades. dos traumas. das noites sem dormir. dos objetivos cumpridos. e dos que ficaram por cumprir. dos amigos que perdemos. dos que chegaram. a felicidade é perda. mas também caminho – e é no caminho empedrado que muitas vezes nos encontramos despidos de ilusões – nesse instante deixamos cair as camadas que nos escondem – e sentimos o alívio de reconhecer quem somos – precisamos de soltar essas camadas. para que se dissolva a matéria que nos prende à forma – a felicidade acontece apenas porque caminhamos. porque tivemos coragem para procurar. às vezes não sabemos o que. como um tabuleiro de xadrez que pode ter todas as peças. mas se faltar um peão… já não há jogo –  o dia de hoje é o mais importante da nossa vida. porque fomos capazes de refazer o que somos quando o mais fácil era desistir – a sociedade exige muito de nós. é preciso fabricar homens de um sucesso global. para que possamos ser aceites: carro. casa. relógios. doutoramentos sem conhecimento. a lista seria interminável – levantar e caminhar é felicidade. isso é a única verdade. depois. estar onde queremos estar. respirar a divindade que entra em nós. e partilhar do vento que mantém as gaivotas no ar: liberdade – é obrigatório dar-nos ao agora. no boom não podemos estar noutro lugar – ali sentimos a consciência a saltar connosco. estamos todos interligados. um emaranhado de cordas. e essa interligação. talvez cósmica. faz de nós um pouco de cada ser. ligados pela consciência. vibrantes e cintilantes. e o planeta que se chama terra. um mero condutor. a esticar-nos pela gravidade. e pelo sim. sim. é esta gente o dínamo da terra – ligados por essa energia comum. percebemos que o mesmo magnetismo que nos une também nos desafia – a física diz que polos iguais repelem-se. mas nós ligámo-nos. existe dentro de nós uma porta que se abre ao desconhecido. ou é a própria energia do planeta que a abre. e as suas pessoas empurram-nos porta fora – mesmo que não compreendamos o mundo físico. é a nossa consciência. com os seus mecanismos ainda desconhecidos. que nos diz: este é o teu momento. despe-te de preconceito e vai. liberta o teu espírito. cumpre-te pelo chamamento. edifica-te nos desaires. liberta-te dos sucessos. recupera a estrada que deixaste marcada – dostoievski dizia: torna-te consciente de ti mesmo. mesmo que tenhas de enfrentar a tua verdade interior. mesmo que sofras – eu acredito que o gerador da felicidade é a dor. a desilusão. a perda. o medo. o fracasso. o trauma. a dúvida. o terror de não podermos voltar atrás e emendar o erro. é também a decisão de percorrer caminho. do movimento. e tal como um astro rodamos. e criamos o nosso próprio campo magnético. atraímos o que em nossa volta roda. num outro campo magnético. e sem que o corpo saiba trazemos para dentro de nós a consciência de alguém. a sua vontade de nos inundar com o que é seu – e quando superamos essas debilidades. somos felizes – bem sei que por pouco tempo. os desaires ficam para toda a vida. a felicidade é efémera – porque será que a felicidade é passageira? porque enquanto os desaires se contraem no corpo. e a nossa capacidade de armazenamento é quase ilimitada. a felicidade expande-se. não a conseguimos reter. esvai-se. como água com consciência – o corpo serve apenas para nos diferenciar uns dos outros. as pernas para saberem que chegamos. os braços para saberem que abraçamos. os olhos para saberem que reconhecemos. e a boca para gritar ao universo que nos devolva a luz – e vamos à procura de mais felicidade. e depois ainda mais. precisamos dela para sobreviver. e quando não a encontramos. na maior parte das vezes por nossa culpa. o trabalho cega-nos. as distrações dos amigos. a família consome-nos. e sem dar conta estamos perdidos no tempo. não do universo. esse não se perde. está em nós desde o nosso primeiro dia. mas de nós. passamos a ser o que na verdade não somos. vestimos a armadura de aço e resistimos. morremos de olhos abertos – e a felicidade logo ali. tão perto. tão simples. tudo se resolve com uma equação de três simples: despoja-te. liberta o peso. entrega-te ao desconhecido. acredita no invisível. entrega-te a ti. e vive inteiro – foi assim que cheguei ao boom – a minha consciência fundiu-se com outra. e com mais cem mil que tiveram o mesmo desejo que eu: ter uma nova experiência de vida. iluminar-me por conta dos seus astros. da estrela a que cada um pertence – com a minha idade pensei: vais sofrer. aquela malta vai-te trucidar – mas não. fui eu que me trucidei. abri a porta e as cordas partiram em debandada. interligaram-se. teletransportei-me para cada uma daquelas consciências. e todas. me entregaram o melhor de si – tornei-me o núcleo do universo. porque só quando somos muitos temos força suficiente para nos tornamos um núcleo. ligamo-nos como se juntam os átomos. talvez da água. e balançamos – depois subimos como bolinhas de sabão ao universo… e por ali ficamos. a ver-nos como somos. e na verdade. somos muito menos do que uma bolinha de sabão. inexplicavelmente perdida entre estrelas sem nome – e talvez bóreas. sentado numa galáxia distante. tenha percebido. quanto pode ser importante uma pequenina bolinha de sabão. e levantou um ventinho fininho. que me levou para o infinito de mim. e percebi que ainda hoje não sei onde termino. sou muito mais do que pensava. e muito menos do que uma bolinha de sabão – tirou-me a pele. e senti o frio de viver livre. dancei como os meus ancestrais dançavam. e tornei-me no peão que faltava no tabuleiro de xadrez. e o jogo começou. e compreendi que sem mim. sem peão. não haveria boom. mesmo invisível as cordas deram-me forma. tornei-me espírito. e saí do meu corpo sem medo de não voltar – isto é liberdade. isto é consciência. isto é dar a mão ao mundo. e tal como paulo de carvalho. cantor português. fiz uma fogueira dentro de mim. e dancei numa consciência coletiva – e fiquei com a certeza de que pelo menos uma estrela daquele céu era minha – eu estava no único lugar onde poderia estar e com as pessoas que deveria estar. a minha conexão era total. percorri mil vezes cada uma daquelas pessoas. e todas me visitaram mais de mil vezes. dei e recebi. e nenhuma teoria física seria capaz de resolver esta equação. só a consciência tem a fórmula – neste segundo dia vagueei pelo espaço – era tudo tão novo – às vezes parecia que durante o sono as fadas tinham mudado tudo. as pessoas tão diferentes e tão iguais. famílias com crianças. pais jovens. amigos em bando. solitários. velhos que pareciam novos. namorados apaixonados. todos a girar. como se fossem planetas. talvez caminhassem por si. ou pelo chamamento da consciência. talvez coletivo. ninguém levava mapas. não havia guias no chão. nem setas: olha ali uma tenda gigante. uma escultura. uma árvore. estas formas simbólicas. relembrando uma conexão profunda com o sagrado e o ritual. luminosas. às vezes abstratas. mas tão parecidas comigo. identificámo-nos com tudo. porque tudo é o que somos – para onde quer que se olhe os olhos giram. a consciência gira. e as luzes a cores pintam a nossa tela interior: era como se dissesse em silêncio: não me levem daqui. quero aqui ficar para sempre – a massa do corpo não altera com o lugar. mas aqui eu não me peso. a alma não pesa. a consciência não pesa. vive. sonha. ri. sossega. é feliz. sem dores e sem medo. afinal. talvez sejamos imortais. talvez só a carne apodreça. apenas viajamos. talvez o tempo seja relativo. talvez só aqui todos nós estejamos certos com o que somos – e assim andei. até deparar com uma projeção de imagens em vapor de água – no lago um repuxo enorme lançava água a dezenas de metros de altura. que no seu processo descendente. já em gotículas pequeníssimas. recebia a projeção de frames de várias imagens. que com a gravidade se deformavam aos poucos. até desaparecerem no espaço dos olhos. enquanto outra imagem se sobrepunha. e assim sucessivamente – sentei-me na relva com a minha maria joão. os meus amigos e desconhecidos – todos absorvidos. todos sugados para dentro da viagem animada de um preto e branco nostálgico – silêncio absoluto – apenas a água e a música de fundo – estávamos suspensos. entre vida e silêncio – deixei-me embalar pela magnificência daquele cinema em tela de água. e quando dei por mim chorava copiosamente. não sei quanto tempo chorei. sei que foi o suficiente para voltar ao passado e encerrar um momento da minha vida que sempre imaginei estar fechado – este é o único retalho da minha vida que partilho aqui. haveria muitos. mas cada um deve viver as suas viagens em solidão. ou então encontrar as pessoas certas para partilhar – há vinte e sete anos o meu pai faleceu. e a minha família. como uma outra qualquer. estava em pranto absoluto. devastados. eu era o mais novo. mas velho o suficiente para ser forte. tinha trinta e oito anos – eu sabia que era o mais resistente. quando somos novos pensamos ser sempre o que em verdade não somos – não deitei uma lágrima à frente da minha mãe. irmãos. esposa. e filhos – foram três dias de superação interior – pela noite. descia para a rua e entrava no carro. punha a cassete a tocar. charlie haden & pat metheny – spiritual. e chorava copiosamente. berrava até que os ouvidos serem só ruído. a dor era tão forte que dilacerava-me o corpo. a alma em pasta. retorcida. e assim estava horas aos murros ao volante. a insultar deus e o universo de tudo o que pudesse magoar. a água escorria-me dos olhos – corpo ensopado de mim – de raiva. de ira. de revolta e jurava nunca mais lhes perdoar – pois bem. naquele espaço mágico chorei as mesmas lágrimas. senti as mesmas dores. exatamente a mesma dor. a mesma raiva. tudo era tão real. tão daquele dia. o corpo sentiu a mesma vontade de morrer. de destruir o mundo. o mesmo sentimento de perda. o meu pai ali deitado. e eu de pé. sem que a dor pudesse mexer em mim um músculo. uma lágrima – quando acabei tinha enterrado definitivamente o meu pai. tinha cicatrizado uma ferida que não sabia que estava aberta. por fim. depois de tanto tempo. fiz as pazes desse dia – quando me levantei disse aos meus amigos que tinha que me recolher. estava cansado. estava completamente vazio. oco. não sentia nem o corpo. nem a mente. mas senti paz. senti que estava no meio do universo. sem peso. sem nada a reclamar de mim e do mundo – se tinha dúvidas foram todas dissipadas. se não fosse por mais nada a minha ida ao boom tinha sido recompensado com algo que nunca imaginei que fosse possível – fiz as pazes desse dia – é preciso acreditar na evolução do mundo. das pessoas. e da sua consciência – é preciso compreender a física – há cem anos a física explicava menos do que hoje. se não acreditarmos. só nos resta a teologia – foi isso que a física quântica nos trouxe. a oportunidade de trazer para dentro de si a consciência – nós somos alma. energia revestida por um corpo – estamos emaranhados num universo de energia – assim podemos sentir-nos ao mesmo tempo em vários lugares. dentro ou fora do corpo. as batidas marcam o ritmo das viagens. e os lugares ligam-se pela velocidade das vibrações – podemos viajar por vários lugares ao mesmo tempo. mas no boom aprendi a ficar onde estava feliz. se viajei. isso foi apenas porque as forças do universo me levaram. cintilante fiz-me estrela. iluminei os que comigo preferiram ficar ali. e todos nos ligamos ao universo por cordas que vibram em nós – e assim fechei mais um dia no boom – e abri mais uma estrada em mim – envelhecer tem a sua vantagem. o corpo mirra. mas a mente já não me trai – voa em viagens de reconhecimento. para um dia saber. qual a estrela que me pertence desde o nascimento

 


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