também eu
gosto do silêncio. e este ano tive tão pouco – se fosse possível renascer de
forma diferente neste novo ano – nascia em silêncio. e juro que nem com a
palmada no rabo choraria – respirava silêncio e pedia para me embrulharem num
livro de poesia – depois. sim. caía nos braços da minha mãe e ali ficaria para
sempre – em silêncio – feliz ano 2016 para todos os meus amigos – prometo-vos
que nunca deixarei de “perseguir as luzes das estrelas até ao fim da minha
vida” – sejam felizes. e obrigado por fazerem parte da minha vida
29/12/2015
adeus ano velho
13/10/2015
professor marcelo
gostava de ser como o professor marcelo.
marcelo rebelo de sousa – dizem os amigos. e os inimigos também. que o homem é
inteligentíssimo. um reconhecido génio lusitano. feito comendador da ordem
militar de santiago da espada e da grã-cruz da ordem do infante dom henrique – estamos
perante um homem de uma lucidez rara. de um raciocínio veloz. pouco habitual no
nosso meio académico e político – sempre ouvi dizer que homem inteligente é aquele
que se conhece a si mesmo – pois bem. o professor não só possui este dom. como também
conhece a fundo os meandros da politiquice nacional – sempre que aparece na
televisão. o professor parece um gaiato. com uma energia de fazer inveja a
qualquer catraio – não há um único sinal de cansaço no seu programa de domingo.
do primeiro ao último minuto o professor marcelo é um autêntico “showman” – o
professor é formidável. e ainda alardeia perante os seus admiradores. que precisa
apenas de duas horas de sono por noite para se manter em plena forma física e
intelectual – à hora de almoço é vê-lo a dar uns mergulhos na praia de carcavelos.
com chuva ou sol. seja inverno ou verão. lá vai o homem. como se fosse feito do
mar – é ele que dá força àquela velha teoria de que todos descendemos de um
marinheiro – uma fura nas ondas. duas braçadas a favor da corrente. e lá sai o
sr. professor da água. purgado de todas as maleitas do envelhecimento precoce –
manuel de oliveira morreu novo. um dia. quando fizermos as contas. entenderemos.
veremos que soma dá o toque de finados – para completar esta panóplia de bênçãos.
dizem os íntimos que o professor catedrático dita duas cartas ao mesmo tempo. sem
nunca se confundir. mantendo sempre a postura do corpo. o brilho do raciocínio.
a fala eloquente e a emoção gestual –marido. pai. professor universitário.
político e. por fim. comentador político na TV - a hora de marcelo rebelo de
sousa. programa semanal de sua responsabilidade – estamos perante um verdadeiro
sobredotado lusitano – gosto de o comparar a um automóvel topo de gama – um
ferrari de versão esmerada. vermelho. cupê de duas portas. motor 3.6 litros V8
de 400cv de potência. acelera de 0–100 km/h em 4.3 segundos – uma loucura de
carro. só para gajos com unhas. o motor de oito cilindros leva-o ao fim do
mundo – uma bomba atómica com quatro rodas. mas nem todos podem ser ferraris. alguns
não passam de comerciais de segunda mão. desgastados pelo tempo. sem a mesma
potência nem o mesmo brilho. e assim percebo que a minha inteligência é apenas isso.
um motor cansado. que nunca chegará a essas rotações – junta da colaça rachada.
vielas gastas. escova limpa vidros a nada limpar. retrovisor embaciado com tudo
o que ficou para trás. e o “démarre” afogado num cheiro a gasolina que deixa
antever uma explosão da “voiture” a qualquer momento – eis o que é. fumo negro
em escape que já não filtra o bom do que é mau. e a caixa das velocidades presa
a uma marcha-atrás que não me deixa fazer nenhuma estrada em frente – ao
volante. uma condução de raiva. o limite de velocidade nunca se aplicará ao meu
cérebro – resignado. acolho-me sem medo. abraço o que posso fazer com gratidão
aos deuses da fortuna. e olho o amanhã com esperança limitada para o corpo que
me calhou em sorte – estou demasiado gasto para qualquer conserto. já não há
peças de substituição – sou assim. o que não tem remédio. remediado está – estou
a ficar um caco – as noites começam a ficar cada vez mais pequenas para pensar.
resta-me a escrita e pouco mais – escrevo então. enfim. é noite. e sendo assim.
tenho que aproveitar todas as ideias que andam por aqui em fervura – bem sei
que são tipo géiseres. o repuxo agora só surge de tempos em tempos. e tudo leva
a crer que vai piorar – sou o que o destino me reservou. e nada mais me pode
ser exigido
nota - esta crónica tem mais
de dois anos. e por esse motivo. não faz nenhuma alusão ao candidato
presidencial marcelo rebelo de sousa
09/10/2015
aclasto
06/10/2015
quem gira sem rumo nunca chega ao céu II
2.
hoje
confesso que não há domingo. não há missa. não há
roupa nova e muito menos carne assada. sou quase vegetariano e descobri no
palavrão uma forma de manter o corpo em alerta contra as injustiças – reforço a
pergunta: para que serve um deus na minha idade? para que quero um deus se já
não tenho roupa nova. nem carne assada. nem domingo. nem aqueles sapatos
apertados que por serem de couro só os podia calçar no dia do senhor – volto a
perguntar. para que serve um deus na minha idade? ele existe? algum dia
existiu? se existe que milagre ainda pode realizar num descrente que anseia pela
evaporação crematória – envelhecer é um aborrecimento. um enorme aborrecimento –
quanto mais velho mais dúvidas – sou mesmo um tonto. tanto saber desperdiçado
em boémias inúteis de palavras divinas – reflexões sem fim – já não acredito na
existência deste [meu] deus. um deus sem voz. sem retratos. sem aparições. sem
comprovativo de morada. sem NIF. sem nada a não ser pinturas em capelas sistinas
- - nos dias de hoje. se deus existisse. já um
qualquer paparazzo lhe tinha arrancado uma selfie – tenho a certeza
mas
vou aparentar que aceito a sua existência como certa – hoje estou virado para
este lado criativo. este lado fingido. o lado da indiferença. do faz de conta
de que tudo é divino. e quem sabe. se estiver enganado. a mão de deus talvez mexa
comigo – faço então uso de todos os ensinamentos cristãos. da catequese
assimilada. dar a outra face. do ressuscitar de lázaro. do enxugar os pés da
maria madalena a jesus. das moedas de judas. do ósculo fraternal a fazer
emergir a paz de cristo no coração do homem. do meu também – sou por momentos
um homem renovado na sua fé – estou assim. meio criança. meio adulto – e agora
a saudação da paz do senhor
-- deus que é deus não agrada a todos – recorro a
uma máxima da história para comprovar esta teoria: não se pode agradar a gregos
e troianos simultaneamente
deus
optou por não me agradar a mim – digo eu. conspurcado de pecados – vamos lá
então – imagino-o no seu gabinete rodeado de pilhas de documentos importantes. pessoais.
valiosos. altamente confidenciais – tudo “top secret” – tratados por centenas
de assessores de uma idoneidade inquestionável – estes assessores foram escolhidos
por meio de concurso celestial rigorosíssimo. e com a sua mão direita juraram
sobre a bíblia sagrada defender o catolicismo contra todas as investidas do
demónio – recuperar os crentes perdidos. renovando-lhes a esperança num mundo
eterno – deus é justiça – são estes servos leais que ajudam diariamente deus a criar
um mundo mais justo –
-- tudo dirigido sobre o mais rigoroso olhar de
deus e debaixo de um rígido sigilo – o sigilo é a alma do negócio
acomodado
no seu cadeirão. de óculos na ponta do nariz. despacha relatórios de alta
prioridade e confidencialidade. sem um único sorriso – os problemas do mundo
não lhe dão sossego – já não é aquele deus que me impingiram na catequese. com
ar feliz e sempre rodeado de criancinhas a pularem de alegria e segurança – nem
aquele que me protegia nas noites escuras. e debaixo dos cobertores lhe pedia
proteção contra as sombras demoníacas que cobriam as paredes do meu quarto – não.
infelizmente esse deus já não existe – o mundo tornou-se enorme para um deus
que não fala para ninguém – deus já não consegue chegar a todo o lado – o mundo
cresceu imenso – eu também
-- gosto deste meu lado de criatividade cínico mesmo
que não sirva para nada – sei que não sou nada
deus
também é cínico comigo – todo este cinismo apenas para conter a fuga de crentes
para o mundo do nada – o nada está cada vez maior. incontrolável – nada temo.
nada creio. nada me fará falta depois de morto. nada serei de olhos fechados – o
nada é sempre nada – e lá estou eu novamente no fundo do nada que é como quem
diz no fundo do lixo – o lixo fica sempre por baixo. fica no silêncio das
casas. dos cantos das salas angulares. dos quartos de hóspedes. dos tapetes
persas. dos quadros surrealistas. dos passepartout com retratos a preto e
branco. das gavetas de pau santo. das ruas empedradas. dos cantos da alma onde
os precipícios se tornam eternos – o meu nada é uma espécie de suicídio
assistido – vamos morrendo tão devagar que acabamos por ver partir tudo o que
nos é querido – quando damos conta estamos sem nada. sem nada capaz de nos
fazer morrer de uma só vez – e tudo isto num silêncio lacrimal que por não se
ouvir ninguém sabe que existe – existimos num nada e dentro do nada sangramos
pregados a uma cruz que não sendo a de jesus. é outra que nos implora fé em
alguém que nunca abraçou como um homem – fica então um deus assim como um
presidente da república. cheio de etiqueta. nunca sai do seu palácio e não faz coisa
nenhuma – não faz nada – como o nosso presidente – coisas da democracia que no
reino do céu deve ter outro nome qualquer. já que não me parece que haja
eleições para o ofício de deus – ouço dizer que deus está no céu desde que um
dia se lembrou de criar este pedaço de terra redondo. com mar. sol. sal e
pecados – culpa da pobre eva. coitada
-- raios te partam eva. toda esta chatice por um
orgasmo com o adão – espero que tenha valido a pena
perdoem-me.
mulheres. por este desabafo ingrato e injusto. mas estou cada vez mais certo de
que se não fosse homem seria mulher. e assim jamais seria nada – não acredito
na ressurreição e também não acredito na encarnação – sei que estou vivo porque
entendo o nada. sei escrever nada. dizer nada. desenhar o nada. sei até fazer
um funeral ao nada. mas não tenho quem o leve aos ombros. e sozinho já não sou
capaz – “com o suor do teu rosto comerás o teu nada. até que voltes ao nada.
pois do nada foste formado; porque tu és nada e ao nada da terra retornarás” – que
me perdoem todos aqueles que me abraçam com amor pois não é por falta da sua
presença que eu sou descrente – sou o que sou porque ao nada nunca se pode
acrescentar nada. a não ser matar a memória de um deus que verdadeiramente
nunca existiu a não ser na minha igreja – um dia. cada vez mais próximo. serás
definitivamente um grande mentiroso - sei
2ª parte de 3
25/09/2015
retalhos – número de série 25092015s(r)ego26
31/08/2015
ciclo das pedras
rolam pedras
rolam sem parar
rolam sem ninguém
as veja
rolam agitadas.
donas de montanhas
mas rolam
rolam
todos os dias
rolam
rolam inchadas
rolam papéis
rolam livros
rolam prosas
rolam rimas
rolam até
palavrões
mas rolam
rolam. rolam
todos os dias
rolam
rolam paridas
rolam inveja
rolam cobiça
rolam piadas
rolam
maldades
mas rolam
rolam. rolam
todos os dias
rolam
rolam quadradas
rolam cegas
rolam porque o
outro rola
rolam por rolar as
pedras
rolam arrogantes
rolam uma
rolam duas
rolam três
rolam de três em
três
rolam cem
rolam mil e três
rolam de quando em
vez
mas rolam
rolam. rolam
todos os dias
rolam
rolam do rolar das
donas
de tanto rolar
apagaram as
montanhas
as nuvens
as árvores
os lagos
os rios
os peixes
a terra
mas rolam
rolam. rolam
todos os dias
rolam
mataram os olhos
os ouvidos
as mãos
a boca
o nariz
o coração
como pedra rola
devagar
mais devagar
mas ainda rola
rola
só sabe rolar
cada vez mais só
no seu rolar
sem sol
sem paixão
rola como palavra
inútil
um dia
deixa de ser pedra
deixa de rolar
deixa de viver
restará apenas pó
23/08/2015
quem gira sem rumo nunca chega ao céu I
1.
hoje penso em deus
– confesso-me – cada vez tenho mais dificuldade em pensar no criador – já lá
vai o tempo em que todas as noites. sem esquecimento. lhe devotava um pai nosso
– o tempo passou. muito tempo. tanto que já poucas memórias me restam desse
miúdo devoto – estou a entrar numa nova etapa existencial: olho-me pela vida e
faço o balanço entre o deve e o haver – necessito urgentemente de encontrar um
novo silêncio. olhar para trás sem medo. compreender os chamamentos recentes do
corpo envelhecido. os apelos atuais da alma em questões de fé – o que mudou no
rapazinho imortalizado pela fé para um adulto descrente na eternidade dos céus?
chegou a hora de pesar e contabilizar os meus acertos. e os meus erros – a vida
é uma corrida feita em tempo supersónico onde a meta é sempre alcançada – a
questão é saber de que forma a vamos encontrar – aqui estou perante mim
-- estou certo de que necessitarei de um grande
contrapeso para equilibrar os pratos da balança
a
interrogação que coloco nos dias de hoje não é tanto sobre acreditar ou não
nesse deus do passado. ou nessa eternidade prometida – com os meus cinquenta
anos feitos a dúvida coloca-se de forma diferente – para que serve um deus na
minha idade? – na minha juventude. quando ia à missa do carmo. igreja que
servia os paroquianos da minha freguesia. ouvia o padre carlos dizer: deus está
em todo o lado. deus recompensa a justiça e a fidelidade de cada um. deus é
justo. quem serve a deus de verdade nele descansa
-- ora eu nunca descansei. culpa minha? talvez não
o tenha servido com a fé de um verdadeiro crente
dizia
aquilo com tal convicção que não havia alminha que não acreditasse na palavra do
eclesiástico – este padre era quase tão importante como os santos parados nas
paredes. parados. mas vigilantes. nunca tiravam os olhos dos seus paroquianos. e
ai daquele que ousasse pronunciar o nome de deus em vão – o sr. padre carlos
também não arredava os olhos dos seus fiéis – a igreja repleta. de silêncio
também. e aquelas almas todas inclinadas para o lado de deus: oremos senhor. ámen – todos de joelhos
– um gesto ao de leve da mão do sr. padre e todos os crentes de pé. um exército
de fé incondicional pronto a marchar contra as injustiças satânicas sob o comandado
da omnipresença do senhor – ele estava ali. e está em todo o lado
-- oremos ao senhor pelos jovens da nossa diocese
que sentem o chamamento de jesus
já
não me lembro desse chamamento – o tempo apaga quase tudo. o caminho é agora assente
em recordações a avulso. e a perceção da justiça feita na perspetiva de uma alma
pecadora recauchutada – não tenho medo do que significa morrer em pecado – a equidade
já não é exclusiva do meu deus – agora também eu decido o que está mais certo.
e decido não pelos olhos do senhor. mas pelos meus. alimentados pelo mundo que
consumi – somos tempo. e este muda tudo. principalmente o discernimento entre o
certo. e o errado – a justiça é feita à medida da vida que escolhemos – pavlov
chamou à correlação entre o estímulo incondicionado e a resposta incondicionada
de reflexo condicionado – as crianças reproduzem o comportamento que observam. o
medo também pode ser aprendido – com a idade destruí a teoria e hoje nenhuma
sineta me faz salivar – não tenho medo de julgar contra a vontade de deus
-- o acólito toca a campainha e dá-se o início da
oração eucarística e a consagração do pão e do vinho em corpo e sangue de jesus
cristo.
quem
na minha meninice teria a ousadia de dizer que deus não era justo – ninguém.
nem alma viva. todos temiam a eternidade do inferno – ninguém ousava altear a
voz contra o meu deus. o deus de toda a minha rua. de todo o meu bairro. de
todo o meu país – até a ideologia do estado novo tinha deus como chefe-mor –
salazar mandou publicar: deus. pátria e família. por esta ordem de importância
– ai de quem não acatasse a doutrina. a P.I.D.E. tratava-lhe da religião – e
assim se cumpria a palavra de deus e do ditador – também eu sou agora um
ditador. e a ordem das coisas alterada pela vontade da minha falta de fé em
deus e na pátria. só me resta a família – éramos todos crentes. e o céu a nossa
eternidade – não era fácil questionar ou duvidar uma fé que nascia com a
primeira golfada de ar
-- a hora foi pequenina e graças a deus é
perfeitinho. com a graça do senhor
tudo
era obra do senhor – assim nasci aos olhos de quem me queria bem: perfeitinho –
ai. se me pudessem ver por dentro – mas lá fui andando e vivendo com os olhos cravados
na fé. queria acreditar no meu deus. no deus que sacrificou o seu único filho
para que todos aqueles que nele acreditassem não perecessem. mas tivessem a
vida eterna – a minha vida encurta-se a cada dia. a idade não perdoa – questionar
era pecar e as portas do inferno abertas para uma perpetuidade a arder em
chamas demoníacas – mas toda a criança cresce e com o crescimento do corpo
cresce também as incertezas da fé – com a idade a religião fica cada vez mais
complexa. mais complicada de entender e explicar – deus não quer saber das
nossas incertezas. não dá cavaco a ninguém – tudo o que permanece em mim é o seu
silêncio. como sempre – habituámo-nos – mas sempre acabei por encontrar uma
justificação para a sua mudez – imaginava-o com falta de tempo. ocupado. atarefado.
a correr de um lado para o outro. uma mão aqui. uma criança salva. outra mão
acolá. uma cura milagrosa. e o mar aberto mais uma vez para engolir todos os
males do mundo. enquanto os mandamentos da lei de deus são agora gravados no
céu. onde todos os homens são justos – o mundo perfeito – um sinal nas alturas
divinas a indicar o caminho merecido aos seus seguidores – o homem em plena harmonia
terrena – deus era todo poderoso e o mundo dos homens era justo – a fé estava
por todo lado – na parede do meu quarto um terço enorme. em madeira. protegia-me
de todos os males das trevas. enquanto na mesinha de cabeceira um terço de
nossa senhora de fátima. benzido com água sagrada. guardava-me do medo do
escuro – tantas vezes adormeci amarrado à fé da senhora de fátima – a noite é
sempre tão escura para os inocentes – não havia aposento em minha casa que não
ostentasse um sinal de fé. uma cruz. um azulejo com um dos mandamentos de deus.
um santo contra o mau olhado. e na sala de jantar uma tela enorme com a última
ceia do senhor com judas em destaque – sempre existiram judas no meu mundo – era
aqui que dávamos graças ao senhor por nunca nos ter faltado o pão – o milagre
da multiplicação num lar de crentes agradecidos – vivíamos em estado de graça: fé.
amor. saúde. trabalho. uma mesa feita de fartura. e tudo isto obra de um deus
maior. dono de todas as vontades na terra – pecar era proibitivo para tanta
gentileza divina – se me saía da boca uma palavra mais atrevida logo a minha
mãe me dizia: isso é pecado. nosso senhor não gosta dessa linguagem
-- sábado vais-te confessar para domingo receberes
o senhor sem pecado
ir
ao confesso para libertar o espírito. a alma do pecado. do erro. da desonra. ou
da ignomínia da pior imperfeição do mundo – um palavrão dava direito à passagem
pelo purgatório. e acrescentava:
-- uma alma deve estar sempre limpa. nunca sabemos
quando se cumpre a vontade de deus de nos chamar para o seu reino –
domingo
lá recebia eu o senhor. o padre carlos no topo da igreja. ar seríssimo. tudo ali
era sério. e os crentes todos alinhados. limpos. na roupa também. confessados.
sem um único palavrão. caminhavam passo a passo. solenemente. os olhos no altar
em jeito de misericórdia. e a boca entreaberta em benignidade pronta a receber
o senhor purificador
-- o corpo de cristo: ámen
e
lá vinha eu de cabeça baixa. expurgado de todos os males do mundo. limpo por
dentro e por fora – finalmente puro. renascido para o mundo dos justos e do
perdão – ajoelhava-me e ali ficava dois ou três minutos até que o ritual de
purificação tivesse o tempo suficiente para não ser olhado de soslaio pelos
meus parceiros de fé – nestas coisas da religião tudo tem o seu tempo – cristalino
e lavado de todas as impurezas olhava agora o padre carlos olhos nos olhos –
sentia-me gigantesco e grato com a divindade no corpo. tanta fé e a alma a
inchar de orgulho. com o senhor cada vez mais apertado dentro de mim –
sentia-me diferente. um estado de paz e alegria silenciosa que nunca saberei explicar
– muito menos escrever – finalmente os santos ganhavam vida. olhos largos. sorrisos
abertos. apontavam-me o dedo enquanto os lábios pronunciavam em uníssono: és um
bom menino – afinal os santos não eram apenas figuras de barro – estava em
harmonia com a vontade de deus
-- ide em paz e que o senhor vos acompanhe
neste
dia do senhor todo o cristão veste a sua melhor farpela para entrar na casa de
deus – eu não era diferente – ali estava todo ajanotado. o orgulho da minha
mãe. camisa engomada. sapato polido e um casaco a cobrir todas as imperfeições
do corpo. enquanto o cabelo caía para o lado de deus em perfeita geometria com
a orelha. metade coberta e outra metade pronta a ouvir a pergunta sacramental
da matriarca ao chegar a casa: de que cor era a batina do sr. padre – a minha
mãe tinha que confirmar a minha lealdade aos mandamentos do senhor – ela sabia
que satanás era mestre em desviar os menos devotos do caminho da virtude – os
seus cuidados nunca eram demais para um filho que se quer como exemplo – é
domingo e deus disse: ao sétimo dia descansarás. para que descanse o teu boi e
o teu jumento – não tardava nada estava em casa a almoçar uma belíssima carne
assada enquanto o meu pai descansava fazendo a vontade ao senhor – só a minha
mãe não respeitava a palavra do senhor. era ela que cozinhava – as donas de
casa nessa época tinham uma bula pontifícia para poderem alimentar a família de
pão e amor aos domingos
1ª
parte de 3
13/08/2015
deambulações noturnas - IX
na busca
pela felicidade. nunca encontro refúgio nos meus pensamentos – estes oprimem-me
pela imensidão de informação indecifrável – a mente escarnece sem piedade. como
se pensar fosse uma condenação – meu pensamento. despido de sumptuosidade.
oscila entre o que fiz. e o que gostaria de ter feito – no passado. encontro
sempre algo de errado. e assim. tento corrigir o que ainda planeio fazer –
nasce então mais uma dúvida – a felicidade distancia-se. é mais próxima das
certezas. uma magnificência que o meu pensamento ainda não alcança – tenho
agora a esperança de que a morte. em seu silêncio absoluto. me conceda a
felicidade eterna. e sim. finalmente. o pensamento render-se-á ao silêncio das
pulsações – e assim. alguém dirá por mim: deixou de pensar. deixou de existir
24/07/2015
relâmpago - antónio manuel couto viana
Não me orgulho de nada:
O mundo foi severo.
A conta, após contada:
Zero.
Anda à volta de mim
Quem não sabe quem sou.
Eu fui-me sempre assim.
Ou...?
Vejo os outros que passam
Pobres de ser alguém.
Inúteis, ameaçam
Quem?
Um nome vale um ano,
Ou apenas um mês.
Há-de descer o pano
Sem me chegar a vez.
antónio manuel couto viana
05/07/2015
entre o corpo e o nada
01/07/2015
noturno alucinogénico
a noite está terrível. insuportável – não durmo – como sempre. o cérebro desperta com a chegada do silêncio – começo então a pensar em alta velocidade. imagino-me veloz. embora desconheça o ritmo dos outros pensadores noturnos – mas gosto de pensar que sou rápido – só me sinto capaz de pensar em silêncio-escuro. sempre fui assim – defeito. só pode ser. digo eu. e as sombras fantasmagóricas que se prendem às paredes. sujeitando o discernimento a um pânico alucinógeno. invisível. onde a perceção se distorce. fragilizada pelo surgimento de um ficheiro secreto – na noite escura. nunca sei o que é real ou criação – nem mesmo sei se ainda existo. ou se sou apenas uma mera sombra errante num tempo que já não me pertence – talvez seja um espectro. ou uma sombra extraviada no entrelaçar de noites inexistentes – cada pensamento é uma alma sem rosto. um vestígio de algo que já viveu – bem. talvez eu seja mesmo uma sombra. arrastada por um tempo que já não me pertence
28/06/2015
aqui estou
aqui
estou eu. nesta coisa do facebook. que serve para expressar o meu estado
emocional - para ser sincero. não tenho estado algum. nem alma esfarrapada. nem
um fiozinho de desejo. nem sequer vontade de ter o que todos dizem que tem por
aqui - juro que não tenho mesmo nada. exceto uma dor na boca que se fecha em
palavras - não tenho nada. mas sinto - sinto uma vontade imensa de me
reconstruir. de levar as pernas para a frente. endireitar o tronco. acertar os
braços com os ponteiros do relógio. de acender de novo os olhos no futuro - sinto
uma vontade enorme de dar corda ao coração e voltar a correr nem que seja pelo
mar adentro – hoje. sexta-feira. 26 de junho de 2015. apesar da tristeza ainda estou
vivo – estarei de volta. mais inteiro do que nunca. mesmo que seja apenas nas
águas incertas das minhas próprias escolhas
26/06/2015
o beijo que caiu
por acaso sabes porque é que o beijo
caiu? claro que não sabes. só olha para o céu. para árvores onde nascem as
gaivotas. para estrelas que namoram com cometas de cauda gelada. para os olhos que
pintam tela imaculada. para o sol. para aquele que nasce das palavras perfumadas.
talvez num campo de malmequeres. ou numa braçada de rosas no regaço de um
futuro que se adivinha – escrever é criar perfume – destilar o aroma das tuas
palavras. tu sabes escolher a primavera mais solarenga. mais quente. aquela onde
basta um casaquinho de lã pendurado no braço para enfrentar os ventinhos
frescos da noite – no caminhar sobressaltado. pé ante pé. os olhos fixos no
céu. na agitação das palavras. enlaças os beijos embrulhados em perfume: é a
vida. deixaste cair um? os beijos não flutuam como balões. esse tombou a teus
pés – debruço-me no chão. procuro o beijo que te escapou – sei que está por aqui.
sinto-lhe o perfume – sei que preciso de reinventá-lo
12/06/2015
a vida de uma analepse
é noite e dentro de mim vive uma analepse desvairada.
orgásmica. imersa num suor lascivo de luxúria. grita desesperadamente por
acasalamento – procura um substantivo capaz de criar uma história no presente –
sempre que vê uma figura ajanotada. bem elegante e sedutora. sorri. acicata.
levanta a saia dois dedos acima do joelho. mostra um pouco da zona erógena. abre
dois botões da blusa. deixa o colo insinuar-se atrás de rendas namoradeiras – mas
uma analepse será sempre só uma analepse. feita de tempo passado. carrega
consigo todos os averbamentos da vida: o bom e o mau. a alegria e a tristeza. o
certo e o errado. desespera ao olhar o futuro. porque nele vê apenas a
eternidade do que já passou – a ausência do destino é a sua essência – ansiosa
por encontrar o amor da sua vida. oferece-se como se fosse uma qualquer – precisa
urgentemente de algo que a preencha. um substantivo fálico capaz de inscrever
na sua vida uma mensagem nova. uma nova arte gramatical. vocabulário mais moderno.
a ousadia para enfrentar o inesperado – a urgência é cada vez mais urgente. ela
sabe que a vida é um relógio que não para de contar – nenhum relógio anda para
trás – precisa de futuro. precisa do imprevisível. do intempestivo. do
surpreendente. do inovador. do que a faça vibrar. está farta de ser sempre uma
analepse – acredita que um dia. no futuro. vai encontrar o amor da sua vida – sonha
com um pequeno conto. um verso. um soneto só seu. nem que seja escrito num
guardanapo de papel – importante mesmo é que seja um amor eterno como o de shakespeare.
ela julieta. e ele romeu. envenenados pela eternidade das palavras – carente.
sente a luxúria a devorar-lhe cada parte íntima do seu corpo – há um substantivo
que não lhe sai da cabeça. um que dá nome a todas as coisas belas do mundo – como
é possível querer desejar tanto um substantivo que nem conhece – o momento é
único. nunca se sentiu assim. é como se encerrasse numa única palavra todo o
amor de uma vida – gosta agora mais do que nunca de todas as formas verbais
capazes de dizer coisas. mesmo coisas que ninguém percebe – sabe que só as
palavras lhe permitem dizer ao mundo que ainda está viva – um dia terei um
substantivo com futuro só meu – sente agora um friozinho que não sabe explicar
enquanto o corpo treme como se estivesse dentro de um conto de allan poe – mas sabe
que não está. nem nunca estará. sabe que é uma analepse simplória. sobrevive apenas
rodeada de histórias que não lhe pertencem – sabe somente que ama. ama porque
para se narrar pequenas. ou grandes histórias. tem que se ter um grande amor
pelo que a vida oferece – um dia. prometo-vos que deixarei de ser uma analepse ao
fundir-me com as chamas da terra. que as águas do mar lavem o meu destino. e me
dissolvam naquilo que nunca fui – serei. enfim. tempo presente. pois até as
cinzas carregam em si a promessa de reencarnação
01/06/2015
desabafo na janela de uma cidade sem metro
na
minha cidade não há
metro. nem buracos no solo por onde emergem pessoas vindas de toda a parte do
mundo – na minha cidade homens carrancudos conduzem automóveis com autocolantes
no vidro traseiro a avisar: cuidado! bebé a bordo – se a minha cidade fosse
londres. não tenho dúvidas de que muitos metrossexuais conduziriam automóveis
com o volante à direita – na minha cidade os automóveis circulam com o volante à
esquerda e homens de bigodes fartos ao seu comando – londres tem metro. tem
escadas rolantes que regurgitam gente sisuda vinda do centro da terra a toda a
hora – na minha cidade só há escadas rolantes nos centros comerciais com gente
a subir e descer para não ir a lado nenhum – acredito que em londres as
crianças não nasçam em maternidades. lá. são paridas no subsolo – talvez por
isso cheguem à superfície enormes e de óculos escuros. não aguentam a luz – na
minha cidade as crianças ainda nascem em maternidades onde parteiras vestidas
de branco carregam estetoscópios no bolso do lado do coração – na minha cidade as
crianças acabadas de nascer choram pelas mães. choram de fome. choram pelos
seios cheios de leite. e ao fim do dia. passeiam em jardins enfeitados de
jasmim – em londres as crianças não choram em jardins. nem choram pelas mães.
choram em creches cercadas de medo – na minha cidade os jardins têm bancos
pintados de vermelho e velhinhos que jogam às cartas. com dedos queimados por
cigarros enrolados à mão – em londres os jardins não têm jasmim. têm solidão. e
são tão pequeninos. que não sobra espaço para velhinhos a jogar às cartas – na
minha cidade as crianças demoram a crescer e são mimadas pelos pais com
guloseimas compradas às portas das igrejas – em londres as crianças não sabem
que são crianças e não sabem que há guloseimas às portas das igrejas – na minha
cidade os polícias circulam em carros a passo de tartaruga com as sirenes
desligadas. enquanto os ladrões enganam velhinhas com promessas de mundos inexistentes
– em londres os carros da polícia correm pelas ruas a gritar aflição. enquanto
os malvados arremessam bombas a autocarros lotados de gente vinda do subsolo –
na minha cidade os sinos tocam sempre a evocar o nome de quem parte – hoje
morreu o amilcar padeiro. não aguentou a abalada da mulher. coitado. com os
filhos ainda tão pequenos – em londres os sinos não se comovem. e todos morrem
sem nome – na minha cidade há gente que escreve como eu. sentado para uma
janela que não dá para lado nenhum. imaginando um mar feito de jasmim e
gaivotas. tão pequenas quanto as palavras. que de tão pequenas e
insignificantes. só podem ser compreendidas por quem as escreve – em londres há
gente como eu a escrever diante de uma janela sem jasmim nem gaivotas – um dia.
na minha cidade. construiremos um metro para trazer londres para aqui – hoje há
sol na minha cidade – terá londres sol hoje também?
12/05/2015
maio cor-de-rosa
a semana promete sol – subida de temperatura. intensificação da libido. abundância de fluido corporal – a energia da vida traduz-se num desejo sensual que percorre o corpo – perna sem meia. saia curta. decote profundo. cabelo moldado pelo vento. e um desejo voraz de saborear cada minuto da vida – entreguem-se ao instante. vivam intensamente - posso fechar? está perfeito?
02/03/2015
assinalavam o feitio da ocidental praia lusitana
26/02/2015
e tudo o vento levou
o medo nasce com o primeiro grito de vida – depois.
com o tempo. desliza descontrolado pelas mãos. percebemos que a imortalidade é
uma ilusão – gritamos. mas nunca cedo o suficiente para mudar o que já passou –
a história está escrita. a fotografia é a prova do passado – em cima da cómoda.
o tempo parece parado. fragmentado em momentos capturados. pendurados na
verdade de um passepartout repleto de sorrisos instantâneos – afinal. nunca
estivemos parados – descobrimos nos silêncios o que sempre soubemos – estamos inquietos.
questionamos se a correria é a mesma para todos. ou apenas o caminho que nos
coube. talvez uma mescla de destino. sorte. azar e encontros que não
controlamos – aquela criança que ainda ontem deu o primeiro grito da vida. mais
não fez do que expandir os pulmões. sugou todo o ar que cabia dentro de si e
nunca mais parou de correr – correu sem perceber que os pés estavam sempre à
frente do corpo – e os olhos. loucos pelo que viam. corriam ainda mais do que
as pernas. descansavam no infinito. esperavam todos os dias o amanhecer. sabiam.
mais do que ninguém. que ainda havia tanto por ver – porque ver é voar para lá
do corpo – todos os corpos têm asas – como diz um amigo meu. todos os corpos
são gaivotas. sustentam-se no vento. o destino mede-se pela envergadura das
asas – chegamos onde as asas nos levam. o vento sempre existiu. a dúvida será:
erro ou destino? nunca saberemos. talvez as duas coisas. talvez a mutabilidade
do corpo. talvez da mente. talvez sem saber nascemos umas quantas vezes. e
estamos sempre a dar gritos de sobrevivência – e agora? agora corremos em
sufoco. tentando ainda chegar a tempo de recolher todas as lembranças para
dentro de um corpo que. sem percebermos. já transborda de quinquilharias – não
há mais espaço. o único espaço que resta está no futuro. que continua a fluir além
dos nossos desejos – temos medo de perder as mãos. os olhos. as pernas. o
saber. a sensibilidade. o carinho. temos medo de perder esta forma de escrever.
de dizer coisas – não podemos perder o que resta do tempo. andamos enquanto
pudermos sentir a areia nos pés. olhamos enquanto os sonhos ainda cabem nos
olhos. amamos enquanto soubermos fazer amigos. usamos as mãos enquanto pudermos
abraçar. escrevemos enquanto pudermos dar: afeto. sensibilidade. paixão e
alegria – por cada dia de conquista. como aquele em que demos o primeiro grito
03/02/2015
transversal
na minha escrita não há leitores agradecidos – porque escrever
é. antes de tudo. libertação. magia. perdão. partilha – em cada palavra. a
entrega de uma parte de mim aos cuidados de quem me lê – escrever é mergulhar
em outras vidas. partir rumo a um desconhecido que. provavelmente. nunca encontrarei
– escrever é oferecer palavras. sentir a leitura é permanecer eternamente
agradecido – amo a palavra gratidão. com as mãos. esculpo-lhe a forma. ocupando
um pequeno espaço naqueles que me ajudam a escrever – só os leitores completam
a escrita
21/01/2015
sem rede
só tu
para me fazeres escrever sem rede – gosto de escrever para ti. gosto de
escrever para a mulher que escreve num papel que nunca alcancei. gosto de
escrever para a mulher que me inventa o som de passos que nunca vi percorrer o
chão – gosto de escrever para a mulher que lança o cabelo sempre para o mesmo
lado. o lado imortal da fotografia – gosto de escrever para a mulher que me
escreve a alma – gosto de escrever para a mulher que me empurra para as
palavras e me faz acreditar que escrever é mais do que ver ou sentir. é permanecer