a felicidade
é o presente. não é o regresso ao passado nem fuga para o futuro – não está num
interruptor nem numa cartola mágica. pelo contrário. é superação das
dificuldades. dos traumas. das noites sem dormir. dos objetivos cumpridos. e
dos que ficaram por cumprir. dos amigos que perdemos. dos que chegaram. a
felicidade é perda. mas também caminho – e é no caminho empedrado que muitas
vezes nos encontramos despidos de ilusões – nesse instante deixamos cair as
camadas que nos escondem – e sentimos o alívio de reconhecer quem somos –
precisamos de soltar essas camadas. para que se dissolva a matéria que nos
prende à forma – a felicidade acontece apenas porque caminhamos. porque tivemos
coragem para procurar. às vezes não sabemos o que. como um tabuleiro de xadrez
que pode ter todas as peças. mas se faltar um peão… já não há jogo – o dia de hoje é o mais importante da nossa
vida. porque fomos capazes de refazer o que somos quando o mais fácil era
desistir – a sociedade exige muito de nós. é preciso fabricar homens de um
sucesso global. para que possamos ser aceites: carro. casa. relógios.
doutoramentos sem conhecimento. a lista seria interminável – levantar e
caminhar é felicidade. isso é a única verdade. depois. estar onde queremos estar.
respirar a divindade que entra em nós. e partilhar do vento que mantém as
gaivotas no ar: liberdade – é obrigatório dar-nos ao agora. no boom não podemos
estar noutro lugar – ali sentimos a consciência a saltar connosco. estamos
todos interligados. um emaranhado de cordas. e essa interligação. talvez cósmica.
faz de nós um pouco de cada ser. ligados pela consciência. vibrantes e
cintilantes. e o planeta que se chama terra. um mero condutor. a esticar-nos
pela gravidade. e pelo sim. sim. é esta gente o dínamo da terra – ligados por
essa energia comum. percebemos que o mesmo magnetismo que nos une também nos
desafia – a física diz que polos iguais repelem-se. mas nós ligámo-nos. existe
dentro de nós uma porta que se abre ao desconhecido. ou é a própria energia do
planeta que a abre. e as suas pessoas empurram-nos porta fora – mesmo que não
compreendamos o mundo físico. é a nossa consciência. com os seus mecanismos
ainda desconhecidos. que nos diz: este é o teu momento. despe-te de preconceito
e vai. liberta o teu espírito. cumpre-te pelo chamamento. edifica-te nos
desaires. liberta-te dos sucessos. recupera a estrada que deixaste marcada – dostoievski
dizia: torna-te consciente de ti mesmo. mesmo que tenhas de enfrentar a tua
verdade interior. mesmo que sofras – eu acredito que o gerador da felicidade é
a dor. a desilusão. a perda. o medo. o fracasso. o trauma. a dúvida. o terror
de não podermos voltar atrás e emendar o erro. é também a decisão de percorrer
caminho. do movimento. e tal como um astro rodamos. e criamos o nosso próprio
campo magnético. atraímos o que em nossa volta roda. num outro campo magnético.
e sem que o corpo saiba trazemos para dentro de nós a consciência de alguém. a
sua vontade de nos inundar com o que é seu – e quando superamos essas
debilidades. somos felizes – bem sei que por pouco tempo. os desaires ficam
para toda a vida. a felicidade é efémera – porque será que a felicidade é passageira?
porque enquanto os desaires se contraem no corpo. e a nossa capacidade de
armazenamento é quase ilimitada. a felicidade expande-se. não a conseguimos
reter. esvai-se. como água com consciência – o corpo serve apenas para nos
diferenciar uns dos outros. as pernas para saberem que chegamos. os braços para
saberem que abraçamos. os olhos para saberem que reconhecemos. e a boca para gritar
ao universo que nos devolva a luz – e vamos à procura de mais felicidade. e
depois ainda mais. precisamos dela para sobreviver. e quando não a encontramos.
na maior parte das vezes por nossa culpa. o trabalho cega-nos. as distrações
dos amigos. a família consome-nos. e sem dar conta estamos perdidos no tempo.
não do universo. esse não se perde. está em nós desde o nosso primeiro dia. mas
de nós. passamos a ser o que na verdade não somos. vestimos a armadura de aço e
resistimos. morremos de olhos abertos – e a felicidade logo ali. tão perto. tão
simples. tudo se resolve com uma equação de três simples: despoja-te. liberta o
peso. entrega-te ao desconhecido. acredita no invisível. entrega-te a ti. e
vive inteiro – foi assim que cheguei ao boom – a minha consciência fundiu-se
com outra. e com mais cem mil que tiveram o mesmo desejo que eu: ter uma nova
experiência de vida. iluminar-me por conta dos seus astros. da estrela a que
cada um pertence – com a minha idade pensei: vais sofrer. aquela malta vai-te
trucidar – mas não. fui eu que me trucidei. abri a porta e as cordas partiram
em debandada. interligaram-se. teletransportei-me para cada uma daquelas consciências.
e todas. me entregaram o melhor de si – tornei-me o núcleo do universo. porque
só quando somos muitos temos força suficiente para nos tornamos um núcleo.
ligamo-nos como se juntam os átomos. talvez da água. e balançamos – depois subimos
como bolinhas de sabão ao universo… e por ali ficamos. a ver-nos como somos. e
na verdade. somos muito menos do que uma bolinha de sabão. inexplicavelmente
perdida entre estrelas sem nome – e talvez bóreas. sentado numa galáxia
distante. tenha percebido. quanto pode ser importante uma pequenina bolinha de
sabão. e levantou um ventinho fininho. que me levou para o infinito de mim. e
percebi que ainda hoje não sei onde termino. sou muito mais do que pensava. e
muito menos do que uma bolinha de sabão – tirou-me a pele. e senti o frio de
viver livre. dancei como os meus ancestrais dançavam. e tornei-me no peão que
faltava no tabuleiro de xadrez. e o jogo começou. e compreendi que sem mim. sem
peão. não haveria boom. mesmo invisível as cordas deram-me forma. tornei-me
espírito. e saí do meu corpo sem medo de não voltar – isto é liberdade. isto é
consciência. isto é dar a mão ao mundo. e tal como paulo de carvalho. cantor
português. fiz uma fogueira dentro de mim. e dancei numa consciência coletiva –
e fiquei com a certeza de que pelo menos uma estrela daquele céu era minha – eu
estava no único lugar onde poderia estar e com as pessoas que deveria estar. a
minha conexão era total. percorri mil vezes cada uma daquelas pessoas. e todas
me visitaram mais de mil vezes. dei e recebi. e nenhuma teoria física seria
capaz de resolver esta equação. só a consciência tem a fórmula – neste segundo
dia vagueei pelo espaço – era tudo tão novo – às vezes parecia que durante o
sono as fadas tinham mudado tudo. as pessoas tão diferentes e tão iguais. famílias
com crianças. pais jovens. amigos em bando. solitários. velhos que pareciam
novos. namorados apaixonados. todos a girar. como se fossem planetas. talvez caminhassem
por si. ou pelo chamamento da consciência. talvez coletivo. ninguém levava
mapas. não havia guias no chão. nem setas: olha ali uma tenda gigante. uma
escultura. uma árvore. estas formas simbólicas. relembrando uma conexão
profunda com o sagrado e o ritual. luminosas. às vezes abstratas. mas tão
parecidas comigo. identificámo-nos com tudo. porque tudo é o que somos – para
onde quer que se olhe os olhos giram. a consciência gira. e as luzes a cores
pintam a nossa tela interior: era como se dissesse em silêncio: não me levem
daqui. quero aqui ficar para sempre – a massa do corpo não altera com o lugar.
mas aqui eu não me peso. a alma não pesa. a consciência não pesa. vive. sonha.
ri. sossega. é feliz. sem dores e sem medo. afinal. talvez sejamos imortais.
talvez só a carne apodreça. apenas viajamos. talvez o tempo seja relativo.
talvez só aqui todos nós estejamos certos com o que somos – e assim andei. até
deparar com uma projeção de imagens em vapor de água – no lago um repuxo enorme
lançava água a dezenas de metros de altura. que no seu processo descendente. já
em gotículas pequeníssimas. recebia a projeção de frames de várias imagens. que com a gravidade se deformavam aos poucos. até desaparecerem
no espaço dos olhos. enquanto outra imagem se sobrepunha. e assim
sucessivamente – sentei-me na relva com a minha maria joão. os meus amigos e
desconhecidos – todos absorvidos. todos sugados para dentro da viagem animada
de um preto e branco nostálgico – silêncio absoluto – apenas a água e a música de
fundo – estávamos suspensos. entre vida e silêncio – deixei-me embalar pela
magnificência daquele cinema em tela de água. e quando dei por mim chorava
copiosamente. não sei quanto tempo chorei. sei que foi o suficiente para voltar
ao passado e encerrar um momento da minha vida que sempre imaginei estar
fechado – este é o único retalho da minha vida que partilho aqui. haveria
muitos. mas cada um deve viver as suas viagens em solidão. ou então encontrar
as pessoas certas para partilhar – há vinte e sete anos o meu pai faleceu. e a
minha família. como uma outra qualquer. estava em pranto absoluto. devastados.
eu era o mais novo. mas velho o suficiente para ser forte. tinha trinta e oito
anos – eu sabia que era o mais resistente. quando somos novos pensamos ser
sempre o que em verdade não somos – não deitei uma lágrima à frente da minha
mãe. irmãos. esposa. e filhos – foram três dias de superação interior – pela
noite. descia para a rua e entrava no carro. punha a cassete a tocar. charlie
haden & pat metheny – spiritual. e chorava copiosamente. berrava até que os
ouvidos serem só ruído. a dor era tão forte que dilacerava-me o corpo. a alma
em pasta. retorcida. e assim estava horas aos murros ao volante. a insultar
deus e o universo de tudo o que pudesse magoar. a água escorria-me dos olhos –
corpo ensopado de mim – de raiva. de ira. de revolta e jurava nunca mais lhes
perdoar – pois bem. naquele espaço mágico chorei as mesmas lágrimas. senti as
mesmas dores. exatamente a mesma dor. a mesma raiva. tudo era tão real. tão
daquele dia. o corpo sentiu a mesma vontade de morrer. de destruir o mundo. o
mesmo sentimento de perda. o meu pai ali deitado. e eu de pé. sem que a dor
pudesse mexer em mim um músculo. uma lágrima – quando acabei tinha enterrado definitivamente
o meu pai. tinha cicatrizado uma ferida que não sabia que estava aberta. por
fim. depois de tanto tempo. fiz as pazes desse dia – quando me levantei disse
aos meus amigos que tinha que me recolher. estava cansado. estava completamente
vazio. oco. não sentia nem o corpo. nem a mente. mas senti paz. senti que
estava no meio do universo. sem peso. sem nada a reclamar de mim e do mundo – se
tinha dúvidas foram todas dissipadas. se não fosse por mais nada a minha ida ao
boom tinha sido recompensado com algo que nunca imaginei que fosse possível –
fiz as pazes desse dia – é preciso acreditar na evolução do mundo. das pessoas.
e da sua consciência – é preciso compreender a física – há cem anos a física
explicava menos do que hoje. se não acreditarmos. só nos resta a teologia – foi
isso que a física quântica nos trouxe. a oportunidade de trazer para dentro de si
a consciência – nós somos alma. energia revestida por um corpo – estamos emaranhados
num universo de energia – assim podemos sentir-nos ao mesmo tempo em vários lugares.
dentro ou fora do corpo. as batidas marcam o ritmo das viagens. e os lugares ligam-se
pela velocidade das vibrações – podemos viajar por vários lugares ao mesmo
tempo. mas no boom aprendi a ficar onde estava feliz. se viajei. isso foi
apenas porque as forças do universo me levaram. cintilante fiz-me estrela. iluminei
os que comigo preferiram ficar ali. e todos nos ligamos ao universo por cordas
que vibram em nós – e assim fechei mais um dia no boom – e abri mais uma
estrada em mim – envelhecer tem a sua vantagem. o corpo mirra. mas a mente já
não me trai – voa em viagens de reconhecimento. para um dia saber. qual a
estrela que me pertence desde o nascimento
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