22/12/2010
tudo
08/12/2010
necrófago
quero
um cadáver
para
um poema
por
nascer
dobrado
na
ponta
sem
nome
palavra
ou dor
que
o anuncie
tombado
respira
parado
e
em esforço
o
silencio
que
o peito sente
bem
fundo
a
noite
sempre
acontece
ao
entardecer
sobrevivo
frágil
entre
a espada
e
o papel
onde
o sangue
se
mistura com o negro
05/12/2010
o+ é dezembro
o mau tempo de hoje. é dezembro – o frio que está
pelos pés mistura-se com este que me esfria as mãos – já não tenho forma de
trabalhar as palavras – se fosse ferreiro. temperava os adjetivos com tenazes.
nas brasas. no fogo “que arde sem se ver”. com o maço da minha vida. com
batimentos certos. ao compasso do coração: pum. pum. pum – firmes – estes
batimentos. em certos dias. parecem-me os passos de alguém a regressar do meu
passado – dentro de mim. do lado
direito. em paralelo com a veia cava. construí um banco de ferro com todas as
memórias que amealhei – quando preciso de aliviar a trouxa de memórias que
trago comigo. sento-as. e lá sossegam no seu banco. e no meu também – sinto que
já tenho pouco tempo para perder o corpo de vez – envelheceu. num tempo que nunca
foi verdadeiramente o meu – agora. espero
companhia. mas ninguém regressa do que me sobrou. estou cada vez estou mais só
– do lado esquerdo uma mesa de pau-santo
ornada com fotos a preto e branco – entre o banco e a mesa uma corda esticada imobiliza
um tipo de tule rendado. apenas na cabeceira. onde vê quem passa. com figuras
de santos desenhados a fio de ouro – ao centro. em seda preta. o cálice sagrado
da vida – é nele que misturo o sangue e as lágrimas que guardo na palma da mão
– é tudo o que me resta da vida. umas míseras lágrimas coradas de vermelho –
sei. sei que será este tule que um dia cobrirá o meu último suspiro – também eu
terei uma foto na mesa. a preto e branco. tal como vivi. e uma coroa de flores
com duas fitas negras a dizer: saudade eterna – mas o coração ainda bate. silêncio.
mas bate – talvez a vida pare a qualquer momento. o que posso fazer eu? – aguardo
em silêncio – fico com medo que o silêncio fique… assim como todos os silêncios.
mortos. vazios. sem… sem memórias sentadas. sem futuro. sem olhos negros. sem
língua. e nem brisa quente. nem céu. azul – ninguém sussurra nestes ouvidos. mesmo
que ainda continuem a ouvir o ferreiro a bater do coração – é dezembro. e o
dezembro traz sempre o inverno. ainda me lembro de ser natal em dezembro e não
estar só
01/12/2010
nem nunca
sinto-me
entre a espada e a parede – tempos houve em que estava entre a parede e a
espada – as palavras devolveram-me a razão. a minha razão – no passado.
invisível. envergonhado. escondi-me no silêncio – havia barulho a mais para os
meus medos – havia ainda um par de girassóis dentro de mim. loucos por luz.
viviam apenas do sol. de um que nunca sonhei perder – assim. estava tão longe
da escuridão. e nem uma bicicleta tinha para correr atrás da vida – os outros.
já eram enormes. falavam tudo com tanto saber. eram gigantes. com umas bocas
que quando abertas podiam guardar todas as bicicletas do meu imaginário.
passavam velozes. raramente sorriam ou acenavam. creio que iam com pressa. acredito
que fossem donos do sol – se eu um dia tiver uma boca assim. talvez também possa
ter um sol – acreditei nisso. alguém me disse para acreditar. sempre – aos
poucos. comecei a juntar todo o ferro-velho que fui encontrando pela estrada.
separei todas as porcas e parafusos. liguei ferro com titânio. e fiz uma
corrente. uma corrente que resistiu a quase tudo. até ao orvalho das noites demoníacas
– enchi os pneus de papéis escritos com os meus nadas. levantei os pedais que
um dia o meu pai me comprou. vendi um
anel de família para comprar um casaco de couro e um boné. e assim cheguei ao
que sou hoje – cansado. tirei-lhe as mangas. fiz um selim – à frente do guiador
um livro de eugénio de andrade ilumina a estrada que escolhi. e continuei à procura do sol. que um dia
acreditei ser meu – pedalei com vontade e força. toquei a campainha e abri
caminho entre gigantes e medos. mesmo aqueles que pela força dos deuses se
fizeram pedra – e fui. não sei se já parei. ou a estrada continua
17/11/2010
talvez um monólogo com deus
1.
fazia frio
dentro de mim. foi a primeira vez que um frio assim me tocou. no entanto. o
corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. nas profundezas de mim mesmo.
senti tudo a gelar – estava irremediavelmente só. como sempre. tinha as mãos
metidas em bolsos fundos e vazios. apenas procurava em mim um pouco de calor.
algo aquecesse a alma – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim.
mas sou assim. nada posso fazer – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros
a voar rumo às temperaturas do sul. são pássaros fantásticos. cheios de certeza
e destino – nem sei o nome os seus nomes. mas vêm em bandos. com asas
carregadas de coisas. fragmentos do tempo. vão para lugares onde o horizonte é certo
– mas eu. aqui estou. andando sem rumo. à procura das minhas coisas. do meu
tempo. mas já perdi a conta ao meu tempo. ando de um lado para outro. sem rumo.
perdido dentro do meu próprio corpo – já não há movimento de rotação. a noite
nunca clareia e. a cada hora. surge uma fantasmagoria do sol. pintada na
esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos
dedos até aos abismos da minha consciência. marcada por cicatrizes do viver.
ferida pela mesma sensação incessante: castração – sinto que ou fui hostilizado
por deus. ou fui que me sufoquei. perdi-me no certo temendo o erro. escondi-me
para não voltar a magoar-me – agora sinto-me morto. e quando a morte não me
consome por completo. é como se tivesse um pé na sorte e outro no abismo. às
vezes rezando. outras vezes. implorando por um silêncio eterno. e é quando
pergunto ao deus da catequese: se sempre respeitei os teus mandamentos. se
sempre me preocupei em ser justo. se a minha casa é feita de paz e amor. porque
este calvário. porque estas dores a magoar. se já não sei se estou vivo. ou se
já morri e estou noutra dimensão – é quando me lembro da minha procedência. e tudo
que lhes prometi. é então que saio de mim. e com voracidade. mexo as mãos. e
digo: e grito para mim mesmo: é preciso estar vivo. é preciso sonhar. é preciso
acreditar na esperança. pois só assim me sinto destemido. corajoso. sinto-me
eu. sinto-me com futuro – olho para o céu. mesmo sabendo que a salvação esta na
terra que piso. deixo as mãos aceitar o destino. é nesta procura louca que
acabo por aprender a sobreviver – eu crio dor. cerro os dentes. meus olhos afundam-se.
minha pele contorce-se em uma gritaria que me desperta violência. e toda esta
dor apenas por tentar pensar – quem compreende esta automutilação? caio no
fundo de mim. procuro calor. que é esperança. aconchego. que é companhia para
desabafar. porque no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de
esperança. e eu queria tanto encontrar essa portas com luz. que me atenuasse
este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. imagino que este frio
seja dos fantasmas que habitam dentro de mim. talvez eles procurem algo que possivelmente
nunca tive. eu nunca tive nada – sei apenas que tenho uma vontade enorme de
sobreviver e esta dor. mas também compreendo que o tempo mata a esperança.
acaba por morrer. como morrem todas as primaveras que inventei – o tempo passa por
todos. e estas primaveras de esperança. não mais voltarão a florir. mesmo o sol
chegue à minha eira – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a
vontade de ter outro futuro. medi como quem mede uma rasa de milho. e percebi
que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma contenda
com o que não tenho. mas quero ter. talvez seja mesmo uma guerra. com tudo que
cresce e vive em mim – este frio cada vez mais frio. alimenta-se de esta minha
vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes que
tocam o céu
2.
hoje
estou morto. é estranho como a morte ainda me permite pensamentos. mas não sei
bem quem morreu . só ainda não sei bem quem morreu. só espero que não tenha
sido aquele que escreve a morte em vida – ele ainda me faz falta para continuar
a jornada. tenho umas quantas palavras presas dentro de mim. à espera de
tombarem em papel pardo. cru. como restos de árvores que um dia formaram uma
floresta viva – estas palavras. também elas agonizantes. marcadas pelo tempo
que levou para moldá-las em literatura. jamais aceitarão o silêncio. as noites
tornar-se-ão um inferno. e as manhãs estarão cada vez mais distantes da
realidade – estou louco. há dentro de mim um sofrimento desordenado. caótico. sem
ritmo ou direção. atravessa a multidão que vive aprisionada em um único
corpo – tenho um passado. ainda em
memória. em que os olhos não conheciam as cores fortes. e tudo era suave. tudo
era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundia-os
com músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder
capaz de criar uma ordem para o meu destino. é insuportável – estar morto assim
não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja como
eu. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez suas mãos tremão
com o peso do tempo. moldando e construindo pessoas pelos séculos. talvez ele
também sinta o cansaço – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a
inventar caras novas com jeitos novos. e tudo para os por a rezar. a jejuar. a
falar dele. a encher igrejas. a pedir esmolas para a fome. para as missões.
leprosos. e outros males do coração. e eu a acreditar que um dia também teria
de pagar em promessas este jeito de ser. quase feliz. quase a morrer – o que
deus criou não foi para pessoas com o meu jeito. mas não o culpo. quem sabe.
naquele dia. também ele estava desgostoso. triste. aborrecido. cansado de lidar
com o mundo. talvez tenha sido descuidado. e em vez de um paraíso com homens à
sua semelhança. saíram-lhe marionetes num mundo de terror e pecado – falhou
como eu. pobre coitado. nem estando em todo o lado percebeu que só fez asneira –
hoje. adão e eva esqueceram o gosto da maçã proibida. cresceu em
monstruosidade. agora. ergue-se em andas frágeis. cheia de cabeças a observar o
caos – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as
múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – já percebi que está exausto
pela dor de ver que até um deus. fazedor de milagres e ressurreições. acabou
por me parir assim. sem manual de instruções. sem um qualquer código de barras.
uma etiqueta com as indicações de uso. de lavagem. de vida. mesmo para uma vida
de dor. esgotamento e delírio – passei a sentir-me assim. uma marioneta presa
por fios cruzados. enredado numa encruzilhada que mais parece obra do diabo –
este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste
à sua semelhança – se estivesse feliz aparecia mais vezes. mas não. está
magoado. cheio de feridas. e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca me
conseguiu acarinhar. e eu. todos os dias. olho para o meu interior e digo: não
suporto mais este mundo que construí dentro de mim – preciso de ter uma
conversa com deus. talvez ele também precise do meu perdão. talvez me deixe
limpar o suor do seu cansaço com uma mortalha. afinal suportar esta sua criação
não deve ser fácil – mas ainda estou à disposição de deus para ouvir sobre o
dia ruim em que me criou – este deus. mais cedo ou mais tarde. vai ter que me
ouvir. vai ter que me explicar porque me fez com vários corações. alimentados
de dor. atrofiados pelo tempo – bastava-me um único coração. que soubesse
escrever versos de amor. versos tão profundos
que me fizessem chorar. talvez uma estrofe que narrasse a minha breve jornada
pela terra
3.
meu
deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos dobram pelo meu
descanso – porque não vens falar comigo? deverias ter esse cuidado. sempre que
alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. penso ser digno de uma palavra.
não necessitas de grandes formalidades. espero apenas que me indiques qual o
caminho a seguir. ou então. manda-me um mensageiro. um anjo. um qualquer
pacóvio daqueles que nunca pecou. nem por pensamentos. atos ou omissões. um
daqueles sem coragem de te questionar. a bater com a mão no peito sempre que
pronuncia o teu nome – se me queres irritar. manda-me uma beata. arrependida. daquelas
que se ajoelham no confessionário com a face no assoalhado envergonhada por te
ter blasfemado – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. até fico na
dúvida que saibas da minha existência – um homem sem honra é capaz dos maiores
disparates. e é nesse momento que sobe para cima de si. revoltado. grita por ti
– e com as estrelas à distância de uma mão. pede para não voltar a cair na
incerteza. lembrando-te de todas as
vidas que ainda guardo em mim – mas não
penses que vou chorar. talvez haja tempo para sorrisos. quem sabe. quando por
fim encontrar o teu sinal. quero ainda acreditar que amanhã tudo será melhor –
reza o último pai nosso – o passado fica ali tão perto. e as luzes do mundo são
apenas pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem
o meu nome. a fé está tomada por gente sem rosto – a fé são sorrisos. mesmo os
que deixei perdidos. foram-se no seu vagar. até já não ter um único para me
lembrar – um dia disseram-me que eras também meu pai. e que para um pai o sorriso é obrigação. mas eu
já não sei mais como criam sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. eu
nunca abandonaria um filho. nem os sorrisos – estou triste. sinto cada vez as
estrelas mais perto e tu mais distante –
não precisavas de aparecer pessoalmente. podia ser qualquer coisa. um bilhete.
um sinal. qualquer coisa que mostrasse que ainda sabes da minha existência. ter
a certeza de que ainda és tu que mandas no céu. e assim. aliviar-me deste medo
que sobrevive dentro dos meus olhos – podes não acreditar. mas ainda mantenho a
fé que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – mas não me
peças para acreditar que tens os olhos vendados. muito menos uma espada
amarrada à mão. és tu que fazes as escolhas dos que tem direito a viver em paz
– sempre ouvi dizer que não suportas violência. ainda me lembro da minha
catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de
orgulho por pertencer à tua família – lembro-me da primeira vez que me ensinou
o pai nosso. disse-me que era a forma mais direta de comunicar contigo. de te
fazer feliz. de me ouvires – passei noites a declamar o teu pai nosso.
repetia-o. repetia-o. repetia-o. e pensava. um dia. pensei. vai ficar felicíssimo.
e há de entrar pelo meu quarto adentro – acabava por cair de cansado. adormecia
com os olhos espetados numa imagem onde o teu filho subia ao reino dos céus – o
que mais me impressionava eram a luz que levava consigo. sempre acreditei que
era a trilha para te levar até ti – tanto procurei essa luz. tinha a esperança
que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que
dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a
tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na
noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca
encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes
deixava-me apenas com os ossos do corpo – nunca entendi muito bem essa treta de
dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes
amargurada pela ingratidão dos alunos. percebendo que jamais iria aprender as
letras com aquelas formas arredondadas. recorria à sua palma da mão para me
abrir a mente – nunca percebi se era por não saber as letras. ou se por deus
nunca me ter aparecido – talvez por ser o único que usava suspensórios por cima
da camisa branca. sempre mal ajeitado. o botão apertado junto ao pescoço. cabelo
bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar o
inverno da vida – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha do
anjo da guarda. benzida no mesmo dia em que me entregaram a ti. numa pia de
pedra rodeada de santos e promessas de proteção – nunca ganhei coragem para lhe
oferecer a outra face. bem queria ser como tu. mas não. nem era pela dor. era
pelo orgulho. era diferente. sempre senti o corpo a pedir liberdade. viver em
liberdade sempre foi a minha vocação – eu nunca entendi porque me batia. e nem
compreendia como podias. ali na parede. com os olhos presos em mim. permanecer
imóvel diante de tudo – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz.
mas então onde gastavas os milagres que sempre me disseram que fazias. quando
acabaram? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me salvar das diferenças
que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho: a
escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a
sua vida – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes prometeste. sorriam.
todos menos eu. e eu que tanto queria sorrir. tanto mesmo – o único caderno de
linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu
nome. o “d”. saía das linhas. nunca percebi o porquê. talvez fosses tu a
empurra-me para fora de ti – a vara. reservada para os dias em que a professora
descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma
varada e a seguinte. olhava para ti. suplicava proteção. mas naquela parede
nua. desprovida de qualquer adorno. tua presença era apenas sombra – queria
tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me
tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero.
aquele nunca. pois parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas
na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer.
ignoravas-me. assobiavas para o ar. para mim e para todos os outros. que tal como
eu. imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa
triste e desanimado. nunca encontrei uma criança com cadernos iguais aos meus. com
linhas paralelas. onde o teu nome nunca ficava legível –também nunca me
disseste uma palavra. nem enviaste uma pomba branca. igual às da catequese. ignoraste-me
– nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que fosse uma
palavra bruta. um aviso. uma sentença que me condenasse ao inferno. eu
aceitaria – ainda quero acreditar nas histórias do teu filho. nos milagres do
cego que ficou a ver. naquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou
de lázaro. que voltou das trevas para te fazer rei dos homens. mas cada
silêncio teu parece apagar uma vela de esperança dentro de mim – sabes! nesses
dias em que me contavam essas histórias eu era um miúdo feliz. não apenas por
mim. mas por todos aqueles que te puderam tocar a carne. e dizer: obrigado por
me dares esperança – apesar de tudo. talvez por teimosia ou esperança. eu
sempre te perdoei por nunca me teres aparecido nos momentos mais difíceis.
pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do
que eu
4.
o tempo passa. e de ti. nem uma
palavra – julgava até que algum som fosse teu sinal. mas não. era apenas um som
– agora que morri. não refuto mais o teu silêncio. tu sabes. quando morro. como
hoje morri. é para tudo o que existe. até para ti – não sou capaz de te
compreender. não mo peças. não me venhas com essas histórias de que escreves certo
por linhas tortas. que estás sempre em todo o lado. que ouves tudo. que vês
tudo – és apenas mais um traidor. outro judas. entregaste-me à inutilidade por
trinta moedas – e não acredito que enviaste o teu filho ao mundo para morrer
por mim. por mim não. pelos outros talvez. mas eu não posso morrer quando já estou
morto. e para ti sempre estive morto – pela manhã. com o nascer o sol. talvez
renasça. desta vez sem cruz na parede. sem água benta. sem anjos. apenas eu.
vestido da pouca esperança que ainda aguardo – quero acordar nu. despido
de dores. e vestir-me com o último fio de esperança – arranco o coração. e com
o meu coração nas mãos dou-lhe carinho. peço-lhe que bata apenas mais um dia.
só mais um dia – todos os dias quero apenas mais um dia. já não tenho os mesmos
sonhos. aqueles que tantas vezes te pedi para me ajudares a realizar – tu bem
sabias que não era a cobiça que me fazia sonhar. tu sabias – queria apenas que
o meu pai mandasse matar a maior ovelha do rebanho – o orgulho. meu deus. o
orgulho – será que tu não entendes. eu só queria ter o orgulho dos meus. do meu
sangue. queria construir um novo caminho – permitiste que me roubassem o
orgulho. e tu sabias tudo o que havia dentro de mim. tudo. sabias que não havia
pecado. nunca houve – às vezes não há nada que possa inventar com as palavras.
ainda quero ser um dos teus. dou o coração à boca. deixe-o arder na água que
guardei do meu batismo. quero saber se ele ainda bate por ti. purificá-lo do
pecado que não cometi – guardo as palavras que trouxe do passado. as que aprendi
na catequese – ainda quero acreditar naquela história de que fizeste o mundo em
seis dias e descansaste ao sétimo – hoje é o sétimo dia. estou cansado. os
braços caíram no chão. separam-se do corpo. talvez seja decomposição da carne.
ou o peso de todo o silêncio que carrego. mas ainda tenho o teu olhar nos meus
olhos. ainda tenho aquele santinho que um dia me deram numa missa do galo – era
natal e no natal há sempre esperança – neste dia. eu não era diferente –
imaginava-te sentado a meu lado. de mãos entrelaçadas nas minhas. ouvias-me. também
não queria mais nada de ti. queria apenas saber que me ouvias – depois chorava.
chorava para te mostrar como ainda era da tua carne – só chora quem ama ou que
está magoado – mesmo no pecado veniais. os outros não tinha. mas sempre te
amei. arrependia-me por ti. e as lágrimas eram por acreditar em ti - mesmo na
dor. quando ela era insuportável e a tentação das mãos era mais forte do que a
fé. era pelo teu nome que gritava. e quando deixava cair o pão ao chão era com
um beijo que o limpava dos males do mundo – ter-te a meu lado era ter os olhos
secos – não. não. não. eu sei agora que estou morto – mentiroso. mentiroso.
mentiroso. eu sei que estou morto. mas sou eu quem fala. bem sei que perdido
entra palavras que nada valem. mas algumas metáforas ainda crescem dentro de
mim tentando disfarçar a dor – nunca imaginei que iria ter dores depois de
morto – maldito seja esse teu silêncio que consome até as palavras que nunca disseste –
é esse silêncio que ouço desde o dia que levei as mãos aos ouvidos. não te
consigo perdoar. não consigo – obrigas-me a chorar. eu que tinha prometido
nunca mais chorar por mim – preferia chorar por ti. ainda quero acreditar que
estás a sofrer mais do que eu – ninguém de boa fé faz um homem como eu. principalmente
um deus. tenho de te perdoar. não totalmente. isso não posso. mas talvez um
dia. a tua voz me alcance. e se isso acontecer. quem sabe… quem sabe – já não
te pertenço. não porque não quisesse. mas porque fui renegado. abandonado no
meio do nada. sem honra – não vou guardar ressentimento. vou apenas deixar-te
algumas palavras pregadas à tua cruz. parece-me que é também minha. afinal
dizes que eu sou carne da tua carne – magoo-me só para que sintas que existo –
se um dia o teu filho voltar a ser crucificado terás sempre estas palavras. e que
alguém sofreu a acreditar em ti – sempre soube que seria eu a escolher o dia da
minha partida – por agora morro apenas mais um dia. qualquer dia. terás de me
ouvir. e serás tu a limpar-me o rosto com a toalha com que verónica limpou o
rosto do teu filho
13/11/2010
o tempo que o tempo tem
o
dia gemeu
em
agonia
o
relógio perdeu-se
no
tempo
e
até o gigante big ben
o
dos ponteiros colossais
sucumbiu
só
os segundos
devoram
o tempo
ainda
00.01 pm
00.02 pm
o
escritor
construtor
de ilusões
diz:
hoje
sempre será ontem
palavras
emoções
lágrimas
crenças
rostos
vozes
fotos
conflitos
ambições
loucuras
ilusões
amores
percalços
desejos
rendições
tudo
sempre
tudo
tudo
que o relógio
conta
de
ontem
chega
o tudo
antes
que o tempo
revele
nos
ponteiros
a cadência da vida
pensar
é exorcizar
o
saber presente
é
compreender
sou
de ontem
do
papel:
o
aroma da floresta
do
tinteiro:
o
alquimista perdido
de
ontem
o
sol nascente
das
mãos
a
solução
ainda
ontem
eram
pés
com barbatanas
onde
o tempo faz vida
hoje
é
leitura
subtileza
tecida no tempo
em
falta
mas
no
vosso relógio
serei
sempre
imaginação
ou
talvez
apenas
um momento
passado
00.17pm
o
relógio
faz
tic-tac
no
instante passado
e
o não silêncio
do
tic-tac
bate
com a certeza
de ser o presente
serei sempre
o eco incessante
deste bater
10/11/2010
estes lados. nossos
tenho
entre os mãos uma porção de terra. trouxe-a de um jazigo para suavizar uma
saudade – desde que partiste sinto-me amargurado. perdido e zangado. tinha
ainda tantas coisas minhas para te dizer – eram importantes. digo eu – não
devias ter apanhado aquele autocarro. bem sabes que o carreiro por aí é
demorado. estreito. tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escuro – tenho
medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã
às cores. sempre te fez mais novo. era lã pura. combinava contigo – lembro-me
de como sorrias ao vesti-lo. como se o inverno nunca te tocasse – um dia
vesti-o. enfureci-me. não me assentava nos ombros – sempre foste mais aprumado.
as tuas as costas alinhadas carregavam a vida com leveza – as minhas. bem. as
minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço
acreditando que é possível viver-te nos sonhos – ontem consegui falar-te com os
lábios. sempre depois daquele beijo na face. quente. senti eu – fiquei com um
trago açucarado na boca. mel – depois. guardei-te no silêncio criado nos meus
olhos. nossos – estendi as mãos. toquei-te. senti-te. abracei-te. e ali fiquei
aconchegado a mim. a nós – tive medo de acordar. e guardei a mão onde tenho
cravada a linha da tua vida. foi cortada pela
tua ausência – nesta minha mão. que é nossa. a linha prossegue outro caminho.
que é também o teu – quem nos ensina a andar quando não temos mais o chão. meu
pai? como vou caminhar com o que é teu. meu pai? não sei. eras tão diferente de
todo o mundo. meu pai – a nossa árvore. é a nossa árvore. respira a nascente.
para onde sempre me guiaste – mas eu era novo demais – nos dias em que me
pegavas ao colo. todas as árvores pareciam ser do teu tamanho – a vida acontecia
sempre nos teus braços. fortes. tão fortes que o céu ficava à distância de um
sorriso – ainda nem sabia que esse céu. um dia. receberia todos aqueles que
gostamos – do mundo. conhecia apenas o jardim que criaste para mim – havia
sempre tanta gente a dizer coisas nesse jardim. nosso – faziam um quase
barulho. às vezes sussurro. às vezes música. às vezes amor. nosso – tu. falavas
como se inventasses as palavras ao dizê-las. nossas – nunca paravas – e nos
teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas. eras um homem bom. e como fazem
falta homens bons no meu mundo agora – nesse mundo. que me deste a conhecer.
sempre houve um baloiço onde eu te esperava. às vezes levava-te. às vezes
trazia-te. nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais
tarde haveria de ser também meu. nosso – e depois. regressavas. sempre. por
mais que o tempo matasse o próprio tempo. a tua casa éramos nós. todos – sempre
o soube – tudo parecia tão simples. o mundo. a vida. e dentro de mim. tudo era
simples. bem sei que tu também eras simples – em ti havia vida. havia certeza.
havia mel. havia sorrisos. tu eras um sorriso. nosso – e o baloiço andava para
lá e para cá. como se imitasse os dias a nascer. porque tudo que nasce carrega
consigo uma razão para existir – havia uma razão maior para existires em mim.
eras um homem bom. como mais ninguém – era tão jovem. não sabia nada da vida.
nada do que ela guardava para mim. não sabia como nasciam os dias. nem sabia
como todos são obrigados a morrer – sabia apenas que o destino nos leva. de
norte para sul. até o infinito das memórias – tu bem que me apontavas o
caminho. mas era demasiado jovem para entender que até o sol. tão luzente. um
dia pode morrer – não foi por desistires que eu não me fiz homem mais cedo.
nunca sossegaste com as palavras. eu é que era surdo. cego de tão jovem – na
tua presença o baloiço nunca parava – sempre foste um homem livre. eu também
sou. como tu – sempre usaste as palavras. para me falar. os ouvidos para me
escutar. os olhos para me ver – eras o meu pai – as argolas de ferro que
seguravam o baloiço já rangiam. e eu sem saber como o nosso tempo estava
prestes a esgotar-se. lento. mas inevitável doloroso – nesses dias. ouvia-se o vento furioso. mal
eu sabia que nesse ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas
amparado no sinal da cruz. com que te deitavas. sempre – tu ainda tinhas um
deus. o mesmo que já foi meu. agora. estamos amuados. para te ser franco nada
sei dele – no ar as folhas chamavam o outono. e os dias pequenos. cansados.
prestes a desaparecer – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se
e as cordas começaram a chorar. como se o ar debandasse – nesse dia que
viajaste fiquei só. e fiquei para sempre – tínhamos ainda tantas palavras para
dizer. tantas coisas para partilhar – mais tarde um homem de chapéu preto
chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma
chave. atada com uma fita negra. disse-me que era da tua nova morada. nunca
acreditei – partiste sem uma única palavra. tua – tu não eras homem para partir
em silêncio. não podias ser – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou
fora. não aborreças a tua mãe. faz sempre o que a mamã te mandar – alguém te
enganou. digo eu – fomos enganados – tiraram-te a memória para partires sem
boca – a dor comeu as palavras – sei que um dia vais voltar. ou talvez esperes
por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho. o que usavas na
carteira. nunca mais o vi. talvez tenha fugido com a vergonha – sei que um dia
vais pedir para falar da vida que guardo em segredo. todos os dias – enterrei
tudo num buraco onde. criei a nossa árvore. é a tua memória
07/11/2010
cruz ansata
já não tenho palavras que sustentem a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado vazio. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos. caíram desesperados – apareceu a ferrugem. aquela que conheci em tempos. corrosiva. devorava todos os nomes – talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora. não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar despreocupado temo pelas minhas mãos – habituei-me a este corpo. despido. descalço. carrego apenas à cinta uma sacola de couro e letras. que trazem minha vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de cólera – nasceram talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo o que via. ingénua. tão pura em sua crença – voltou tudo novamente ao tempo da ilusão. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira. pensava que já me tinha esquecido dos amigos. mas agora vieram estes. os novos. os arrumados. os que se acham eleitos. com direitos imaginados. sem teto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a ignorar o olhar dos que achavam que não havia nada dentro de mim – não posso continuar calado – estas mãos também escrevem. podem não ser perfeitas. mas não matam palavras – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro feito de hematite negra – e a cor negra que trago no corpo. é a sombra do trabalho árduo que faço com as minhas mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas essas. assim. mesmo cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas em dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia somente para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz. mesmo sem nunca ter sido antes – vê o que fizeste destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é prazer. é êxtase. é orgasmo. é vida. é esperança – e quando escrevo sou isso. repito. sou isso sem dúvida
04/11/2010
mau tempo
tenho as palavras alteradas. talvez por isso as gaivotas continuem em terra – até mesmo aquela gaivota malhada. sempre entregue ao vento norte. com asas a rasgar a espuma que escorria do canto da minha boca. se afastou – um dia. quem sabe. falarei com ela – direi que o mar. aos meus olhos. é infinito – ou talvez não – talvez lhe vire as costas – verei o que fazer com as palavras. talvez as guarde para sempre. longe do sal que as desgasta – mas do mar nunca tirarei os olhos. foi batizado por um deus que não sabia escrever. mas dominava a arte de equilibrar – e assim nasceram as marés
23/10/2010
10/10/2010
palavras desamparadas
acordei sobressaltado – puxei-me para cima
dos quadris e sentei-me no topo da cama. virei-me para sul fugindo do mau
olhado. o norte traz sempre ventos frios e húmidos – há uma janela quase
quadrada que me dissipa a solidão. é lá que ponho os olhos a sossegar – lá
fora. nos socalcos do olhar. mesmo ao junto ao beiral. já há gente a correr
atrás da vida – pego num dente de alho e penduro-o ao pescoço. talvez precise de
proteção contra os demónios. não tenho medo das suas crueldades. mas irritam-me
contra absurdo que nem sempre compreendo – pressinto dentro de mim umas
cogitações. querem ganhar forma. flutuando no espaço entre o que vejo e o que
penso – são como ondas nesta cabeça: ora ourada. ora torta. ora inclinada para
a loucura – são ideias como barcos à deriva oceano. sobem. descem. mas sempre
ao correr de ventos que ninguém sabe onde nasceram – neste mar sem fim. há
peixes. peixinhos e peixões que se alimentam deste emaranhado de ideias. nadam
como se tudo fosse águas calmas. tranquilas. águas sem predadores ou mesmo sem
leões marinhos – nem sei se são estúpidos ou arrogantes. talvez as duas coisas
– habituaram-se a refúgios seguros que tenho por detrás dos olhos – sempre que
os fecho. nada mais é capaz de perigar dentro deste oceano de pensamentos
loucos – há profundezas que desconheço completamente – é nestas alturas que
sinto a morte nos dentes. fico com medo. vejo tanta coisa estranha. e nomes que
chamam por mim. ruídos que me são familiares – certo dia. até ouvi a campainha
da escola. aquela que me fazia correr à procura da vida – nestas memórias.
meias loucas. permanece a imagem de um sargaceiro vestido de fato amarelo.
trauteia umas quantas canções de sereias que já morreram – eram do tempo de
ulisses. meias mulheres. meias feiticeiras. das profundezas dos mares. faziam
sonhar homens destemidos. mesmo aqueles que nunca foram embalados e amamentados
por peitos secos de amor – coitado! esqueceu-se que está com água até à cintura
e a maré continua a subir – as algas que em tempos eram abundantes são agora
meia dúzia de ideias desprendidas de um cérebro em decomposição – talvez seja
melhor içar a bandeira vermelha. talvez assim volte a subir às dunas onde
costuma descansar o corpo coberto de sal – também ele quando fecha os olhos
consegue ver as gaivotas a bicar as incongruências da imaginação – um dia
morrem os dois. e nem as ideias com guelras sobreviverão. morrerão sentadas no
areal da praia a chorar a morte do corpo
07/10/2010
quadro negro
passei
pé ante pé.
o giz
no quadro negro
tremeu.
sabe?
sabe de mim coisas.
pequenas e banais
anormais para quem passa
tremeu
e os cegos?
[alguém pensou neles?]
esses. sim
os cegos sem olhos
leem o mundo com as mãos
roubam palavras
com a mente
ah. se fossem só palavras!
tremeu
mas o giz
o giz
nunca mais o vi
03/10/2010
outubro – deixa-me rir
não sei se estou triste
estou
por agora. aqui
uma parte de mim descansa na mão
os olhos perdidos na chuva
os pés dançam na lua
lá longe
amália trauteia saudade
é domingo
e eu todo em silêncio
29/09/2010
deceções e conceções e o silêncio poético
tenho um punhal guardado desde o tempo em que as pessoas
lutavam por coisas de nada – abri a gaveta escondida por detrás de mim. ao lado
da moela que tritura tudo o que me fazem – voltei ao passado. tempos em que o
coração vivia aos saltos na boca – este músculo. que se retorce sempre que o
paladar altera o tamanho das papilas gustativas. dá origem a uma explosão de
irreverência linguística. crua e real – abre-se a porta ao palavrão. ao calão.
às putas. aos caralhos. aos fodasses e. por último. até aparece uma puta que
pariu esta merda toda – que seria de mim se voltasse a usar este punhal? – esta
herança da luta contra as injustiças. lâmina que cresceu num tempo que não foi
só meu. e fez de mim tudo o que sou hoje – imaginei-me a tentar matar um poema.
um poema muito pequeno. quase um haikai. sem brilho. sem musicalidade. envolto
em mistério. e solitário como um sem-abrigo – imaginei-me. mas já não consigo
matar o quer que seja – hoje. aceito as diferenças. quer nas coisas. quer nas
pessoas. são as diferenças que nos fazem especiais e dão colorido à vida – fiz
a minha casa ao ar. sem o azul do céu. conservo apenas a noite para poder
sonhar. encontro conforto em mim mesmo. e depois. num banco de talas
geometricamente perfeito. vermelho para realçar os farrapos calvin
klein. emersos em comichão da “socialite”. e falo em silêncio para uma cidade
de pedra – já os rejeitados do mundo. vivem em corpos que nunca ouviram paz.
compreensão. e segurança. ignoram os buracos de uma roupa que nunca foi nova. e
falam para eles como se o mundo inteiro os escutasse – um grilo teimoso canta.
não por si. mas por aqueles que falam em silêncio. e são tantos – canta até o
romper do sol. canta até ficar sem voz e sem animo. o mundo não os ouve – num
banco. um corpo silenciado teima em viver. aos seus pés. nasce uma flor de
esperança. cresce entre dedos gretados pelas noites de orvalho. a vida faz-se
de coisas simples – este verão. sentado defronte para o sol. sabe agora. mais
vale tarde do que nunca. que necessitará de quentura para os dias frios que se
avizinham. o silêncio não aquece – olha para um futuro quase terminável. a
morte caminha sem tempo. e as memórias gélidas pela solidão de quem já não sabe
pedir socorro – um dia. acordou com voz de criança. pensou que era um sonho.
mas não. era a flor de esperança a partir em desespero. levou com ela todas as
letras que um dia sonhara para fazer um ramo de cravos – e agora aqui estou.
com tudo desaparecido. resta-me apenas o banco vermelho com as talas
geometricamente colocadas de sul para norte. era assim que se deitava. é assim
que me vou continuar a deitar. com os olhos acomodados no horizonte – desisti
de matar poemas. nunca terminaria com a poesia. por muitos que matasse. haveria
sempre mais a nascer nas mãos – já ninguém acredita em odes poéticas – é
preciso mais. muito mais para acalmar o meu desassossego. tenho que fazer mais –
pensei em matar um poeta. daqueles que fazem rimas e prosas. e que levam a
pouca arte a cair-me das mãos. é então que choro de raiva. não compreendo porque
a vida necessita de tantas palavras. afinal basta apenas aceitar as diferenças
– os poetas estão a desaparecer. talvez por não encontrarem mais razão para
juntar palavras num mundo que já não as valoriza – vivemos todos no mundo do
silêncio – hoje. neste mundo de tráfego digital. que valor real existe em dar
sentido às palavras – é tudo tão efémero – esta coisa de trazer tanta coisa de um passado
já é distante. sem nunca ter parado para descansar. sem nunca ter aliviado a
carga a olhar para uma flor que fosse. mesmo que ainda não tivesse
desabrochado. mesmo que a primavera estivesse presa no cair da folha. torna-nos
indiferentes. como se apenas eu tivesse direito à vida – podia ao menos ter
chorado. quando choro. não estou só. sinto a metamorfose da dor em água. só
dentro da carne é visível a transformação da dor em água – por fora. que
interessem têm o que está por fora? aos poucos. nascem sulcos arados pela
vontade de ter uma nova oportunidade. sentir alívio. superar a dor. é preciso
abrir novos caminhos pela tristeza. sentir a vida desfazer-se em água. passar
pelos lábios. e deixar definitivamente o gosto acedo das profundezas da alma e.
depois. pedir aos olhos para guardar a transparência da vida liquidificada. e preparar-se para viajar na imensidão do pó sem
mágoa – acreditar. o que estava ao meu alcance fiz – agora. com a viagem a
decorrer. fico apenas com um gelo na face. é o vento a secar a dor por detrás
da carne. do tempo perdido. do erro – caio em mim. sei agora que estes poetas
loucos nunca andam sós. amparam-se uns aos outros. os desgostos da vida são
apenas oportunidades de escreverem sobre outras vidas. a deles é sempre pura.
sem motivo para renascerem – acasalam as pernas de pau com que riscam o chão
por onde passa todo o sonhador. todo o sem abrigo. todo o homem nu. mesmo
levando todas as palavras capazes de florir o mundo – no chão. sem saberem.
desenham a desilusão. a amargura. o fel de todas as angústias da vida. apenas
da sua vida? não. levam consigo todas as vidas. e mesmo não sentindo nada do
que escrevem. fazem da vida uma passagem – olhei para o punhal com os olhos consumidos
pela ressurreição. fechei-o à chave. dando duas voltas e
selando-o com o lacre das minhas memórias – o selo são as minhas impressões
digitais – não compensa matar o que já morreu – os poetas escrevem tentando
desafiar o tempo que um dia os consumirá
27/09/2010
torre do tombo: entre malmequeres e cometas
não consigo ver o meu
branco. por mais que o tente imaginar – nem o meu tempo. que parecia escapar nas
palavras que te oferecia. desejando que te tornasses meu amigo – mesmo aqueles
malmequeres de pétalas brancas. que tantas vezes comprei para embelezar os
sírios que acendia para alumiar a memória dos que sempre me quiseram bem.
perderam a cor. e as pétalas caíram. sem nunca mais formarem uma flor – tento alcançar-me
sempre que escrevo – mas continuo a acreditar que a cor dos cabelos não combina
com os meus olhos – das minhas mãos. esperava muito mais. mesmo que fossem como
um cometa. fugaz e distante. largando rastros de vapor pela imensidão do céu. podia
sempre dizer: que chatice! este sou eu. apenas uma mistura de tons. que muitas
vezes não formão cor nenhuma. apenas tonalidade mate. sem brilho. sem luz . sem
racionalidade – mas há dias em que sinto tantas coisas ao mesmo tempo. como se
carregasse todas as palavras do mundo. melhor ainda. há dias em que sou tudo. sou
as palavras justas. aquelas que se vestem de arte para partilhar o tempo que
todos os dias consumo – só que o tempo é curto. e tenho cada vez menos tempo para
ser aquilo que quero ser – o tempo escapa-me. e os sonhos que queria alcançar dissolvem-se
na realidade – então. talvez seja hora de me reconciliar com o que realmente sou
24/09/2010
fama
neste
passeio da fama
descobri a arte da lama
se
rima. é porque carrego penas
não
de gaivota. mas de idiota
empilho
palavras vazias de sentido
despejadas sem rumo ou abrigo
putrefação
de sonhos. versos em agonia
arte
ou delírio? apenas melancolia
22/09/2010
dezembro é já aí
amarrei na armadura que
guardo por detrás dos dentes. tirei os olhos para fora. despenteei o cabelo
para me parecer um pouco selvagem. e berrei tão alto que. no eco desse grito. meu
amor interior se despedaçou – foi naquele instante. quando vi partir a cobiça. que
algo em mim se quebrou para sempre – não sou mais o homem que fui – estas
primeiras chuvas de outono. que chegam em setembro. amolecem-me – para quê este
berro se o silêncio o captura – bem sei que berro para dentro. enquanto os
olhos fugiram para um mundo que eu não gosto. marcharam para uma floresta que
já não existe. e ali ficaram perdidos para sempre no nada – em tempos. as manhãs.
eram uma corrida divertida em busca do farol. um rumo iluminado – que saudável
era ter a certeza de que um dia seria o que quisesse. até talvez dono de um
império intelectual – o negro. nascido e criado por mim. sobrevive todos os
dias com o acordar da noite. pintando o luar de medo e sonhos adiados – é
quando mando as mãos trémulas para o espaço e procuro-me sentado na lua. converso
comigo à distância. e antes do sol me trazer à realidade. mergulho para casa
convencido de que é minha obrigação continuar a trabalhar-me. mesmo sendo feito
de osso de dinossauro – o tempo passa. as dúvidas brotam sem saber como as
guardei. e morro de medo amarrado a mim – e assim fiquei até hoje. feito em
medo. e sempre que o corpo falece. procuro uma poça de suor de cavalo-marinho
para renascer – a violência. por mais estranha que pareça. desperta algo
profundo em quem fala consigo mesmo – ela rasga o silêncio – o cavalo-marinho.
com um assobio na boca. interrompe esse momento e chama a atenção de todos os idiotas:
cuidado idiota. não tarda nada estás velho. olha o que te digo neste assobiar de
alerta: mantém o velho fora da porta ou acabarás por apodrecer antes de faleceres
– a minha resposta recorre a um quadro de vincent van gogh. com o seu quadro campo
de trigo com corvos – e interrogo-me: está o mestre a pensar no trigo e os
corvos servem de adorno. ou o contrário. o foco principal são os corvos e o
trigo surge apenas porque em frente à janela do seu quarto há um campo de trigo?
é exatamente o que acontece com a minha vida. meu coração é um campo de trigo. onde
os corvos zombam do tempo – o vazio cresce à medida que o relógio se arrasta e o
nada cada vez mais nada – quero continuar a acreditar que apesar do caos
interno. ainda insisto em acreditar que. no fundo. a terra e o ar são apenas
ornamentos de algo maior – eu preciso encontrar um propósito. mesmo quando tudo
ao meu redor parece perder o sentido – para mim. o quadro de van gogh é a
perfeita representação da minha vida: um reflexo sombrio de desesperança onde.
apesar de tudo. os corvos continuam a desafiar o vazio com os seus voos – quando
a esperança me abandona. é o coração que fica a bater. sem saber o porquê. talvez
seja vício. ou apenas uma necessidade de desafiar a própria dor. quem sabe
contrariar-me. mas o que sei e sinto. é que bate devagar. talvez para compensar
o nada instalado – no ventríloquo direito. ligado à mente onde ainda guardo
alguma esperança. as gaivotas dançam livremente no mar e no vento. como se
fosse a última dança – no ventríloquo esquerdo. ligado à mente onde guardo os
corvos amarrados à terra. zombam prisioneiros de suas próprias sombras – a
dividir os ventríloquos um abutre chegado do corno de áfrica. traz como merenda
um pedaço de gazela que se tinha cansado de correr – o abutre. mestre da
desordem. é o único que conhece o destino da carne caída. e no meio do caos. mantém
a ordem – a morte também alimenta a vida – para ele não importa quem faleça. se
o idiota ou o mestre. vive da morte. até da morte da esperança – a gaivota que um
dia foi livre já não voa mais. agora. ela observa. imóvel lê um livro de jorge
reis-sá. busca um sentido para a sua própria prisão. anotando em glossas o
passar do tempo do idiota e do mestre. ela sabe que os segredos desembrulham-se
no fim – os corvos amputaram as asas e mergulharam no campo de trigo.
suicidaram-se com a falta de imaginação – para uma história triste. um final
triste: todos morreram de morte natural. reflexo do abandono da esperança – o
idiota. cego pela sua busca incessante da liberdade. saltou do seu penhasco. acreditando
que finalmente podia voar – talvez o único a buscar algo. mesmo que essa
procura o levasse à morte – dezembro é já aí