.................................................................................não tirem o vento às gaivotas

22/12/2010

tudo









ainda tenho de encontrar as palavras para te dizer tudo – tudo em mim é pequeno. insignificante. quer dizer: és tudo. mas eu sou tão pouco. tão pequeno. tão curto. tão vazio. sou o que posso ser. um sem camisa branca. sem colarinhos engomados. sem botões de punho. sem roupa feita à medida. sem anel. nem branco nem amarelo. nem nada. não há em mim arte ou engenho que alcance tudo – ainda tenho tanto por te dizer. tanto. mas só os teus olhos sabem. só – e tudo é quase o nada dentro de mim. nada. mesmo. só pode ser culpa minha. deveria saber escrever. mas não sei – mas mesmo sem palavras. és tu sempre que trago comigo. é tudo o que quero. tudo o que sinto quando respiras a meu pé. tu – eu sou um tudo e um nada. um quase nada de amor. um tudo menor que o céu. menor que o futuro. que a vida. que o tempo que resta – quando vejo os teus olhos. quando os olho por dentro. onde guardas ainda o menino que um dia te abraçou. como se todas as primaveras de março florescessem no teu sorriso. tudo dentro de mim diz que não tenho ainda o necessário para te dizer tudo. abraçar. para te beijar. para te segredar ao ouvido: tu és o meu tudo – mas quando estás perto. não há palavras. a boca treme e até a meiguice que trouxe do passado fugiu para um lugar que não conheço – dentro de mim tudo desaparece – tenho os olhos nas mãos. quando adormeces encosto-os ao teu peito. e nos teus caracóis. enrolo a vida. bem apertados – deixo de respirar. até o ar que respiro é teu. tudo é teu nas noites onde me desculpo por não ser tudo. um homem sem tudo é um homem desesperado – dormes. dormes como se habitasses o primeiro sono. e quando o amor é ainda uma criança. pequena – guardo no peito todas as lágrimas. as que afogam o coração de medo. até ao dia em que um de nós parta. sei que as minhas lágrimas são tuas. todas – são tantos anos amor. são tantos anos. foram tantos anos que o meu coração migrou. está no teu peito. e é o teu nome que bate no meu tempo agora – és a minha vida. és o corpo. o corpo que corre. que abraça. que grita. és. desde o dia em que me aceitaste para ser teu. não tinhas de o fazer. és tudo o que há em mim – tudo o que quero amor. tudo. mesmo. é guardar os teus olhos para o dia seguinte. onde o tudo deixará de ser tudo. tu não estarás mais a meu lado. partirei para um lugar diferente de tudo o que tive – não quero chorar por ti. não suportaria ver-te partir. tu és tão bela. sempre foste. a pele ainda cheira às flores que um dia colhemos em junho. loucos. começamos a falar de amor até hoje. nunca paramos. mesmo quando de porta aberta o vento fazia gelar os corpos. nós falávamos. falávamos de amor. de tolerância. companheirismo. lealdade. e da beleza de estarmos juntos. sempre mais apaixonados – somos amor. tudo é amar-te – tu és tudo. tudo o que tenho para chorar no dia em que partir – de ti amor quero lágrimas. quero sentir o teu amor. a tua tristeza. a tua saudade – quero que sintas a pele fria. gelada. de quem vai para o inferno. por saber que não mais te verei. quero sentir os teus lábios quentes. na minha carne gélida. quero que recebas a chave que me encerrará no lugar onde o amor terreno já não existe. quero os teus beijos desesperados por deslaçarmos as mãos – quero as tuas mãos ao pescoço e ouvir: nós fomos tudo um para o outro. ainda somos – eu. jamais conseguirei dizer-te. merecias mais. não sei escrever o amor. talvez sussurrar-te. mas não sei. perdoa-me. mas não sei moldar palavras. só sei dizer que não suporto viver sem ti



08/12/2010

necrófago









quero um cadáver

para um poema

por nascer

 

dobrado

na ponta

sem nome

palavra ou dor

que o anuncie

 

tombado

respira parado

e em esforço

o silencio

que o peito sente

 

bem fundo

a noite

sempre acontece

ao entardecer

 

sobrevivo

frágil

entre a espada

e o papel

 

onde o sangue

se mistura com o negro



05/12/2010

o+ é dezembro








o mau tempo de hoje. é dezembro – o frio que está pelos pés mistura-se com este que me esfria as mãos – já não tenho forma de trabalhar as palavras – se fosse ferreiro. temperava os adjetivos com tenazes. nas brasas. no fogo “que arde sem se ver”. com o maço da minha vida. com batimentos certos. ao compasso do coração: pum. pum. pum – firmes – estes batimentos. em certos dias. parecem-me os passos de alguém a regressar do meu passado –  dentro de mim. do lado direito. em paralelo com a veia cava. construí um banco de ferro com todas as memórias que amealhei – quando preciso de aliviar a trouxa de memórias que trago comigo. sento-as. e lá sossegam no seu banco. e no meu também – sinto que já tenho pouco tempo para perder o corpo de vez – envelheceu. num tempo que nunca foi verdadeiramente o meu –  agora. espero companhia. mas ninguém regressa do que me sobrou. estou cada vez estou mais só –  do lado esquerdo uma mesa de pau-santo ornada com fotos a preto e branco – entre o banco e a mesa uma corda esticada imobiliza um tipo de tule rendado. apenas na cabeceira. onde vê quem passa. com figuras de santos desenhados a fio de ouro – ao centro. em seda preta. o cálice sagrado da vida – é nele que misturo o sangue e as lágrimas que guardo na palma da mão – é tudo o que me resta da vida. umas míseras lágrimas coradas de vermelho – sei. sei que será este tule que um dia cobrirá o meu último suspiro – também eu terei uma foto na mesa. a preto e branco. tal como vivi. e uma coroa de flores com duas fitas negras a dizer: saudade eterna – mas o coração ainda bate. silêncio. mas bate – talvez a vida pare a qualquer momento. o que posso fazer eu? – aguardo em silêncio – fico com medo que o silêncio fique… assim como todos os silêncios. mortos. vazios. sem… sem memórias sentadas. sem futuro. sem olhos negros. sem língua. e nem brisa quente. nem céu. azul – ninguém sussurra nestes ouvidos. mesmo que ainda continuem a ouvir o ferreiro a bater do coração – é dezembro. e o dezembro traz sempre o inverno. ainda me lembro de ser natal em dezembro e não estar só

 


01/12/2010

nem nunca






sinto-me entre a espada e a parede – tempos houve em que estava entre a parede e a espada – as palavras devolveram-me a razão. a minha razão – no passado. invisível. envergonhado. escondi-me no silêncio – havia barulho a mais para os meus medos – havia ainda um par de girassóis dentro de mim. loucos por luz. viviam apenas do sol. de um que nunca sonhei perder – assim. estava tão longe da escuridão. e nem uma bicicleta tinha para correr atrás da vida – os outros. já eram enormes. falavam tudo com tanto saber. eram gigantes. com umas bocas que quando abertas podiam guardar todas as bicicletas do meu imaginário. passavam velozes. raramente sorriam ou acenavam. creio que iam com pressa. acredito que fossem donos do sol – se eu um dia tiver uma boca assim. talvez também possa ter um sol – acreditei nisso. alguém me disse para acreditar. sempre – aos poucos. comecei a juntar todo o ferro-velho que fui encontrando pela estrada. separei todas as porcas e parafusos. liguei ferro com titânio. e fiz uma corrente. uma corrente que resistiu a quase tudo. até ao orvalho das noites demoníacas – enchi os pneus de papéis escritos com os meus nadas. levantei os pedais que um dia o meu pai me comprou. vendi um anel de família para comprar um casaco de couro e um boné. e assim cheguei ao que sou hoje – cansado. tirei-lhe as mangas. fiz um selim – à frente do guiador um livro de eugénio de andrade ilumina a estrada que escolhi. e continuei à procura do sol. que um dia acreditei ser meu – pedalei com vontade e força. toquei a campainha e abri caminho entre gigantes e medos. mesmo aqueles que pela força dos deuses se fizeram pedra – e fui. não sei se já parei. ou a estrada continua




17/11/2010

talvez um monólogo com deus






1.

fazia frio dentro de mim. foi a primeira vez que um frio assim me tocou. no entanto. o corpo não reclamava agasalho – mas bem lá dentro. nas profundezas de mim mesmo. senti tudo a gelar – estava irremediavelmente só. como sempre. tinha as mãos metidas em bolsos fundos e vazios. apenas procurava em mim um pouco de calor. algo aquecesse a alma – sempre procurei o que não existe. pelo menos em mim. mas sou assim. nada posso fazer – já nos outros. vejo sempre bandos de pássaros a voar rumo às temperaturas do sul. são pássaros fantásticos. cheios de certeza e destino – nem sei o nome os seus nomes. mas vêm em bandos. com asas carregadas de coisas. fragmentos do tempo. vão para lugares onde o horizonte é certo – mas eu. aqui estou. andando sem rumo. à procura das minhas coisas. do meu tempo. mas já perdi a conta ao meu tempo. ando de um lado para outro. sem rumo. perdido dentro do meu próprio corpo – já não há movimento de rotação. a noite nunca clareia e. a cada hora. surge uma fantasmagoria do sol. pintada na esperança morta pelo instantâneo do mesmo escuro – procuro-me. levo a ponta dos dedos até aos abismos da minha consciência. marcada por cicatrizes do viver. ferida pela mesma sensação incessante: castração – sinto que ou fui hostilizado por deus. ou fui que me sufoquei. perdi-me no certo temendo o erro. escondi-me para não voltar a magoar-me – agora sinto-me morto. e quando a morte não me consome por completo. é como se tivesse um pé na sorte e outro no abismo. às vezes rezando. outras vezes. implorando por um silêncio eterno. e é quando pergunto ao deus da catequese: se sempre respeitei os teus mandamentos. se sempre me preocupei em ser justo. se a minha casa é feita de paz e amor. porque este calvário. porque estas dores a magoar. se já não sei se estou vivo. ou se já morri e estou noutra dimensão – é quando me lembro da minha procedência. e tudo que lhes prometi. é então que saio de mim. e com voracidade. mexo as mãos. e digo: e grito para mim mesmo: é preciso estar vivo. é preciso sonhar. é preciso acreditar na esperança. pois só assim me sinto destemido. corajoso. sinto-me eu. sinto-me com futuro – olho para o céu. mesmo sabendo que a salvação esta na terra que piso. deixo as mãos aceitar o destino. é nesta procura louca que acabo por aprender a sobreviver – eu crio dor. cerro os dentes. meus olhos afundam-se. minha pele contorce-se em uma gritaria que me desperta violência. e toda esta dor apenas por tentar pensar – quem compreende esta automutilação? caio no fundo de mim. procuro calor. que é esperança. aconchego. que é companhia para desabafar. porque no fundo. bem lá no fundo. existe sempre uma réstia de esperança. e eu queria tanto encontrar essa portas com luz. que me atenuasse este frio estranho – às vezes. quando tento encontrar-me. imagino que este frio seja dos fantasmas que habitam dentro de mim. talvez eles procurem algo que possivelmente nunca tive. eu nunca tive nada – sei apenas que tenho uma vontade enorme de sobreviver e esta dor. mas também compreendo que o tempo mata a esperança. acaba por morrer. como morrem todas as primaveras que inventei – o tempo passa por todos. e estas primaveras de esperança. não mais voltarão a florir. mesmo o sol chegue à minha eira – olhei para a distância que havia entre os meus olhos e a vontade de ter outro futuro. medi como quem mede uma rasa de milho. e percebi que nunca iria encontrar nada em definitivo. o meu destino será sempre uma contenda com o que não tenho. mas quero ter. talvez seja mesmo uma guerra. com tudo que cresce e vive em mim – este frio cada vez mais frio. alimenta-se de esta minha vontade de querer mais. na vontade louca de transformar tudo. em cumes que tocam o céu

 

2.

hoje estou morto. é estranho como a morte ainda me permite pensamentos. mas não sei bem quem morreu . só ainda não sei bem quem morreu. só espero que não tenha sido aquele que escreve a morte em vida – ele ainda me faz falta para continuar a jornada. tenho umas quantas palavras presas dentro de mim. à espera de tombarem em papel pardo. cru. como restos de árvores que um dia formaram uma floresta viva – estas palavras. também elas agonizantes. marcadas pelo tempo que levou para moldá-las em literatura. jamais aceitarão o silêncio. as noites tornar-se-ão um inferno. e as manhãs estarão cada vez mais distantes da realidade – estou louco. há dentro de mim um sofrimento desordenado. caótico. sem ritmo ou direção. atravessa a multidão que vive aprisionada em um único corpo  – tenho um passado. ainda em memória. em que os olhos não conheciam as cores fortes. e tudo era suave. tudo era algodão doce. até os primeiros ruídos. por tão novos serem. confundia-os com músicas de embalar – esta dor de não saber escolher. de não ter um líder capaz de criar uma ordem para o meu destino. é insuportável – estar morto assim não é justo. não acredito que algum deus queira que uma criação sua seja como eu. talvez deus não seja assim tão perfeito como penso. talvez suas mãos tremão com o peso do tempo. moldando e construindo pessoas pelos séculos. talvez ele também sinta o cansaço – milhares de anos. milhares de pessoas. e sempre a inventar caras novas com jeitos novos. e tudo para os por a rezar. a jejuar. a falar dele. a encher igrejas. a pedir esmolas para a fome. para as missões. leprosos. e outros males do coração. e eu a acreditar que um dia também teria de pagar em promessas este jeito de ser. quase feliz. quase a morrer – o que deus criou não foi para pessoas com o meu jeito. mas não o culpo. quem sabe. naquele dia. também ele estava desgostoso. triste. aborrecido. cansado de lidar com o mundo. talvez tenha sido descuidado. e em vez de um paraíso com homens à sua semelhança. saíram-lhe marionetes num mundo de terror e pecado – falhou como eu. pobre coitado. nem estando em todo o lado percebeu que só fez asneira – hoje. adão e eva esqueceram o gosto da maçã proibida. cresceu em monstruosidade. agora. ergue-se em andas frágeis. cheia de cabeças a observar o caos – acredito que este meu deus também está desorientado. perdido entre as múltiplas criações cada vez mais exigentes e complexas – já percebi que está exausto pela dor de ver que até um deus. fazedor de milagres e ressurreições. acabou por me parir assim. sem manual de instruções. sem um qualquer código de barras. uma etiqueta com as indicações de uso. de lavagem. de vida. mesmo para uma vida de dor. esgotamento e delírio – passei a sentir-me assim. uma marioneta presa por fios cruzados. enredado numa encruzilhada que mais parece obra do diabo – este meu deus. também ele na merda. arrasado. acabou por criar um boneco triste à sua semelhança – se estivesse feliz aparecia mais vezes. mas não. está magoado. cheio de feridas. e com uns braços pequenos. tão pequenos que nunca me conseguiu acarinhar. e eu. todos os dias. olho para o meu interior e digo: não suporto mais este mundo que construí dentro de mim – preciso de ter uma conversa com deus. talvez ele também precise do meu perdão. talvez me deixe limpar o suor do seu cansaço com uma mortalha. afinal suportar esta sua criação não deve ser fácil – mas ainda estou à disposição de deus para ouvir sobre o dia ruim em que me criou – este deus. mais cedo ou mais tarde. vai ter que me ouvir. vai ter que me explicar porque me fez com vários corações. alimentados de dor. atrofiados pelo tempo – bastava-me um único coração. que soubesse escrever versos  de amor. versos tão profundos que me fizessem chorar. talvez uma estrofe que narrasse a minha breve jornada pela terra

 

3.

meu deus. se hoje estou mesmo morto. tanto que até os sinos dobram pelo meu descanso – porque não vens falar comigo? deverias ter esse cuidado. sempre que alguém morre é teu dever vir ao seu encontro. penso ser digno de uma palavra. não necessitas de grandes formalidades. espero apenas que me indiques qual o caminho a seguir. ou então. manda-me um mensageiro. um anjo. um qualquer pacóvio daqueles que nunca pecou. nem por pensamentos. atos ou omissões. um daqueles sem coragem de te questionar. a bater com a mão no peito sempre que pronuncia o teu nome – se me queres irritar. manda-me uma beata. arrependida. daquelas que se ajoelham no confessionário com a face no assoalhado envergonhada por te ter blasfemado – mas tu não queres mesmo saber de mim para nada. até fico na dúvida que saibas da minha existência – um homem sem honra é capaz dos maiores disparates. e é nesse momento que sobe para cima de si. revoltado. grita por ti – e com as estrelas à distância de uma mão. pede para não voltar a cair na incerteza. lembrando-te  de todas as vidas que ainda guardo em mim  – mas não penses que vou chorar. talvez haja tempo para sorrisos. quem sabe. quando por fim encontrar o teu sinal. quero ainda acreditar que amanhã tudo será melhor – reza o último pai nosso – o passado fica ali tão perto. e as luzes do mundo são apenas pequenos pontos de esperança. casas onde ainda há vida. mas nenhuma tem o meu nome. a fé está tomada por gente sem rosto – a fé são sorrisos. mesmo os que deixei perdidos. foram-se no seu vagar. até já não ter um único para me lembrar – um dia disseram-me que eras também meu pai. e  que para um pai o sorriso é obrigação. mas eu já não sei mais como criam sorrisos – é aqui que não te consigo compreender. eu nunca abandonaria um filho. nem os sorrisos – estou triste. sinto cada vez as estrelas mais perto e tu mais distante  – não precisavas de aparecer pessoalmente. podia ser qualquer coisa. um bilhete. um sinal. qualquer coisa que mostrasse que ainda sabes da minha existência. ter a certeza de que ainda és tu que mandas no céu. e assim. aliviar-me deste medo que sobrevive dentro dos meus olhos – podes não acreditar. mas ainda mantenho a fé que és tu quem decide tudo. que és tu quem tem a balança na mão – mas não me peças para acreditar que tens os olhos vendados. muito menos uma espada amarrada à mão. és tu que fazes as escolhas dos que tem direito a viver em paz – sempre ouvi dizer que não suportas violência. ainda me lembro da minha catequista me contar umas quantas histórias a teu respeito. e eu cheio de orgulho por pertencer à tua família – lembro-me da primeira vez que me ensinou o pai nosso. disse-me que era a forma mais direta de comunicar contigo. de te fazer feliz. de me ouvires – passei noites a declamar o teu pai nosso. repetia-o. repetia-o. repetia-o. e pensava. um dia. pensei. vai ficar felicíssimo. e há de entrar pelo meu quarto adentro – acabava por cair de cansado. adormecia com os olhos espetados numa imagem onde o teu filho subia ao reino dos céus – o que mais me impressionava eram a luz que levava consigo. sempre acreditei que era a trilha para te levar até ti – tanto procurei essa luz. tinha a esperança que me levasse até ti – havia dias. desesperado por nunca falares comigo. que dizia o pai nosso em voz alta. tão alto. que acabava sempre a imaginar ver-te a tapar os ouvidos por já não aguentares o pranto dos meus suplícios – perdido na noite. perdido do meu próprio corpo. partia em busca de respostas que nunca encontrava – havia tanta coisa que não sabia explicar. a solidão muitas vezes deixava-me apenas com os ossos do corpo – nunca entendi muito bem essa treta de dar a outra face quando levamos uma bofetada. a minha professora. muitas vezes amargurada pela ingratidão dos alunos. percebendo que jamais iria aprender as letras com aquelas formas arredondadas. recorria à sua palma da mão para me abrir a mente – nunca percebi se era por não saber as letras. ou se por deus nunca me ter aparecido – talvez por ser o único que usava suspensórios por cima da camisa branca. sempre mal ajeitado. o botão apertado junto ao pescoço. cabelo bem penteado e sem lêndeas. e umas botas enormes preparadas para aguentar o inverno da vida – ela só não sabia que por baixo da camisa havia uma medalha do anjo da guarda. benzida no mesmo dia em que me entregaram a ti. numa pia de pedra rodeada de santos e promessas de proteção – nunca ganhei coragem para lhe oferecer a outra face. bem queria ser como tu. mas não. nem era pela dor. era pelo orgulho. era diferente. sempre senti o corpo a pedir liberdade. viver em liberdade sempre foi a minha vocação – eu nunca entendi porque me batia. e nem compreendia como podias. ali na parede. com os olhos presos em mim. permanecer imóvel diante de tudo – bem sei que tinhas as mãos e os pés pregados à cruz. mas então onde gastavas os milagres que sempre me disseram que fazias. quando acabaram? foi aí que percebi que nunca serias capaz de me salvar das diferenças que começavam a nascer em mim – tudo me parecia tremendamente estranho: a escola estranha. putos estranhos. descalços. rotos. com lousas em negro como a sua vida – apesar de desconhecerem o mundo que tu lhes prometeste. sorriam. todos menos eu. e eu que tanto queria sorrir. tanto mesmo – o único caderno de linhas para escrever palavras direitas era o meu. mas sempre que escrevia o teu nome. o “d”. saía das linhas. nunca percebi o porquê. talvez fosses tu a empurra-me para fora de ti – a vara. reservada para os dias em que a professora descansava as mãos. rugia pelas orelhas abaixo. e nos micro segundos entre uma varada e a seguinte. olhava para ti. suplicava proteção. mas naquela parede nua. desprovida de qualquer adorno. tua presença era apenas sombra – queria tanto que descesses daquela imortalidade e que com um milagre. daqueles que me tinham feito acreditar em ti. parasses aquela vara maldita. aquele desespero. aquele nunca. pois parecia nunca acabar – mas não. tu nada fazias. continuavas na tua cruz. ali a olhar para mim como se nada estivesse a acontecer. ignoravas-me. assobiavas para o ar. para mim e para todos os outros. que tal como eu. imploravam para os acudir – sempre foi assim. mesmo quando ia para casa triste e desanimado. nunca encontrei uma criança com cadernos iguais aos meus. com linhas paralelas. onde o teu nome nunca ficava legível –também nunca me disseste uma palavra. nem enviaste uma pomba branca. igual às da catequese. ignoraste-me – nesses dias. queria tanto que me dissesses alguma coisa. mesmo que fosse uma palavra bruta. um aviso. uma sentença que me condenasse ao inferno. eu aceitaria – ainda quero acreditar nas histórias do teu filho. nos milagres do cego que ficou a ver. naquela boda em que o pão e o vinho se multiplicaram. ou de lázaro. que voltou das trevas para te fazer rei dos homens. mas cada silêncio teu parece apagar uma vela de esperança dentro de mim – sabes! nesses dias em que me contavam essas histórias eu era um miúdo feliz. não apenas por mim. mas por todos aqueles que te puderam tocar a carne. e dizer: obrigado por me dares esperança – apesar de tudo. talvez por teimosia ou esperança. eu sempre te perdoei por nunca me teres aparecido nos momentos mais difíceis. pensava cá para mim. está ocupado! em algum lado alguém precisa mais de ti do que eu

 

4.

o tempo passa. e de ti. nem uma palavra – julgava até que algum som fosse teu sinal. mas não. era apenas um som – agora que morri. não refuto mais o teu silêncio. tu sabes. quando morro. como hoje morri. é para tudo o que existe. até para ti – não sou capaz de te compreender. não mo peças. não me venhas com essas histórias de que escreves certo por linhas tortas. que estás sempre em todo o lado. que ouves tudo. que vês tudo – és apenas mais um traidor. outro judas. entregaste-me à inutilidade por trinta moedas – e não acredito que enviaste o teu filho ao mundo para morrer por mim. por mim não. pelos outros talvez. mas eu não posso morrer quando já estou morto. e para ti sempre estive morto – pela manhã. com o nascer o sol. talvez renasça. desta vez sem cruz na parede. sem água benta. sem anjos. apenas eu. vestido da pouca esperança que ainda aguardo – quero acordar nu. despido de dores. e vestir-me com o último fio de esperança – arranco o coração. e com o meu coração nas mãos dou-lhe carinho. peço-lhe que bata apenas mais um dia. só mais um dia – todos os dias quero apenas mais um dia. já não tenho os mesmos sonhos. aqueles que tantas vezes te pedi para me ajudares a realizar – tu bem sabias que não era a cobiça que me fazia sonhar. tu sabias – queria apenas que o meu pai mandasse matar a maior ovelha do rebanho – o orgulho. meu deus. o orgulho – será que tu não entendes. eu só queria ter o orgulho dos meus. do meu sangue. queria construir um novo caminho – permitiste que me roubassem o orgulho. e tu sabias tudo o que havia dentro de mim. tudo. sabias que não havia pecado. nunca houve – às vezes não há nada que possa inventar com as palavras. ainda quero ser um dos teus. dou o coração à boca. deixe-o arder na água que guardei do meu batismo. quero saber se ele ainda bate por ti. purificá-lo do pecado que não cometi – guardo as palavras que trouxe do passado. as que aprendi na catequese – ainda quero acreditar naquela história de que fizeste o mundo em seis dias e descansaste ao sétimo – hoje é o sétimo dia. estou cansado. os braços caíram no chão. separam-se do corpo. talvez seja decomposição da carne. ou o peso de todo o silêncio que carrego. mas ainda tenho o teu olhar nos meus olhos. ainda tenho aquele santinho que um dia me deram numa missa do galo – era natal e no natal há sempre esperança – neste dia. eu não era diferente – imaginava-te sentado a meu lado. de mãos entrelaçadas nas minhas. ouvias-me. também não queria mais nada de ti. queria apenas saber que me ouvias – depois chorava. chorava para te mostrar como ainda era da tua carne – só chora quem ama ou que está magoado – mesmo no pecado veniais. os outros não tinha. mas sempre te amei. arrependia-me por ti. e as lágrimas eram por acreditar em ti - mesmo na dor. quando ela era insuportável e a tentação das mãos era mais forte do que a fé. era pelo teu nome que gritava. e quando deixava cair o pão ao chão era com um beijo que o limpava dos males do mundo – ter-te a meu lado era ter os olhos secos – não. não. não. eu sei agora que estou morto – mentiroso. mentiroso. mentiroso. eu sei que estou morto. mas sou eu quem fala. bem sei que perdido entra palavras que nada valem. mas algumas metáforas ainda crescem dentro de mim tentando disfarçar a dor – nunca imaginei que iria ter dores depois de morto – maldito seja esse teu silêncio que consome até as palavras que nunca disseste – é esse silêncio que ouço desde o dia que levei as mãos aos ouvidos. não te consigo perdoar. não consigo – obrigas-me a chorar. eu que tinha prometido nunca mais chorar por mim – preferia chorar por ti. ainda quero acreditar que estás a sofrer mais do que eu – ninguém de boa fé faz um homem como eu. principalmente um deus. tenho de te perdoar. não totalmente. isso não posso. mas talvez um dia. a tua voz me alcance. e se isso acontecer. quem sabe… quem sabe – já não te pertenço. não porque não quisesse. mas porque fui renegado. abandonado no meio do nada. sem honra – não vou guardar ressentimento. vou apenas deixar-te algumas palavras pregadas à tua cruz. parece-me que é também minha. afinal dizes que eu sou carne da tua carne – magoo-me só para que sintas que existo – se um dia o teu filho voltar a ser crucificado terás sempre estas palavras. e que alguém sofreu a acreditar em ti – sempre soube que seria eu a escolher o dia da minha partida – por agora morro apenas mais um dia. qualquer dia. terás de me ouvir. e serás tu a limpar-me o rosto com a toalha com que verónica limpou o rosto do teu filho 



13/11/2010

o tempo que o tempo tem








o dia gemeu

em agonia

o relógio perdeu-se

no tempo

e até o gigante big ben

o dos ponteiros colossais

sucumbiu

só os segundos

devoram o tempo

ainda

 

00.01    pm

00.02     pm

o escritor

construtor de ilusões

diz:

hoje sempre será ontem

 

palavras

emoções

lágrimas

crenças

rostos

vozes

fotos

conflitos

ambições

loucuras

ilusões

amores

percalços

desejos

rendições

tudo

sempre tudo

tudo que o relógio

conta

 

de ontem

chega o tudo

antes  que o tempo

revele

nos ponteiros

a cadência da vida


pensar é exorcizar

o saber presente

é compreender

sou de ontem

 

do papel:

o aroma da floresta

do tinteiro:

o alquimista perdido

de ontem

o sol nascente

das mãos

a solução

ainda ontem

eram

pés com barbatanas

onde o tempo faz vida

 

hoje

é leitura

subtileza tecida no tempo

em falta

mas

no vosso relógio

serei sempre

imaginação

 

ou talvez

apenas um momento

passado

 

00.17pm

 

o relógio

faz tic-tac

 

no instante passado

e o não silêncio

do tic-tac

bate com a certeza

de ser o presente


serei sempre

o eco incessante 

deste bater 



10/11/2010

estes lados. nossos






tenho entre os mãos uma porção de terra. trouxe-a de um jazigo para suavizar uma saudade – desde que partiste sinto-me amargurado. perdido e zangado. tinha ainda tantas coisas minhas para te dizer – eram importantes. digo eu – não devias ter apanhado aquele autocarro. bem sabes que o carreiro por aí é demorado. estreito. tão isolada. tão triste. tão sem vida. tão escuro – tenho medo que estejas sozinho e com frio. podias ter levado aquele sobretudo de lã às cores. sempre te fez mais novo. era lã pura. combinava contigo – lembro-me de como sorrias ao vesti-lo. como se o inverno nunca te tocasse – um dia vesti-o. enfureci-me. não me assentava nos ombros – sempre foste mais aprumado. as tuas as costas alinhadas carregavam a vida com leveza – as minhas. bem. as minhas sempre foram apenas mais umas costas – tenho dias em que adormeço acreditando que é possível viver-te nos sonhos – ontem consegui falar-te com os lábios. sempre depois daquele beijo na face. quente. senti eu – fiquei com um trago açucarado na boca. mel – depois. guardei-te no silêncio criado nos meus olhos. nossos – estendi as mãos. toquei-te. senti-te. abracei-te. e ali fiquei aconchegado a mim. a nós – tive medo de acordar. e guardei a mão onde tenho cravada a linha da tua vida. foi cortada pela tua ausência – nesta minha mão. que é nossa. a linha prossegue outro caminho. que é também o teu – quem nos ensina a andar quando não temos mais o chão. meu pai? como vou caminhar com o que é teu. meu pai? não sei. eras tão diferente de todo o mundo. meu pai – a nossa árvore. é a nossa árvore. respira a nascente. para onde sempre me guiaste – mas eu era novo demais – nos dias em que me pegavas ao colo. todas as árvores pareciam ser do teu tamanho – a vida acontecia sempre nos teus braços. fortes. tão fortes que o céu ficava à distância de um sorriso – ainda nem sabia que esse céu. um dia. receberia todos aqueles que gostamos – do mundo. conhecia apenas o jardim que criaste para mim – havia sempre tanta gente a dizer coisas nesse jardim. nosso – faziam um quase barulho. às vezes sussurro. às vezes música. às vezes amor. nosso – tu. falavas como se inventasses as palavras ao dizê-las. nossas – nunca paravas – e nos teus olhos. nos teus olhos a alma das pessoas. eras um homem bom. e como fazem falta homens bons no meu mundo agora – nesse mundo. que me deste a conhecer. sempre houve um baloiço onde eu te esperava. às vezes levava-te. às vezes trazia-te. nunca parava de ir e vir. como tu. partias para o teu mundo que mais tarde haveria de ser também meu. nosso – e depois. regressavas. sempre. por mais que o tempo matasse o próprio tempo. a tua casa éramos nós. todos – sempre o soube – tudo parecia tão simples. o mundo. a vida. e dentro de mim. tudo era simples. bem sei que tu também eras simples – em ti havia vida. havia certeza. havia mel. havia sorrisos. tu eras um sorriso. nosso – e o baloiço andava para lá e para cá. como se imitasse os dias a nascer. porque tudo que nasce carrega consigo uma razão para existir – havia uma razão maior para existires em mim. eras um homem bom. como mais ninguém – era tão jovem. não sabia nada da vida. nada do que ela guardava para mim. não sabia como nasciam os dias. nem sabia como todos são obrigados a morrer – sabia apenas que o destino nos leva. de norte para sul. até o infinito das memórias – tu bem que me apontavas o caminho. mas era demasiado jovem para entender que até o sol. tão luzente. um dia pode morrer – não foi por desistires que eu não me fiz homem mais cedo. nunca sossegaste com as palavras. eu é que era surdo. cego de tão jovem – na tua presença o baloiço nunca parava – sempre foste um homem livre. eu também sou. como tu – sempre usaste as palavras. para me falar. os ouvidos para me escutar. os olhos para me ver – eras o meu pai – as argolas de ferro que seguravam o baloiço já rangiam. e eu sem saber como o nosso tempo estava prestes a esgotar-se. lento. mas inevitável doloroso   – nesses dias. ouvia-se o vento furioso. mal eu sabia que nesse ir e vir era já a vida a esgotar-se – cansado. respiravas amparado no sinal da cruz. com que te deitavas. sempre – tu ainda tinhas um deus. o mesmo que já foi meu. agora. estamos amuados. para te ser franco nada sei dele – no ar as folhas chamavam o outono. e os dias pequenos. cansados. prestes a desaparecer – depois. apareceu aquele autocarro. as argolas partiram-se e as cordas começaram a chorar. como se o ar debandasse – nesse dia que viajaste fiquei só. e fiquei para sempre – tínhamos ainda tantas palavras para dizer. tantas coisas para partilhar – mais tarde um homem de chapéu preto chamou-me pelo teu nome. aquele que eu nunca uso por ser só teu. deu-me uma chave. atada com uma fita negra. disse-me que era da tua nova morada. nunca acreditei – partiste sem uma única palavra. tua – tu não eras homem para partir em silêncio. não podias ser – tu sempre me dizias: porta-te bem enquanto estou fora. não aborreças a tua mãe. faz sempre o que a mamã te mandar – alguém te enganou. digo eu – fomos enganados – tiraram-te a memória para partires sem boca – a dor comeu as palavras – sei que um dia vais voltar. ou talvez esperes por mim. tens de me explicar onde deixaste aquele santinho. o que usavas na carteira. nunca mais o vi. talvez tenha fugido com a vergonha – sei que um dia vais pedir para falar da vida que guardo em segredo. todos os dias – enterrei tudo num buraco onde. criei a nossa árvore. é a tua memória

 


07/11/2010

cruz ansata








não tenho palavras que sustentem a cabeça que comprei naquela loja de ferro velho. pende para o lado vazio. o lado onde não há coração. onde morrem todos os verbos que amparam a injustiça – os braços. outrora selvagens e vigorosos. caíram desesperados –  apareceu a ferrugem. aquela que conheci em tempos. corrosiva. devorava todos os nomes – talvez tivessem crescido demais. e as línguas cuspissem encantos sem nada saber de braços com mãos dependuradas – agora. não sei se desespere ou se espere – mesmo com toda a indiferença que sempre guardei – por detrás do olhar despreocupado temo pelas minhas mãos –  habituei-me a este corpo. despido. descalço. carrego apenas à cinta uma sacola de couro e letras. que trazem minha vida – sorrisos poucos. lágrimas muitas – dos olhos redondos brilhantes já pouco resta. soltam-se agora pedaços de cólera – nasceram talvez na menina dos olhos. sempre tão sensível – sempre acreditou em tudo o que via. ingénua. tão pura em sua crença – voltou tudo novamente ao tempo da ilusão. o tempo dentro de mim afinal é uma mentira. pensava que já me tinha esquecido dos amigos. mas agora vieram estes. os novos. os arrumados. os que se acham eleitos. com direitos imaginados. sem teto procuram hipérboles como o diabo procura o pecado. talvez sejam parentes – sorte a minha. uma vida inteira a ignorar o olhar dos que achavam que não havia nada dentro de mim – não posso continuar calado – estas mãos também escrevem. podem não ser perfeitas. mas não matam palavras – bem sei que não sou fidalgo. e ainda não tenho aquele anel de ouro feito de hematite negra –  e a cor negra que trago no corpo. é a sombra do trabalho árduo que faço com as minhas mãos – mas são sempre estas que escrevem. apenas essas. assim. mesmo cheias de marcas. de veias. de cicatrizes fechadas em dor – são as minhas mãos – estou revoltado. porque me roubaste o nome que escrevia somente para dizer as minhas coisas. não a ti. não ao teu mundo. nem sequer àqueles que gostam deste sinal que tenho na face – escrevo para mim. para ser feliz. mesmo sem nunca ter sido antes – vê o que fizeste destas mãos. umas mãos ásperas. só hoje? talvez sim. talvez para sempre – também se pode escrever ásperas no meio de um substantivo comum – malditos sejam – a escrita não é só um dom. é dor. é prazer. é êxtase. é orgasmo. é vida. é esperança – e quando escrevo sou isso. repito. sou isso sem dúvida



04/11/2010

mau tempo






tenho as palavras alteradas. talvez por isso as gaivotas continuem em terra – até mesmo aquela gaivota malhada. sempre entregue ao vento norte. com asas a rasgar a espuma que escorria do canto da minha boca. se afastou – um dia. quem sabe. falarei com ela – direi que o mar. aos meus olhos. é infinito – ou talvez não – talvez lhe vire as costas – verei o que fazer com as palavras. talvez as guarde para sempre. longe do sal que as desgasta – mas do mar nunca tirarei os olhos. foi  batizado por um deus que não sabia escrever. mas dominava a arte de equilibrar – e assim nasceram as marés 



23/10/2010

alegoria da mente









acordei

traga nos olhos um sonho

uma flor

 

colheste-a

[para a matar?]

 

amor?

 

bem sei

é um sonho




10/10/2010

palavras desamparadas








acordei sobressaltado – puxei-me para cima dos quadris e sentei-me no topo da cama. virei-me para sul fugindo do mau olhado. o norte traz sempre ventos frios e húmidos – há uma janela quase quadrada que me dissipa a solidão. é lá que ponho os olhos a sossegar – lá fora. nos socalcos do olhar. mesmo ao junto ao beiral. já há gente a correr atrás da vida – pego num dente de alho e penduro-o ao pescoço. talvez precise de proteção contra os demónios. não tenho medo das suas crueldades. mas irritam-me contra absurdo que nem sempre compreendo – pressinto dentro de mim umas cogitações. querem ganhar forma. flutuando no espaço entre o que vejo e o que penso – são como ondas nesta cabeça: ora ourada. ora torta. ora inclinada para a loucura – são ideias como barcos à deriva oceano. sobem. descem. mas sempre ao correr de ventos que ninguém sabe onde nasceram – neste mar sem fim. há peixes. peixinhos e peixões que se alimentam deste emaranhado de ideias. nadam como se tudo fosse águas calmas. tranquilas. águas sem predadores ou mesmo sem leões marinhos – nem sei se são estúpidos ou arrogantes. talvez as duas coisas – habituaram-se a refúgios seguros que tenho por detrás dos olhos – sempre que os fecho. nada mais é capaz de perigar dentro deste oceano de pensamentos loucos – há profundezas que desconheço completamente – é nestas alturas que sinto a morte nos dentes. fico com medo. vejo tanta coisa estranha. e nomes que chamam por mim. ruídos que me são familiares – certo dia. até ouvi a campainha da escola. aquela que me fazia correr à procura da vida – nestas memórias. meias loucas. permanece a imagem de um sargaceiro vestido de fato amarelo. trauteia umas quantas canções de sereias que já morreram – eram do tempo de ulisses. meias mulheres. meias feiticeiras. das profundezas dos mares. faziam sonhar homens destemidos. mesmo aqueles que nunca foram embalados e amamentados por peitos secos de amor – coitado! esqueceu-se que está com água até à cintura e a maré continua a subir – as algas que em tempos eram abundantes são agora meia dúzia de ideias desprendidas de um cérebro em decomposição – talvez seja melhor içar a bandeira vermelha. talvez assim volte a subir às dunas onde costuma descansar o corpo coberto de sal – também ele quando fecha os olhos consegue ver as gaivotas a bicar as incongruências da imaginação – um dia morrem os dois. e nem as ideias com guelras sobreviverão. morrerão sentadas no areal da praia a chorar a morte do corpo



07/10/2010

quadro negro









passei

pé ante pé.

o giz

no quadro negro

 

tremeu.

 

sabe?

sabe de mim coisas.

pequenas e banais

anormais para quem passa

 

tremeu

 

e os cegos?

[alguém pensou neles?]

esses. sim

os cegos sem olhos

leem o mundo com as mãos

roubam palavras

com a mente

ah. se fossem só palavras!

 

tremeu

 

mas o giz

o giz

nunca mais o vi

 


03/10/2010

outubro – deixa-me rir










não sei se estou triste

estou

por agora. aqui

 

uma parte de mim descansa na mão

os olhos perdidos na chuva

os pés dançam na lua

 

lá longe

amália trauteia saudade

é domingo

 

e eu todo em silêncio


29/09/2010

deceções e conceções e o silêncio poético








tenho um punhal guardado desde o tempo em que as pessoas lutavam por coisas de nada – abri a gaveta escondida por detrás de mim. ao lado da moela que tritura tudo o que me fazem – voltei ao passado. tempos em que o coração vivia aos saltos na boca – este músculo. que se retorce sempre que o paladar altera o tamanho das papilas gustativas. dá origem a uma explosão de irreverência linguística. crua e real – abre-se a porta ao palavrão. ao calão. às putas. aos caralhos. aos fodasses e. por último. até aparece uma puta que pariu esta merda toda – que seria de mim se voltasse a usar este punhal? – esta herança da luta contra as injustiças. lâmina que cresceu num tempo que não foi só meu. e fez de mim tudo o que sou hoje – imaginei-me a tentar matar um poema. um poema muito pequeno. quase um haikai. sem brilho. sem musicalidade. envolto em mistério. e solitário como um sem-abrigo – imaginei-me. mas já não consigo matar o quer que seja – hoje. aceito as diferenças. quer nas coisas. quer nas pessoas. são as diferenças que nos fazem especiais e dão colorido à vida – fiz a minha casa ao ar. sem o azul do céu. conservo apenas a noite para poder sonhar. encontro conforto em mim mesmo. e depois. num banco de talas geometricamente perfeito. vermelho para realçar os farrapos calvin klein. emersos em comichão da “socialite”. e falo em silêncio para uma cidade de pedra – já os rejeitados do mundo. vivem em corpos que nunca ouviram paz. compreensão. e segurança. ignoram os buracos de uma roupa que nunca foi nova. e falam para eles como se o mundo inteiro os escutasse – um grilo teimoso canta. não por si. mas por aqueles que falam em silêncio. e são tantos – canta até o romper do sol. canta até ficar sem voz e sem animo. o mundo não os ouve – num banco. um corpo silenciado teima em viver. aos seus pés. nasce uma flor de esperança. cresce entre dedos gretados pelas noites de orvalho. a vida faz-se de coisas simples – este verão. sentado defronte para o sol. sabe agora. mais vale tarde do que nunca. que necessitará de quentura para os dias frios que se avizinham. o silêncio não aquece – olha para um futuro quase terminável. a morte caminha sem tempo. e as memórias gélidas pela solidão de quem já não sabe pedir socorro – um dia. acordou com voz de criança. pensou que era um sonho. mas não. era a flor de esperança a partir em desespero. levou com ela todas as letras que um dia sonhara para fazer um ramo de cravos – e agora aqui estou. com tudo desaparecido. resta-me apenas o banco vermelho com as talas geometricamente colocadas de sul para norte. era assim que se deitava. é assim que me vou continuar a deitar. com os olhos acomodados no horizonte – desisti de matar poemas. nunca terminaria com a poesia. por muitos que matasse. haveria sempre mais a nascer nas mãos – já ninguém acredita em odes poéticas – é preciso mais. muito mais para acalmar o meu desassossego. tenho que fazer mais – pensei em matar um poeta. daqueles que fazem rimas e prosas. e que levam a pouca arte a cair-me das mãos. é então que choro de raiva. não compreendo porque a vida necessita de tantas palavras. afinal basta apenas aceitar as diferenças – os poetas estão a desaparecer. talvez por não encontrarem mais razão para juntar palavras num mundo que já não as valoriza – vivemos todos no mundo do silêncio – hoje. neste mundo de tráfego digital. que valor real existe em dar sentido às palavras – é tudo tão efémero –  esta coisa de trazer tanta coisa de um passado já é distante. sem nunca ter parado para descansar. sem nunca ter aliviado a carga a olhar para uma flor que fosse. mesmo que ainda não tivesse desabrochado. mesmo que a primavera estivesse presa no cair da folha. torna-nos indiferentes. como se apenas eu tivesse direito à vida – podia ao menos ter chorado. quando choro. não estou só. sinto a metamorfose da dor em água. só dentro da carne é visível a transformação da dor em água – por fora. que interessem têm o que está por fora? aos poucos. nascem sulcos arados pela vontade de ter uma nova oportunidade. sentir alívio. superar a dor. é preciso abrir novos caminhos pela tristeza. sentir a vida desfazer-se em água. passar pelos lábios. e deixar definitivamente o gosto acedo das profundezas da alma e. depois. pedir aos olhos para guardar a transparência da vida liquidificada. e preparar-se para viajar na imensidão do pó sem mágoa – acreditar. o que estava ao meu alcance fiz – agora. com a viagem a decorrer. fico apenas com um gelo na face. é o vento a secar a dor por detrás da carne. do tempo perdido. do erro – caio em mim. sei agora que estes poetas loucos nunca andam sós. amparam-se uns aos outros. os desgostos da vida são apenas oportunidades de escreverem sobre outras vidas. a deles é sempre pura. sem motivo para renascerem – acasalam as pernas de pau com que riscam o chão por onde passa todo o sonhador. todo o sem abrigo. todo o homem nu. mesmo levando todas as palavras capazes de florir o mundo – no chão. sem saberem. desenham a desilusão. a amargura. o fel de todas as angústias da vida. apenas da sua vida? não. levam consigo todas as vidas. e mesmo não sentindo nada do que escrevem. fazem da vida uma passagem – olhei para o punhal com os olhos consumidos pela ressurreição. fechei-o à chave. dando duas voltas e selando-o com o lacre das minhas memórias – o selo são as minhas impressões digitais – não compensa matar o que já morreu – os poetas escrevem tentando desafiar o tempo que um dia os consumirá

 


27/09/2010

torre do tombo: entre malmequeres e cometas






não consigo ver o meu branco. por mais que o tente imaginar – nem o meu tempo. que parecia escapar nas palavras que te oferecia. desejando que te tornasses meu amigo – mesmo aqueles malmequeres de pétalas brancas. que tantas vezes comprei para embelezar os sírios que acendia para alumiar a memória dos que sempre me quiseram bem. perderam a cor. e as pétalas caíram. sem nunca mais formarem uma flor – tento alcançar-me sempre que escrevo – mas continuo a acreditar que a cor dos cabelos não combina com os meus olhos – das minhas mãos. esperava muito mais. mesmo que fossem como um cometa. fugaz e distante. largando rastros de vapor pela imensidão do céu. podia sempre dizer: que chatice! este sou eu. apenas uma mistura de tons. que muitas vezes não formão cor nenhuma. apenas tonalidade mate. sem brilho. sem luz . sem racionalidade – mas há dias em que sinto tantas coisas ao mesmo tempo. como se carregasse todas as palavras do mundo. melhor ainda. há dias em que sou tudo. sou as palavras justas. aquelas que se vestem de arte para partilhar o tempo que todos os dias consumo – só que o tempo é curto. e tenho cada vez menos tempo para ser aquilo que quero ser – o tempo escapa-me. e os sonhos que queria alcançar dissolvem-se na realidade – então. talvez seja hora de me reconciliar com o que realmente sou



24/09/2010

fama









neste passeio da fama

descobri a arte da lama


se rima. é porque carrego penas

não de gaivota. mas de idiota

 

empilho palavras vazias de sentido

despejadas sem rumo ou abrigo

 

putrefação de sonhos. versos em agonia

arte ou delírio? apenas melancolia 




22/09/2010

dezembro é já aí





van gogh - homem sem esperança




amarrei na armadura que guardo por detrás dos dentes. tirei os olhos para fora. despenteei o cabelo para me parecer um pouco selvagem. e berrei tão alto que. no eco desse grito. meu amor interior se despedaçou – foi naquele instante. quando vi partir a cobiça. que algo em mim se quebrou para sempre – não sou mais o homem que fui – estas primeiras chuvas de outono. que chegam em setembro. amolecem-me – para quê este berro se o silêncio o captura – bem sei que berro para dentro. enquanto os olhos fugiram para um mundo que eu não gosto. marcharam para uma floresta que já não existe. e ali ficaram perdidos para sempre no nada – em tempos. as manhãs. eram uma corrida divertida em busca do farol. um rumo iluminado – que saudável era ter a certeza de que um dia seria o que quisesse. até talvez dono de um império intelectual – o negro. nascido e criado por mim. sobrevive todos os dias com o acordar da noite. pintando o luar de medo e sonhos adiados – é quando mando as mãos trémulas para o espaço e procuro-me sentado na lua. converso comigo à distância. e antes do sol me trazer à realidade. mergulho para casa convencido de que é minha obrigação continuar a trabalhar-me. mesmo sendo feito de osso de dinossauro – o tempo passa. as dúvidas brotam sem saber como as guardei. e morro de medo amarrado a mim – e assim fiquei até hoje. feito em medo. e sempre que o corpo falece. procuro uma poça de suor de cavalo-marinho para renascer – a violência. por mais estranha que pareça. desperta algo profundo em quem fala consigo mesmo – ela rasga o silêncio – o cavalo-marinho. com um assobio na boca. interrompe esse momento e chama a atenção de todos os idiotas: cuidado idiota. não tarda nada estás velho. olha o que te digo neste assobiar de alerta: mantém o velho fora da porta ou acabarás por apodrecer antes de faleceres – a minha resposta recorre a um quadro de vincent van gogh. com o seu quadro campo de trigo com corvos – e interrogo-me: está o mestre a pensar no trigo e os corvos servem de adorno. ou o contrário. o foco principal são os corvos e o trigo surge apenas porque em frente à janela do seu quarto há um campo de trigo? é exatamente o que acontece com a minha vida. meu coração é um campo de trigo. onde os corvos zombam do tempo – o vazio cresce à medida que o relógio se arrasta e o nada cada vez mais nada – quero continuar a acreditar que apesar do caos interno. ainda insisto em acreditar que. no fundo. a terra e o ar são apenas ornamentos de algo maior – eu preciso encontrar um propósito. mesmo quando tudo ao meu redor parece perder o sentido – para mim. o quadro de van gogh é a perfeita representação da minha vida: um reflexo sombrio de desesperança onde. apesar de tudo. os corvos continuam a desafiar o vazio com os seus voos – quando a esperança me abandona. é o coração que fica a bater. sem saber o porquê. talvez seja vício. ou apenas uma necessidade de desafiar a própria dor. quem sabe contrariar-me. mas o que sei e sinto. é que bate devagar. talvez para compensar o nada instalado – no ventríloquo direito. ligado à mente onde ainda guardo alguma esperança. as gaivotas dançam livremente no mar e no vento. como se fosse a última dança – no ventríloquo esquerdo. ligado à mente onde guardo os corvos amarrados à terra. zombam prisioneiros de suas próprias sombras – a dividir os ventríloquos um abutre chegado do corno de áfrica. traz como merenda um pedaço de gazela que se tinha cansado de correr – o abutre. mestre da desordem. é o único que conhece o destino da carne caída. e no meio do caos. mantém a ordem – a morte também alimenta a vida – para ele não importa quem faleça. se o idiota ou o mestre. vive da morte. até da morte da esperança – a gaivota que um dia foi livre já não voa mais. agora. ela observa. imóvel lê um livro de jorge reis-sá. busca um sentido para a sua própria prisão. anotando em glossas o passar do tempo do idiota e do mestre. ela sabe que os segredos desembrulham-se no fim – os corvos amputaram as asas e mergulharam no campo de trigo. suicidaram-se com a falta de imaginação – para uma história triste. um final triste: todos morreram de morte natural. reflexo do abandono da esperança – o idiota. cego pela sua busca incessante da liberdade. saltou do seu penhasco. acreditando que finalmente podia voar – talvez o único a buscar algo. mesmo que essa procura o levasse à morte – dezembro é já aí